segunda-feira, 18 de julho de 2016

A morte de Ferreira Gullar


“O poeta morreu. Mas segue insepulto esbravejando contra a esperança. Talvez porque não lhe avisaram do seu falecimento. A noite nos trópicos não lhe tem sido veloz, e ele se arrasta pela escuridão ao lado do passado, também insepulto, que insiste ser presente. O assassinato de índios, de sem-terra e de seus advogados, pelo latifúndio, e a morte de homens analfabetos e negros de vida curta não o sensibilizam mais. O poeta morreu! Um clone seu passeia entre crônicas e colunas, sem querer saber de onde vem a farinha com a qual são feitas coxinhas ou o óleo na qual são fritas”.
Folheando livro presenteado pelo historiador Rubin Aquino por ocasião dos 80 anos de fundação do PCB, na contracapa encontrei poema de Ferreira Gullar, onde dizia que “eles eram poucos e nem puderam cantar alto a Internacional naquela casa de Niterói em 1922. Mas cantaram e fundaram o partido. O PCB não foi o maior partido do Ocidente, nem mesmo do Brasil. Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo”. No rádio, Adriana Calcanhotto cantava ‘Vambora’ e falava da noite veloz. Fui à estante procurar Ferreira Gullar, poeta que a inspirara. Ele estava lá, dentro do livro.
Fui apresentado à história por Aquino. Estive no seu funeral. Tenho saudade tanto dele quanto do poeta Ferreira Gullar, para quem “se morro, o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto, se apago a lâmpada”, e que no poema ‘Não há vagas’ disse que o preço do feijão não cabe num poema, nem o funcionário público com seu salário de fome e sua vida fechada em arquivos, nem o operário que esmerilha seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras.
Mas no mundo há muitas armadilhas capazes de matar até um poeta. E o que é armadilha pode ser refúgio, e o que é refúgio pode ser armadilha. E o poeta, que era homem comum de carne e memória, de osso e esquecimento, que andava a pé, de ônibus, de taxi, de avião e tinha a vida soprando dentro de si, pânica, feito a chama de um maçarico, perdeu a memória e morreu. Ele escrevera que o açúcar branco adoça o café e Ipanema, sem ser fabricado por quem o consume, vende ou pelo dono da usina. Mas, em instalações escuras, por homens escuros de vida amarga, que não sabem ler e morrem de fome nos canaviais aos 27 anos.
O poeta morreu. Mas segue insepulto esbravejando contra a esperança. Talvez porque não lhe avisaram do seu falecimento. A noite nos trópicos não lhe tem sido veloz, e ele se arrasta pela escuridão ao lado do passado, também insepulto, que insiste ser presente. O assassinato de índios, de sem-terra e de seus advogados, pelo latifúndio, e a morte de homens analfabetos e negros de vida curta não o sensibilizam mais. O poeta morreu! Um clone seu passeia entre crônicas e colunas, sem querer saber de onde vem a farinha com a qual são feitas coxinhas ou o óleo na qual são fritas.
 

 

Beltrame, é hora de partir!


