domingo, 27 de abril de 2014

Douglas seria Amarildo

“Participando do projeto ‘Diálogos sobre direitos humanos’, organizado pela OAB-RJ, estive ano passado no Caranguejo, favela acima do Pavão-Pavãozinho. Acima também da Favela Vietnã. É o topo do morro e o ápice da pobreza. Ouvi o relato de uma mãe sobre a morte de seu filho adolescente, após tortura e sobre a versão oficial de que “caíra do muro”. Não me surpreendeu a nota da Polícia Civil de que as escoriações no corpo de DG eram compatíveis com queda de muro. A versão era requentada. Já vi versões mais fantasiosas. No Caso Juan, a perícia — desmentida por exame de DNA — apontara que o corpo era de uma menina, e não do menino assassinado e jogado numa lixeira longe de sua casa. Mas a mãe de DG não se intimidou e declarou que seu filho tinha marcas de chutes nas costas e costelas, que não morrera pulando muro, mas pelas mãos do Estado, e que seria um novo Amarildo não fosse a comunidade, protetora e protestadora”.

A morte do dançarino Douglas Rafael, o DG, é mais uma decorrente da política de ‘pacificação’ de quem pensa ser possível construir a paz com a guerra. São raras as mortes por overdose. Mas, a pretexto de cuidar da saúde pública combatendo o comércio e uso de drogas, o Estado humilha e mata os pobres. A política de segurança de confronto aos direitos humanos é um incentivo à atuação ilegal e formação de grupos paramilitares que põe em xeque o Estado de Direito. 

Denúncias de torturas, mortes e desaparecimentos se acentuaram desde o início das ‘pacificações’. O Rio de Janeiro é inovador em matéria de segurança pública desastrosa. Em 1958, o general Riograndino Kruel criou o primeiro esquadrão da morte; no início dos anos 60, Carlos Lacerda condecorou os ‘homens de ouro’ da polícia, e em 1994 o então secretário de Segurança, general Nilton Cerqueira, acusado de matar Carlos Lamarca, instituiu a ‘gratificação faroeste’, prêmio em dinheiro por ‘atos de bravura’: disparos, ferimentos ou mortes. 

Participando do projeto ‘Diálogos sobre direitos humanos’, organizado pela OAB-RJ, estive ano passado no Caranguejo, favela acima do Pavão-Pavãozinho. Acima também da Favela Vietnã. É o topo do morro e o ápice da pobreza. Ouvi o relato de uma mãe sobre a morte de seu filho adolescente, após tortura e sobre a versão oficial de que “caíra do muro”. Não me surpreendeu a nota da Polícia Civil de que as escoriações no corpo de DG eram compatíveis com queda de muro. A versão era requentada. Já vi versões mais fantasiosas. No Caso Juan, a perícia — desmentida por exame de DNA — apontara que o corpo era de uma menina, e não do menino assassinado e jogado numa lixeira longe de sua casa. Mas a mãe de DG não se intimidou e declarou que seu filho tinha marcas de chutes nas costas e costelas, que não morrera pulando muro, mas pelas mãos do Estado, e que seria um novo Amarildo não fosse a comunidade, protetora e protestadora. 

A ditadura empresarial-militar se esmerou em falsificar versões e laudos. O assassinato de Vladimir Herzog, o desaparecimento de Rubens Paiva e a bomba no Riocentro são exemplos do que é capaz o Estado Policial. O Caso Amarildo demonstra como se fabricam versões e se produzem provas para justificá-las. Quem parece tudo saber sobre segurança pública não pode alegar desconhecer estes fatos. 

Não apenas os facínoras que violam os direitos do povo hão de ser responsabilizados, mas também os que autorizam. O Ministério Público e o Judiciário podem se contrapor à violação aos direitos humanos, pois seus papéis estão relacionados à garantia dos direitos; não são partícipes da formulação de políticas públicas. Menos ainda quando atentam contra a dignidade da pessoa humana, fundamento da República. 
 



