segunda-feira, 27 de julho de 2015

O tamanho do roubo


“juízes têm no nosso sistema o papel de garantidores dos direitos. Numa sociedade na qual os juízes não tenham este papel eles não precisam existir, pois os inquisidores podem tudo para obter a ‘prova’ do que estão convencidos, e os linchadores já exercem com eficiência a função de realizar justiçamento fundado em sentimento momentâneo, despidos da racionalidade civilizatória”.

Há uma década, poucos livros tinham a palavra ‘corrupção’ no título. Hoje é difícil manter-se atualizado com as constantes publicações. Mas quase todos têm a mesma abordagem discursiva e vazia do ‘udenismo’. Tal como nos períodos que antecederam à tentativa de golpe que levou Getúlio Vargas ao suicídio e ao golpe de 1964, o assunto está na mídia, nas bancas e nas livrarias. Os personagens que alardeavam o tema e promoviam acusações, cruzadas e golpes enriqueceram ‘vendendo moralidade’. Os personagens e os interesses de hoje são quase todos os de outrora. O moralismo é a ética de quem não tem ética republicana.

Até juízes estão embalados na luta contra a corrupção e fundaram uma associação para isto. Mas juízes têm no nosso sistema o papel de garantidores dos direitos. Numa sociedade na qual os juízes não tenham este papel eles não precisam existir, pois os inquisidores podem tudo para obter a ‘prova’ do que estão convencidos, e os linchadores já exercem com eficiência a função de realizar justiçamento fundado em sentimento momentâneo, despidos da racionalidade civilizatória. Na luta contra a corrupção, presidentes de tribunais têm usado o Diário Oficial para comunicar a criação da referida entidade privada. Não é a primeira vez que entidades privadas se envolvem com os tribunais e compartilham suas entranhas, dificultando a distinção entre os interesses público e privado. Um tribunal estadual, em tempos passados, se associou a uma ONG presidida por um desembargador aposentado. A ONG recebia do tribunal verba pública a título de mensalidade, ocupava suas dependências, e seu presidente exercia a advocacia, até mesmo contra o tribunal como noticiou O DIA , sem qualquer desmentido.

Aristóteles, na obra ‘Da geração à corrupção’, trata o mundo concreto como forma corrompida do mundo ideal com a concepção transcendente de justiça, verdade e belo herdada de Platão. Mas temos limitado o conceito de corrupção ao suborno, traduzido no pagamento indevido para obter vantagem indevida ou afastar a consequência por transgressão. Este é um dos tipos de corrupção tipificados em lei. Além dos casos legalmente definidos é também corrupção tudo o que não é próprio de recebimento ou atribuição e que o compadrio, a parentela e o patrimonialismo dificultam a percepção. O suborno dado ao guarda de trânsito para fugir da multa pela falta de um equipamento obrigatório é corrupção, mas também a elaboração da lei que o obriga, se desnecessário. O roubo num bote a remo mediante ameaça com um canivete tem a mesma natureza da apropriação do petróleo do mundo em grandes petroleiros mediante ameaça com bomba. O tamanho da apropriação não altera a natureza do que se pratica. A pior corrupção é a institucionalizada e que a ideologia nos faz acreditar lícita.
 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Direito à moradia


“Reportagem do DIA demonstrou que remoções para construção do BRT não serviram para tal, pois este passou longe das áreas-objeto das remoções e que hoje estão cercadas e sem uso. Tal como no início do século 20, quando o prefeito Pereira Passos expulsou os pobres do Centro para os morros ou subúrbio, a pretexto de higienização, a política fundiária no presente momento tem igualmente o objetivo de afastamento dos pobres das áreas valorizadas, a fim de satisfazer a especulação imobiliária, aprofundando a discriminação social na ocupação do solo”.

O prefeito Eduardo Paes, em entrevista sobre a remoção da Vila Autódromo, disse que a área fora pública e que não poderia ter sido doada para ninguém. A doação fora por 100 anos. O Estado firmou termo de concessão real de uso e garantia direito à moradia por algumas gerações. O que a cidade do Rio está vivenciando é o afastamento dos pobres das áreas valorizadas e uma política que intensifica o apartheid social no Brasil.