“Pela primeira vez na história da violência do Rio as estatísticas registram mais mortes de policiais em serviço que fora dele. Anteriormente morriam mais policiais violentamente em razão de atividades particulares e reação a roubos que em serviço. O acirramento do conflito foi propiciado pela política de extermínio implantada em 2007, sob o comando do governador Sérgio Cabral e do secretário Beltrame”. 
Pela primeira vez na história da violência do Rio as estatísticas registram mais mortes de policiais em serviço que fora dele. Anteriormente morriam mais policiais violentamente em razão de atividades particulares e reação a roubos que em serviço. O acirramento do conflito foi propiciado pela política de extermínio implantada em 2007, sob o comando do governador Sérgio Cabral e do secretário Beltrame. 
Carro-chefe de um governo sem programa, anão ser os grandes eventos que enriqueceram as empreiteiras e políticos inescrupulosos, as UPPs foram instaladas após chacinas que abriram o espaço para a ocupação militar, a começar pelas da Coreia e do Alemão. A aliança que se formou em torno dos grandes eventos e de tal política genocida afastou qualquer discussão sobre o que é segurança pública e seus fundamentos. Dirigentes de organismos que têm a incumbência de defesa de direitos aliaram-se aos governantes, em razão de rasos interesses eleitoreiros. A destituição pelo presidente da OAB-RJ, em 2007, da Comissão de Direitos Humanos que acompanhava a apuração das chacinas é emblemática. 
A pretexto de política de segurança disseminaram-se a violência estatal e a arapongagem. As polícias Militar e Civil foram submetidas a regime de dominação espantoso. Tivemos quase um comandante da PM por ano desde 2007, e deslocou-se uma delegacia para a estrutura da Secretaria de Segurança, fora dos quadros da Polícia Civil, sem subordinação ao chefe de polícia. 
Quem vir uma tartaruga no galho de uma árvore há de procurar saber quem a colocou lá, pois tartarugas não sobem em árvores. De onde surgiu o secretário Beltrame, não sabemos, assim como não sabemos quem o mantém no cargo e a razão de a maioria dos secretários de segurança do país ser de delegados federais, cargo que o secretário ocupa em razão de decisão judicial; para onde irá após as Olimpíadas, também não sabemos. Tampouco podemos dizer se continuará delegado ou se retomará ao cargo de agente. Mas as sequelas deixadas pela política por ele implementada e a dificuldade de reorganização dos órgãos de segurança serão sentidos no dia a dia dos fluminenses. Diante da crise na segurança que se vivência e se agravará com a permanência do secretário, é hora de sua partida.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/07/2016, pag. 11.

 

Magistrados não são palhaços


“Em data recente, o jornalista Elio Gaspari escreveu que “os hierarcas de Brasília costuravam as fantasias de palhaço para quem fosse às ruas festejar o juiz Moro”. Por todo o país magistrados vestiram togas e se manifestaram em homenagem ao juiz Sérgio Moro. Algumas manifestações ocorreram em logradouros públicos e outras dentro de prédios do Poder Judiciário’.
A decapitação do rei Luiz XVI em 1792 deveria ser o marco da Revolução Francesa. O regicídio foi o evento mais marcante daquele período. Mas o marco é a Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, masmorra onde o rei e seus juízes amontoavam os inimigos do regime.
Na Inglaterra, em 13 de fevereiro de 1689, o rei Guilherme de Orange assinara a Declaração dos Direitos, um dos mais importantes documentos políticos modernos. Voltou da Holanda para ser coroado num barco com o filósofo John Locke, que o aconselhava a não se colocar acima das circunstâncias e aceitar que era rei por vontade dos seus súditos, que lhe poderiam destronar ou cortar sua cabeça, como fizeram em 1649 com seu avô, o rei Carlos I.
Antes da Revolução Francesa de 1789, a Revolução Gloriosa inglesa de 1688 retirara a soberania do trono e instituíra a soberania popular. Não foi com reverência ao poder e aos poderosos que ocorreram as mudanças na história. Foram os conflitos, as desobediências e as tensões que forçaram as classes dominantes a reconhecer os direitos do povo.
Depois da Declaração dos Direitos de 1689, os soberanos tiveram que dividir o poder com o Parlamento, reconhecer o direito dos nobres perante o trono e assegurar os direitos dos homens comuns.
No Brasil, desde as ‘Jornadas de Junho’ de 2013, o povo tem estado na rua. Às vezes, por manipulações midiáticas, equivocadamente defendendo interesses contrários aos seus. Até juízes têm se manifestado politicamente e em homenagem ao juiz Sérgio Moro, às vezes inadequadamente vestindo toga.
Em data recente, o jornalista Elio Gaspari escreveu que “os hierarcas de Brasília costuravam as fantasias de palhaço para quem fosse às ruas festejar o juiz Moro”. Por todo o país magistrados vestiram togas e se manifestaram em homenagem ao juiz Sérgio Moro. Algumas manifestações ocorreram em logradouros públicos e outras dentro de prédios do Poder Judiciário.
Não sei se o jornalista comparou os magistrados que vestiram toga para homenagear o juiz Sérgio Moro com profissionais circenses ou se houve comparação das vestes talares com as vestimentas dos palhaços. Mas magistrados não são palhaços. Magistratura é contrapoder na garantia dos direitos dos cidadãos perante os poderosos e arbítrio do Estado, mesmo que sob riscos.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/06/2016, pag. 18. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-06-26/joao-batista-damasceno-magistrados-nao-sao-palhacos.html