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/04/2014, pag. 14. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-04-26/joao-batista-damasceno-douglas-seria-amarildo.html



sábado, 26 de abril de 2014

EU DIGO NÃO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES


A SRA. PRESIDENTE (Inês Pandeló) – Agradeço a presença de Soraya Moreno, representante do Gabinete do Deputado Hugo Leal e também da Rádio Catedral; e de Maria Isabel da Conceição Nascimento, representante do Coletivo do Setorial de Saúde do PT no Estado do Rio de Janeiro. Terminando as falas da tribuna, ouviremos agora, na área do direito e juristas, o Dr. Juiz João Batista Damasceno, da Associação de Juízes pela Democracia. 

(Palmas)

O SR. JOÃO BATISTA DAMASCENO – Serei breve. Saudando a Mesa na pessoa da Deputada Inês Pandeló, Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, saúdo todos e todas. Queria fazer uma especial saudação à Senadora Benedita da Silva, de quem não sou eleitor – nunca fui –, pela sua coragem, pela sua vida, pela sua origem, pela sua trajetória, por sua coragem nos depoimentos que sempre presta. Ontem, quando ouvi sobre essa menina de nove anos – não vi a reportagem –, fiquei muito emocionado. Não sabia que estaria com a senhora hoje, mas me lembrei da senhora, pois uma vez a ouvi falando que aos sete anos havia sido vítima de violência sexual. A ocorrência desses fatos contra as mulheres, contra as moças e, sobretudo contra as meninas é muito grave. A senhora contribui para a eliminação dessa violência por ter a coragem de vir a público relatar esses fatos. (Palmas) Então, minha saudação especial à senhora por sua determinação de contribuir com esse fato.

Quero ser muito breve, embora, talvez, não seja possível, mas vou falar dentro do tempo de dez minutos.  Vamos comemorar dentro de três dias o Dia Internacional da Mulher. De onde vem essa data, essa comemoração, esse dia? Da história das tecelãs, das operárias da fábrica que teria pegado fogo nos Estados Unidos? Parece que existe uma origem mais distante: a luta das mulheres operárias pelos seus direitos no momento da Revolução Industrial. Parece que essa é a data mais remota da comemoração desse dia: a luta das mulheres operárias no momento da afirmação do direito e no momento de uma violência não especificada no incêndio de uma fábrica, mas de todas as violências que se pratica contra os excluídos, contra os pobres, contra os trabalhadores, contra os miseráveis, contra o campesinato... 

Estamos falando hoje de uma violência muito específica. Estamos aqui para engrossar essa campanha contra a violência à mulher, mas vivemos num mundo de muita violência: a violência institucionalizada, a violência das instituições, a violência da rua, a violência do trânsito, a violência no trato, a violência da indiferença e a violência que hoje está institucionalizada no nosso Estado. Mais de um orador chegou a tocar nela aqui, hoje, e eu não posso deixar de falar da violência do discurso oficial. 

O Governador[1], no ano passado, numa infeliz declaração, quando pensava que a entrevista já tinha terminado, disse que o ventre das mulheres faveladas é uma fábrica de reposição de mão-de-obra para o tráfico. (Palmas) Eu não estou me referindo a um Governador do passado, estou me referindo ao Governador em exercício do mandato atualmente no Estado do Rio de Janeiro, que disse que o ventre das mulheres faveladas é fábrica de reposição de mão-de-obra para o tráfico. Nessa época, Senadora Benedita, eu me lembrei da senhora também. 

Vamos falar de outras violências: a violência da política de extermínio que está em exercício no Estado do Rio de Janeiro[2]. Essa violência não vitima só aqueles a quem ela mata, não, vitima as mães daqueles que morrem nessa política de extermínio, vitima as irmãs daqueles que morrem, não é isso, Margarida[3]? As mães te procuram, as irmãs te procuram, e é uma violência. Não estou apontando especificamente para os planos de política pública. Há um modelo de política que quer erradicar a criminalidade quando crime é intrínseco a toda a sociedade, e ele não pode ser erradicado. Não existe guerra contra o crime. A guerra começa e acaba e tem um motivo específico para ser estabelecida. Crime não se combate com guerra, crime tem uma outra forma de ser tratado, porque não pode ser erradicado. 