Na sua fala, o prefeito demonstrou desconhecimento de nossa história. Qualquer estudante sabe que Portugal se apossou do território que batizou de Brasil e assim, na origem, toda terra era pública. As capitanias hereditárias são exemplos de doações feitas pelo rei. Na verdade, tal como na Vila Autódromo, não se tratava de doação. As capitanias eram concessões de uso do solo, perpétuas e vitalícias, transmissíveis aos herdeiros. Mas condicionadas ao uso da terra. No caso da Vila Autódromo deveria servir para moradia, direito inscrito na Constituição.

A Lei de Terras editada por D. Pedro II, em 1850, disse que toda propriedade imóvel no Brasil era pública, salvo as que tivessem entrado no domínio privado. Este conceito se mantém. Significativas áreas de domínio privado decorrem da grilagem de terras públicas, sempre com conivência de agentes públicos. Assim foi com o latifúndio e com a especulação imobiliária de propriedades urbanas.

Se prevalecesse o argumento de que terra pública não pode ser entregue a particulares, tal como se argumentou no caso da Vila Autódromo, teríamos a possibilidade de expropriação de toda propriedade imóvel no Brasil. O que o prefeito não falou é que aquela área que hoje é nobre não deveria ter sido doada a pobres. O que está acontecendo no Rio é o desalijamento destes a fim de satisfazer à especulação ou constituir reservas imobiliárias.

Reportagem do DIA demonstrou que remoções para construção do BRT não serviram para tal, pois este passou longe das áreas-objeto das remoções e que hoje estão cercadas e sem uso. Tal como no início do século 20, quando o prefeito Pereira Passos expulsou os pobres do Centro para os morros ou subúrbio, a pretexto de higienização, a política fundiária no presente momento tem igualmente o objetivo de afastamento dos pobres das áreas valorizadas, a fim de satisfazer a especulação imobiliária, aprofundando a discriminação social na ocupação do solo.

 


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/07/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-07-18/joao-batista-damasceno-direito-a-moradia.html

 

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Não vai ter golpe!

A semana transcorreu com alardes de golpe de Estado. Análise do Brasil na década de 50 e no início da de 60 demonstra similitude dos discursos, em realidades diversas. Não há condições para que tenham êxito os algozes da democracia. O golpe de 1964 foi articulado por industriais, por banqueiros, por proprietários rurais e pelo capital internacional. A intervenção militar com apoio das lideranças políticas conservadoras foi apenas o desfecho das pretensões do capital. Próceres da política aparentemente democráticos também tinham interesse no afastamento dos trabalhistas e da esquerda do poder e apoiaram o golpe empresarial-militar. Foi o caso de Ulysses e JK. Tancredo, por ser parente de Vargas e compreender que o poder que se toma com o auxílio das armas pertence ao dono delas, foi uma das poucas lideranças do campo conservador que não aderiram ao golpe de 1964.
 
A UDN, partido formado por homens letrados ligados ao capital, não conseguia hegemonia pela via democrática. Daí suas reiteradas tentativas de golpe, dentre eles o apoio ao Manifesto dos Coronéis em 1953, que levou à queda de Jango do Ministério do Trabalho depois de aumento do salário mínimo; a República do Galeão, que propiciou o suicídio de Vargas, em 1954; a tentativa de impedir a posse de JK em 1955; as revoltas na Aeronáutica em Jacareacanga em 1956 e em Aragarças em 1959; os entraves à posse de Jango em 1961, até o 1º de abril de 1964. Todas demonstraram que o compromisso da classe dominante com as instituições subsiste enquanto contemplados seus interesses.
 
