segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Modesto da Silveira, o gauche


"O jurista Heleno Cláudio Fragoso dizia que Modesto foi quem mais defendeu perseguidos da ditadura. Doente, numa cadeira de rodas, encaminhou pela oposição a votação da anistia em 1979. A análise de qualquer evento relacionado à liberdade naquele período deparará com seu nome. Nas muitas agruras a que o bispo de Nova Iguaçu, D. Adriano Hipólito, foi submetido, lá estava Modesto em solidariedade e em sua defesa. No livro da Gabriela Leite, fundadora da Daspu, há citação do papel do Modesto em favor daquelas profissionais."
 
Em 1984, em meio à campanha pelas Diretas Já, Silvio Tendler lançou o filme ‘Jango’, um documentário sobre o golpe que interrompeu um projeto de Brasil para os brasileiros. Mostrou indícios do papel dos Estados Unidos na intervenção militar em favor dos interesses da classe dominante e do capital internacional. Hoje, com a abertura dos arquivos estadunidenses, há farta prova de que o golpe fora tramado no governo de John Kennedy, morto quatro meses antes de sua concretização.

Tendler prepara outros dois filmes: ‘Militares pela democracia’ mostrará a história dos homens das Forças Armadas que sofreram por se colocar ao lado da legalidade. A truculência do regime militar afetou profundamente as instituições militares. Nem todos os militares torturaram, perseguiram ou mataram; dezenas de milhares foram também perseguidos. O outro filme, ‘Os advogados contra a ditadura’, resgatará a história da advocacia nos anos de chumbo. Ambos terão depoimentos do desassombrado advogado Modesto da Silveira, que nesta semana completou 87 anos. Membro do Conselho de Ética da Presidência da República, Modesto nos assombra com sua vitalidade e agilidade. O jurista Heleno Cláudio Fragoso dizia que Modesto foi quem mais defendeu perseguidos da ditadura. Doente, numa cadeira de rodas, encaminhou pela oposição a votação da anistia em 1979. A análise de qualquer evento relacionado à liberdade naquele período deparará com seu nome. Nas muitas agruras a que o bispo de Nova Iguaçu, D. Adriano Hipólito, foi submetido, lá estava Modesto em solidariedade e em sua defesa. No livro da Gabriela Leite, fundadora da Daspu, há citação do papel do Modesto em favor daquelas profissionais.

Carlos Drummond de Andrade começa o ‘Poema de sete faces’ dizendo: “Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: ‘Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Gauche, em francês, tanto pode significar esquerda, quanto errado ou desajeitado. Naqueles tempos de extremos, Modesto encarnou um dos significados que se dão à ‘esquerda política’ hoje: a defesa da vida, da liberdade e dos direitos humanos. É gauche neste sentido!

Chico Buarque, na música ‘Até o fim’, disse que “Quando nasci veio um anjo safado, o chato dum querubim, e decretou que eu tava predestinado a ser errado assim”. Com Modesto da Silveira foi diferente. Um anjo bom lhe disse quando nasceu: “Vai ser Modesto na vida”. Modesto da Silveira, pelo compromisso com a justiça e pelo brilhantismo com que sempre atuou, não precisaria ser modesto. Mas o é.



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/01/2014, pag. 14. Link: http://www.aleatorystore.com.br/?gclid=CJv2lfDInrwCFQto7AodeScA0Q

 

domingo, 19 de janeiro de 2014

‘Rolezinho’ e Apartheid

“O ‘rolezinho’ descortina a tensão da desigualdade social no Brasil, exposta desde o mês de junho e agravada pela truculência policial. Ele é fruto da violência estrutural que nega os direitos humanos fundamentais, que confina na periferia e pretende manter os pobres na invisibilidade. A visibilidade social, que não se tem na periferia, é o primeiro passo para a construção dos direitos. 


O Apartheid, que em africakaans significa separação, foi instituído na África do Sul em 1948. Foi um estatuto jurídico que subordinou a população negra, aboliu seus direitos, instituiu barreiras raciais e introduziu a segregação na gestão pública, nos meios de transporte e na vida social. Guetos, chamados bantustões, foram criados para a moradia dos negros”.