Não vou entrar no discurso religioso, mas a transgressão é intrínseca ao ser humano. A lei mais irrevogável das que conheço é a da gravidade e os homens e as mulheres a revogaram. Hoje, ficam passeando por aí de avião, de foguete... Até a lei da gravidade, que era irrevogável, hoje está suplantada, portanto, essa transcendência da humanidade é intrínseca à própria humanidade. Não vamos conseguir com política alguma erradicar as transgressões, nem mesmo eliminando aqueles que transgridem. Por isso, fica aqui esse posicionamento – que não é pessoal, é da Associação Juízes para a Democracia – contra a política de extermínio que está sendo implantada atualmente e que vitima aqueles que morrem mais as mães e as irmãs daqueles que morrem.

Ainda estou em 1/3 do que tenho que falar. Vou correr para poder terminar.

Acho um momento muito importante o do lançamento dessa campanha, porque reforça não só a luta das mulheres, e sim a luta das mulheres na aliança com os homens contra essa nefasta prática social que é a violência permanente contra as mulheres. É óbvio que é preciso implementar mais direitos para as mulheres, para defesa das suas garantias de uma vida feliz. É preciso instrumentalizar as mulheres, e o orador que me antecedeu nos deu alguns indicativos, desde essa questão da impessoalidade. É fundamental chegar-se a um órgão e impessoalmente ser bem-tratado, não precisar de uma recomendação especial para o atendimento. Mas há muitas outras coisas que precisam ser feitas para instrumentalizar a defesa dos direitos das mulheres. 

Com relação à punição dos agressores, está aí a Lei Maria da Penha, que está chegando, está sendo implementada. Há aqueles que temem o discurso punitivo, mas é um instrumento também de que se deve lançar mão, subsidiariamente, quando as outras políticas não resultarem eficazes. Aí, sim, claro, a violência legítima precisa ser exercitada, e para tanto a Lei Maria da Penha.

Acho muito importante essa campanha direcionada aos homens. Falei outro dia com a Margarida[4], falei hoje com a Adriana[5], minha colega juíza da violência doméstica do Rio de Janeiro, sobre a cultura da misoginia. Converso com homens, falo com os meus amigos. Há homens que não gostam de mulher – não é no sentido sexual, não, porque nesse sentido eles gostam. Eles contam piadas de mulher, falam mal de mulher, tratam a mulher como um ser secundário, inferior. Eu acho que essa questão da cultura misógina precisa ser atacada. É preciso lembrar aos homens, primeiro, que eles têm irmãs, têm mãe – alguns talvez não tenham[6]. 

O pedido foi para que eu fizesse um depoimento pessoal: eu gosto muito das mulheres! Eu tive avós, tive mãe, tenho irmãs, tenho tias. Fui criado numa família de mulheres, que me ensinou a respeitar as mulheres, a tratar as mulheres com igualdade. Nesse sentido, acho que é muito importante difundir uma cultura antimisógina para que os homens passem a gostar de mulheres; para que um médico atenda uma mulher em seu consultório e a trate com respeito; para que um policial, homem ou mulher, receba uma mulher na delegacia e a trate com respeito; para que um juiz, numa cultura varonil com a qual até as mulheres embrutecem, passe a tratar as mulheres, os homens, as crianças, os doentes e os velhos com o respeito e com a dignidade que a pessoa humana merece. Esta é uma questão muito importante.
Parabéns à Deputada Inês Pandeló, à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher por essa campanha endereçada aos homens, para que possamos minorar essa cultura misógina que está difundida em nossa sociedade.