Naquele período havia ameaça real aos interesses do capital, ante compromissos populares de Brizola e Jango. Os projetos — educacional com Darcy Ribeiro, de desenvolvimento do Nordeste com Celso Furtado, de erradicação da fome com Plínio Sampaio, de reforma agrária com João Pinheiro e Almino Afonso — se direcionavam no sentido da emancipação popular e descontentavam a classe dominante.
Agora, não. Nunca os bancos ganharam tanto dinheiro; a dívida é regiamente paga, com o sacrifício dos direitos dos trabalhadores; os empresários se fartam com verbas do BNDES, ainda que a crise tenha reduzido a farra; as empresas de comunicação continuam a receber verbas de publicidade, ainda que queiram mais; o capital internacional, volátil, não tem controle, e os serviços públicos foram privatizados para satisfação dos empresários. Os discursos do ex-presidente FHC, de Aécio Neves e de Roberto Freire em favor do golpe é conversa fiada de quem precisa da mídia para ter a existência lembrada. Não vai ter golpe!
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/07/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-07-11/joao-batista-damasceno-nao-vai-ter-golpe.html

terça-feira, 7 de julho de 2015

Mandioca e carvalho

“A mandioca, tal como a batata, sacia a fome. Atende aos reclamos do estômago. Mas apenas resolve o problema imediato. O futuro se constrói com o que é sólido e duradouro. Além da mandioca é preciso plantar árvores frutíferas para as gerações futuras.
“A Câmara dos Deputados acaba de aprovar em primeiro turno a redução da maioridade penal. O fisiologismo e a pressa em forrar estômagos famintos e goelas escancaradas não permitiram ver que a medida é o plantio da espécie venenosa da mandioca, que haverá de intoxicar a todos. Uma minoria demonstrou que o futuro se faz plantando árvores frutíferas e carvalhos, que demoram para ser colhidos, mas que com eles se constroem casas permanentes, e não apenas choupanas”.
A saudação da presidenta Dilma à mandioca ainda ecoa entre seus críticos, incapazes de relativizar sua dificuldade de improviso. Inegável que a mandioca foi fonte alimentar importante para as populações originárias. Muitos dos mitos indígenas, modos de viver e cultura podem ter sido plasmados pela apropriação da raiz. Os povos têm sua cultura relacionada com seus hábitos alimentares. Alguns vegetais, de rápida produção, impediram que populações morressem de fome. O milho nas Américas do Norte e Central e a batata nos Andes tiveram direta contribuição na cultura dos astecas, maias e incas. E a mandioca para os tupinambás.
Eduardo Frieiro, no livro ‘Feijão, Angu e Couve’, pretendeu relacionar o hábito alimentar e a cultura mineira. Mas este intérprete do Brasil, não concebendo o que é a mineiridade, acabou por concluir que se trata de comida que se come em todo lugar e que o brasileiro não tem hábitos alimentares ‘sofisticados e civilizados’. Seu elogio ao bife com batatas fritas, para ele coisa de ‘hábitos superiores’, demonstra um pensamento colonizado, sem entender a riqueza cultural brasileira, com ampla diversidade, inclusive culinária.
Na Europa da Idade Média, quando as condições climáticas quebravam a produção agrícola, morria-se de fome. Os castelos, onde se guarneciam alimentos, eram circundados com fossos a fim de impedir a aproximação das hordas de famintos. Os mosteiros ficavam no topo de montanhas, em lugares de difícil acesso. A segurança que se pretendia não era apenas contra os inimigos, mas sobretudo contra os pobres que perambulavam em busca de comida. Foi a batata que salvou o mundo da fome e, a partir da sua disseminação pelo mundo, a questão decorreu da distribuição de renda, e não mais da produção alimentar. Banco genético de batatas registra milhares de espécies, todas advindas dos Andes peruanos.
A mandioca, tal como a batata, sacia a fome. Atende aos reclamos do estômago. Mas apenas resolve o problema imediato. O futuro se constrói com o que é sólido e duradouro. Além da mandioca é preciso plantar árvores frutíferas para as gerações futuras.
A Câmara dos Deputados acaba de aprovar em primeiro turno a redução da maioridade penal. O fisiologismo e a pressa em forrar estômagos famintos e goelas escancaradas não permitiram ver que a medida é o plantio da espécie venenosa da mandioca, que haverá de intoxicar a todos. Uma minoria demonstrou que o futuro se faz plantando árvores frutíferas e carvalhos, que demoram para ser colhidos, mas que com eles se constroem casas permanentes, e não apenas choupanas.
 

Publicado originamente no jornal O DIA, em 05/078/2015, pag. E6. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-07-05/joao-batista-damasceno-mandioca-e-carvalho.html