A partir da década de 70 o governo atribuiu ‘independência’ aos bantustões, conferindo-lhes nacionalidade própria e subtraindo-lhes a cidadania sul-africana. Os donos da terra foram expropriados dela e do próprio país. O povo virou mão de obra barata e transpunha as fronteiras dos ‘estados autônomos’ para trabalhar, com salvo-conduto similar a um passaporte.

Diferentemente da África do Sul e dos Estados Unidos, que fizeram leis instituindo a segregação, o Brasil não precisou delas. O aparato repressivo dos ‘donos das coisas’, formado por milícias privadas ou polícia, garantiu o controle social. Mas, naqueles países, apesar das leis segregacionistas, houve quem se rebelasse.

Na África do Sul se realizou a Copa do Mundo de futebol em 2010. Atendendo aos mesmos interesses, o Brasil a realizará neste ano. Setores da sociedade que sugerem sejam os recursos públicos mais bem empregados dizem que não vai ter Copa. Ou, pelo menos, não haverá nos moldes pretendidos pelos donos do negócio e seus gerentes encastelados na direção do Estado.

Foi contra este sistema excludente que Mandela pegou em armas. E, nos Estados Unidos, em 1º de fevereiro de 1960, quatro jovens universitários entraram numa lanchonete na Carolina do Norte, se sentaram ante o balcão reservado a brancos e pediram café e biscoito. Ante a recusa do serviço, ficaram sentados até a loja fechar. Voltaram no dia seguinte e nos seguintes.

O pequeno grupo se transformou numa multidão e foi o estopim que incendiou os EUA na luta pela igualdade racial. O movimento daqueles jovens não foi o primeiro a contestar o regime, mas foi o primeiro que — sem transigir e sem aceitar provocações que pudessem legitimar a repressão — chamou a atenção e por seu modo pacífico aglutinou a sociedade.

O ‘rolezinho’ descortina a tensão da desigualdade social no Brasil, exposta desde o mês de junho e agravada pela truculência policial. Ele é fruto da violência estrutural que nega os direitos humanos fundamentais, que confina na periferia e pretende manter os pobres na invisibilidade. A visibilidade social, que não se tem na periferia, é o primeiro passo para a construção dos direitos.


Publicado originariamente no jornal O DIA, 19/01/2014, pag. 14. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-01-19/joao-batista-damasceno-rolezinho-e-apartheid.html


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

PORTARIA QUE TORNOU INEXIGÍVEL PALETÓ E GRAVATA PARA ADVOGADOS

ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PODER JUDICIÁRIO
COMARCA DA CAPITAL
1a VARA DE ÓRFÃOS E SUCESSÕES - 1a VOS

Rua Erasmo Braga, 115 – B-101 – Lâmina I – Castelo - Rio de Janeiro/RJ




PORTARIA 01/2014
 
O juiz de direito JOÃO BATISTA DAMASCENO, titular da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital/RJ, no âmbito da independência judicial e no uso das atribuições constitucionais e legalmente lhe atribuídas,
 
CONSIDERANDO:
 