Eu poderia tratar aqui também, mas não será possível, dos fatores da violência cotidiana. A violência é a ponta da lança, mas da ponta até o local onde a força se faz para que ela atinja há muita coisa. Vivemos uma cultura em que as pessoas estão raivosas. Muda um novo vizinho para o seu andar e você reclama que vai ser mais uma pessoa fazendo barulho, quando você poderia recepcioná-lo bem, como mais um companheiro que teria para dar bom dia ou boa tarde. Vivemos a cultura da violência e do isolamento, da tentativa do isolamento, tal como se isso fosse possível para a humanidade. 
Há muitos fatores de violência e precisaria de tempo para dissecá-los; há os fatores da judicialização, da briga permanente, do desagrado permanente. Aí entra a questão, que já foi falada aqui hoje, das políticas públicas. Parece-me que elas são geradas e gestadas para a infelicidade. Chegue a um hospital público, e falo porque lido cotidianamente com essa questão. Vejamos o caso do Hospital da Posse, por exemplo, dos hospitais públicos da Cidade do Rio de Janeiro, dos postos de vacinação. Não é possível imaginar que uma pessoa doente possa receber aquele tratamento. Não é possível imaginar que um médico que cuida de uma pessoa doente possa receber os tratamentos que têm recebido. 

Estou dando exemplos da medicina, mas poderia dar outros, como as políticas públicas da educação. Sou professor e sei: há o aluno que entra em sala agressivo, bate no professor. O professor ganha uma miséria, a diretora é indicada pelo cabo eleitoral de um bairro que é ligado a não sei quem, que é líder comunitário, que tem uma ligação com quem ninguém sabe mais quem é. 

É uma política de violência, é uma rede de violência institucionalizada que precisamos repensar, pois não adianta falarmos apenas das questões pontuais. Acho que precisamos, no barato, de duas coisas: pensar em relações sociais antimisóginas e gestar políticas públicas que propiciem a felicidade. Se existirem homens não-misóginos, que gostem de mulheres, eles jamais baterão nelas; não baterão nas mães, nas irmãs, nas vizinhas e muito menos nas mulheres que fazem carinho neles.

Eu digo não à violência contra as mulheres porque gosto muito das mulheres. 

Muito obrigado. 

(Palmas)

Extrato da ata da  audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro/ALERJ, intitulada “EU DIGO NÃO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES”. Reunião realizada no dia 05 de março de 2009, às 10 horas no Plenário. Disponível no link: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/compcom.nsf/e36c0566701326d503256810007413ca/a986fa6a8f6a39898325757d0075f085?OpenDocument




[1] Referência a entrevista concedida pelo Governador Sérgio Cabral Filho ao jornalista Aluizio Freire, do jornal O Globo, publicada em 24/10/2007.
[2] Dirigindo-se ao Dr. Gilberto Ribeiro, delegado de polícia, então chefe da Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
[3] Dirigindo-se à Dra. Margarida Pressburger, então presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.
[4] Dra. Margarida Pressburguer.
[5] Juíza de Direito Adriana Ramos.
[6] Provocação a um dos componentes da mesa.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O Estado contra o povo

“Não há inteligência nem eticidade nos governantes. Remoções sob o fundamento de imprescindibilidade para obras públicas apenas se destinam a afastar os pobres das áreas nobres. Removidos são deixados ao relento, como foram os desabrigados da Favela da Telerj. Na madrugada, sirenes da Guarda Municipal impediam o sono dos miseráveis que permaneciam na chuva à frente da sede da prefeitura, reclamando direito constitucional de moradia. A parceria entre as três esferas de poder — municipal, estadual e federal — não tem sido em proveito dos pobres, mas da cartolagem.”

A presidenta Dilma Rousseff é a comandante suprema das Forças Armadas. Ela nomeia livremente o ministro da Defesa e só ela pode autorizar seu emprego no papel de polícia e contra a sociedade. Foi heroica sua atuação quando, aos 20 anos, acreditou que poderia vencer a truculência do regime empresarial-militar. Mas perdeu, juntamente com aqueles que tentaram derrubar o regime pela força, e suas ações serviram para legitimar o acirramento da repressão. Muitos foram presos, torturados, mortos, esquartejados e desaparecidos. A abertura política, que não significou efetiva democratização, decorreu de arranjo dos próprios setores conservadores que promoveram o golpe. Nos 50 anos do golpe, a presidenta continua acreditando na força como medida capaz de resolver os problemas sociais.

A força é o último recurso da autoridade para se recolocar no lugar desejado, a partir do momento em que é desafiada, deslegitimada ou desacatada. Mas a política de geração de miséria e ausência de políticas sociais é que deslegitima a autoridade. Ninguém vivendo na miséria — material ou existencial — legitimará o poder que lhe subordina. No máximo tolera por algum tempo. 

Não há inteligência nem eticidade nos governantes. Remoções sob o fundamento de imprescindibilidade para obras públicas apenas se destinam a afastar os pobres das áreas nobres. Removidos são deixados ao relento, como foram os desabrigados da Favela da Telerj. Na madrugada, sirenes da Guarda Municipal impediam o sono dos miseráveis que permaneciam na chuva à frente da sede da prefeitura, reclamando direito constitucional de moradia. A parceria entre as três esferas de poder — municipal, estadual e federal — não tem sido em proveito dos pobres, mas da cartolagem. 

Não adianta ao príncipe construir fortalezas se não tiver o apoio do povo. E não há como evitar o dissenso do povo se o produto da riqueza social não lhe é partilhado. Este dissenso é o que fortalece as instituições, pois lhe possibilita encontrar formas de resolução dos problemas sociais sem apelo para a força, para a truculência ou a eliminação física dos que se opõem. A paz sem voz não tem vida; é a paz dos cemitérios. Aqueles que governaram sob as armas por 21 anos, antes que fossem apeados do poder, promoveram transição lenta, gradual e segura. Com isto, salvaram suas cabeças e se garantiram a impunidade pelos crimes cometidos. Não esticaram a corda até que arrebentasse. Souberam ver que as armas — muito úteis contra os inimigos externos — não adiantam por muito tempo quando usadas contra o povo. Ao contrário, apenas o fortalecem e o agrupam pelo seu inconformismo. 
 


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/04/2014, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-04-19/joao-batista-damasceno.html

domingo, 13 de abril de 2014

Defensores e autonomia

“A Defensoria Pública foi instituída para o povo e para a defesa dos interesses dos necessitados, razão da sua existência. Seu funcionamento há de obedecer à representação outorgada ao defensor público que assiste a parte, tornando-se odiosa qualquer ingerência de agentes públicos investidos transitoriamente em cargos de mando, notadamente diante da possibilidade de agirem norteados pelas razões dos governantes.”

Na obra ‘Rei Henrique IV’, de William Shakespeare, o conspirador Ricardo faz planos para sua chegada ao poder e afirma: “A primeira coisa que faremos será matar todos os defensores do povo.” Cooptar ou matar são formas de impedir que aqueles que têm o encargo de defender o povo o façam. Shakespeare, o maior escritor da língua inglesa, morreu no mesmo dia que Miguel de Cervantes, o maior escritor da língua espanhola. Ambos em 23 de abril de 1616. Na obra de ambos, encontramos narrativas de prepotência dos governantes, subornos e injustiça contra os pobres. A defesa dos interesses do povo é o primeiro degrau para o acesso à Justiça e o primeiro direito que os déspotas tentam suprimir.

A Organização dos Estados Americanos (OEA), durante a 41ª Assembleia-Geral, realizada na República de El Salvador, aprovou resolução dispondo sobre as garantias para o acesso à Justiça e o papel dos defensores oficiais. O documento foi o primeiro ato normativo aprovado pela OEA abordando o tema do acesso à Justiça como direito autônomo, que permite exercer e proteger outros direitos, além de impulsionar o papel da Defensoria Pública Oficial como ferramenta eficaz para garantir o acesso à Justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, notadamente em face do capital e do Estado.