Que o uso de vestuário inadequado às condições climáticas é lesivo à saúde;
Que a temperatura do ar no Rio de Janeiro tem chegado a 40ºC, com sensação termica superior a 50ºC, conforme aferição do Instituto Nacional de Meteorologia;
Que não compete aos juízes exigir dos advogados o uso de terno ou gravata para o desempenho de suas atribuições profissionais, seja para a prática de atos em cartório, audiências ou para despachos;
Que o uso de terno e gravata se insere no âmbito dos costumes e sua exigência pelos órgãos judicantes não encontra amparo em ato de edição legislativa;
Que aos órgãos do poder judiciário compete assegurar a realização da ordem jurídica, não lhes sendo lícita a formulação de juízos sobre estética ou costumes;
Que no Estado de Direito ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma, salvo em virtude de lei (art. 5º, II da CR);
Que inexiste lei que determine a vestimenta dos advogados para exercício de suas atividades profissionais, notadamente comparecimento ao Forum;
Que nos termos do art. 5º, XIII da CR toda profissão pode ser exercida, atendidos tão somente os requisitos legais;
Que os requisitos legais para o exercício da advocacia são apenas os dispostos na lei 8906 de 04 de julho de 1994;
Que compete à OAB promoção, com exclusividade, dos preceitos disciplinares da atividade profissional da advocacia, nos termos do art. 44, II do Estatuto da Advocacia;
Que a indumentária diversa do terno e gravata não se afigura modo inadequado para o exercício da advocacia, nem se afigura forma incompatível com o decoro, o respeito e a imagem do Poder Judiciário;
Que a imagem e decoro do Poder Judiciário serão melhor assegurados se atuar em respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito; na promoção da conscientização da função judicante como proteção efetiva dos direitos do Homem, individual e coletivamente considerado, e a conseqüente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito; na defesa da independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, internos ou externos à Magistratura; na democratização da Magistratura, assim no plano do ingresso, como no das condições do exercício profissional, com o fortalecimento dos direitos dos juízes à liberdade de expressão, reunião e associação; na consideração da justiça como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão o controle de seu funcionamento; na defesa dos direitos dos menores, dos pobres e das minorias, na perspectiva de emancipação social dos desfavorecidos; na criação e no desenvolvimento de vínculos de cooperação e solidariedade mútuos entre profissionais da área jurídica e associações afins, bem como na promoção e defesa dos princípios da democracia pluralista e difusão da cultura jurídica democrática;
Que o art. 58, XI da Lei 8906 de 04 de julho de 1994 estabelece que compete privativamente à OAB “determinar, com exclusividade, critérios para o traje dos advogados, no exercício profissional”;
Que existindo lei regulamentando assunto específico não é lícito aos juízes negar sua aplicação, salvo quando incompatível com a Constituição, caso em que lhes compete afirmar a precedência desta e declarar aquela inconstitucional;
Que a Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio de Janeiro, OAB/RJ, editou ato dispensando os advogados de uso de terno e gravata, até o dia 21 de março, último dia do verão de 2014;
 
RESOLVE:
 
Art. 1º - Tornar inexigíveis para advogados e demais agentes do sistema de justiça o uso de paletó e gravata no âmbito das dependências do juízo da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, seja para a prática de atos cartorários, comparecimento a audiências, despachos com o juiz ou quaisquer outros atos.
Art. 2º - Tornar vinculativa a presente portaria, no âmbito deste juízo, seja para o juiz titular que a edita ou para substitutos em suas faltas e impedimentos.
Publique-se.
Registre-se.
Comunique-se à Egrégia Corregedoria Geral de Justiça e à Presidência do Tribunal para os fins dispostos nos atos normativos pelo Tribunal editados.
Cumpra-se.


Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 2014.

 


JOÃO BATISTA DAMASCENO


Juiz de Direito Titular

Tudo passa! Tudo passará!

“Há quem tem opinião formada e não deseja informação. As crenças são irremovíveis com argumentos porque irracionais. Diante de argumentos sólidos não recepcionados, o melhor é pedir desculpas e sair de fininho. Para ser feliz ou para papos entre amigos, ninguém precisa de conhecimento. Mas, se alguém quiser falar sério, há de ter argumento resultante de reflexão. Afinal, para as opiniões — pontos de vista individuais —, basta uma olhada para a aparência. Quem tem opinião fala; e pensa depois. E cada um pode falar o que quiser”. 

Domingo passado, ao ligar a televisão, ouvi o âncora dizer que o cantor Nelson Ned nasceu em 1947 em Ubá (MG), de onde saiu com 17 anos, trabalhou por anos numa fábrica de chocolate, gravou o primeiro disco em 1960 e morreu com 66 anos. A conta não fecha. Se nasceu em 1947 e gravou o primeiro disco em 1960, o fez com 13 anos.

Estão faltando anos, inclusive os da fábrica de chocolate. Mas disto ninguém cuidou, e a informação foi repetida em outros meios de comunicação. Na segunda-feira, dia da cremação, a manchete do jornal ‘Meia Hora’ dizia: “Está provado: não existe mesmo enterro de anão”, o que foi considerado, em debates nas redes sociais, ofensivo e fundamento para processo. As pessoas andam muito sensíveis. A matéria foi inteiramente elogiosa ao ‘pequeno gigante da canção’.

Abordagem humorada, mesmo que considerada inapropriada, não é razão para processo. Abordagens sérias e precisas podem ser exigidas de meios de comunicação que se pretendam informativos; jamais de veículos que mesclam humor e notícia. Além disto, não houve ofensa dirigida a pessoa determinada; portanto, ninguém está legitimado a ajuizar ação. Mas não faltam ‘sabidos’ com seus ‘pareceres’. Há gente demais com opinião e parece faltar gente com conhecimento. Os tribunais não são a panaceia do mundo.
Havemos de construir ou reforçar instâncias mediadoras de relações sociais. O Judiciário é sempre lembrado como responsável por colocar as coisas nos lugares onde se ‘acreditam’ que deveriam estar. Desde impedir piada, proibir concentração de bancários grevistas em ruas onde haja bancos e até mesmo reaver dinheiro entregue inadvertidamente a um estelionatário falido. Não adianta argumentar nem oferecer literatura especializada.

Há quem tem opinião formada e não deseja informação. As crenças são irremovíveis com argumentos porque irracionais. Diante de argumentos sólidos não recepcionados, o melhor é pedir desculpas e sair de fininho. Para ser feliz ou para papos entre amigos, ninguém precisa de conhecimento. Mas, se alguém quiser falar sério, há de ter argumento resultante de reflexão. Afinal, para as opiniões — pontos de vista individuais —, basta uma olhada para a aparência. Quem tem opinião fala; e pensa depois. E cada um pode falar o que quiser. 

Mas, para o conhecimento, são necessárias a análise do essencial, invisível aos olhos, e a formulação de juízos a partir de conceitos que expressem universalidade. O conhecimento é o saber refletido; a opinião, a conversa jogada fora. Mas, ao final, tudo passa. Tudo passará!





Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/01/2014, pag. 14. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-01-12/joao-batista-damasceno-tudo-passa-tudo-passara.html

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ano novo e velhas mazelas


“Política agroexportadora pressiona os povos indígenas, subtraindo-lhes a cultura e a terra. Conflitos em terras indígenas causam mortes e desaparecimentos”.

Chegamos a 2014. Não há sinal de que algo tenha mudado, a não ser o calendário, que propicia a contagem do tempo, as ocorrências e, nas instituições, o ano civil. Este calendário foi instituído pelo Papa Gregório XIII em 1582, em substituição ao calendário Juliano. O ano de 2013 foi desastroso para os direitos e a vida no Brasil. A política agroexportadora pressiona os povos indígenas, subtraindo-lhes a cultura e a terra. Conflitos em terras indígenas causam mortes e desaparecimentos.

O modelo exportador de soja, carne bovina e minério, tal como se fez com o pau-brasil no período pré-colonial, com o açúcar e o ouro no período colonial e o café no império e 1ª República, remete nossas riquezas para o exterior, deixando um rastro de miséria e degradação ambiental. As demandas sociais são jogadas para debaixo do tapete ou reprimidas pela força de um Estado que sempre se afirmou pela coerção, a cada dia mais truculenta.

O número de desaparecidos no Rio de Janeiro continuou a crescer. O sumiço de pessoas é herança da ditadura empresarial-militar de 1964, que convive com o que se denomina Estado Democrático de Direito. Nas comunidades ocupadas militarmente já não se registram tantos autos de resistência, modalidade de homicídio no qual os agentes do Estado justificam-se alegando legítima defesa, mas aumentam o número de desaparecidos. Amarildo é apenas o desaparecido que tem nome.

Neste ano teremos Copa do Mundo, eleições e reforço das forças políticas reacionárias ao nosso processo histórico. A falta de políticas públicas é remediada por políticas assistencialistas. As sementes dos conflitos estão plantadas, e os aparelhos repressivos, violadores dos direitos humanos, estão enraizados na estrutura do Estado.

Falta saúde pública, escola e projeto educacional, transporte público adequado e sobretudo transparência nas tomadas de decisão quanto às políticas públicas. Enquanto o Bolsa Família, programa assistencialista mas necessário, gasta R$ 13 bilhões por ano do orçamento, as pensões militares — incluindo das filhas solteiras que votam na família de deputados que desprezam a democracia, mas que defendem seus direitos — gastam R$ 26 bilhões.

Com as obras para a Copa foram cerca de R$ 40 bilhões, para alegria das empreiteiras e dos políticos por elas financiados. O dinheiro do BNDES entregue ao ex-bilionário amigo do poder esvaiu-se na roleta do sistema financeiro internacional. O ano mudou. Nada mudou. Mas pode mudar.



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/01/2013, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-01-04/joao-batista-damasceno-ano-novo-e-velhas-mazelas.html