A defesa dos assistidos há de ser substancial e efetiva, e não apenas formal. Isto tem levado à postulação de atendimento à recomendação da OEA visando a que sejam adotadas medidas que garantam aos defensores públicos independência e autonomia funcional, afastando-se ingerências de administradores ou governantes sobre as atuações, o que poderia resultar em prejuízo para os assistidos.

A Defensoria Pública foi instituída para o povo e para a defesa dos interesses dos necessitados, razão da sua existência. Seu funcionamento há de obedecer à representação outorgada ao defensor público que assiste a parte, tornando-se odiosa qualquer ingerência de agentes públicos investidos transitoriamente em cargos de mando, notadamente diante da possibilidade de agirem norteados pelas razões dos governantes. O Código Penal define como crime a mudança de lado pelo advogado ou o patrocínio recíproco dos interesses das partes em litígio. São os crimes de tergiversação ou patrocínio simultâneo. A preocupação com problemas da municipalidade, do Estado ou dos organizadores de grandes eventos, em prejuízo dos interesses dos assistidos, por agente publico encarregado de defender os interesses dos pobres, tangencia a incidência nestas condutas descritas em lei como crime.


 

Publicada originariamente no jornal O DIA, em 13/04/2014, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-04-12/joao-batista-damasceno-defensores-e-autonomia.html

domingo, 6 de abril de 2014

Expressão e Justiça

“O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sediará amanhã e terça o seminário ‘A liberdade de expressão e o Poder Judiciário’. Depois do arquivamento do procedimento disciplinar instaurado em decorrência do exercício de tal liberdade, traduzida na colocação em gabinete de juiz da obra artística ‘Por uma cultura de paz’ do cartunista Carlos Latuff, o Tribunal do Rio está legitimado a sediar tal evento”.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sediará amanhã e terça o seminário ‘A liberdade de expressão e o Poder Judiciário’. Depois do arquivamento do procedimento disciplinar instaurado em decorrência do exercício de tal liberdade, traduzida na colocação em gabinete de juiz da obra artística ‘Por uma cultura de paz’ do cartunista Carlos Latuff, o Tribunal do Rio está legitimado a sediar tal evento.

A qualidade dos votos vencedores credencia o tribunal a discutir e defender as liberdades públicas. Igualmente está legitimado em decorrência das decisões pelas quais concedeu liberdade a manifestantes injustamente acusados de associação para a prática de crimes, quando apenas exercitavam direito constitucional de liberdade de reunião e de expressão. 

No seminário se debaterá o papel do Poder Judiciário na garantia da liberdade de expressão. Ele resulta de parceria entre o Supremo Tribunal Federal, as Relatorias Especiais de Liberdade de Expressão das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco. 

A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos vinha apresentando preocupação com as violências praticadas contra manifestantes e jornalistas durante as jornadas sociais do ano passado, quando, notadamente no Rio, se pretendeu criminalizar o exercício de tal direito constitucional. A ocupação da cidade é expressão da cidadania, e a truculência contra manifestantes ou jornalistas é expressão da violência contra a democracia. 

O seminário terá entrada gratuita, mas vagas limitadas em razão do tamanho do auditório. O presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, disse que “a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são direitos fundamentais para a construção de uma sociedade democrática”. E mais: “Além disso, contribui decisivamente para que os indivíduos possam formar livremente suas próprias convicções sobre temas de seu interesse particular e de sua comunidade.” 

Para a Unesco, o Poder Judiciário é essencial na defesa e consolidação da liberdade de expressão no Brasil, e o debate sobre os vários aspectos da liberdade de expressão é de extrema importância em todas as democracias.

Quando ainda pendem, no Tribunal de Justiça do Rio, julgamentos de procedimentos instaurados em razão de manifestação do pensamento por juiz e até por aula proferida sobre direito constitucional e limitação do poder do estado, o seminário é uma luz que haverá de clarear os ambientes ainda tomados pela obscuridade autoritária.




 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/04/2014, pag. 12. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-04-06/joao-batista-damasceno-expressao-e-justica.html