domingo, 24 de novembro de 2019

Juízes não julgam os fatos

A aplicação da Constituição da República, pelo STF, afastando execução provisória de sentença penal condenatória, causou comoção em quem quer fazer prevalecer suas opiniões ao arrepio das leis. Mas, quem criou a confusão foi o próprio STF quando, em casos anteriores, autorizara prisão antes do trânsito em julgado. Ouvindo a voz das ruas, que ecoava os julgamentos midiáticos, uma ministra declarou que condenava José Dirceu, apesar da falta de provas, porque a literatura jurídica lhe permitia condenar. Juízes que pensam assim são como O Juiz de Paz da Roça, da peça de Martins Pena, que mandara prender quem lhe exigia cumprimento do seu dever. Ante o argumento de que as leis não autorizavam tal prisão o personagem declarou revogadas as leis. E, ao argumento de que a Constituição não lhe atribuía poderes revocatórios de lei, declarou revogada a Constituição. Uma grave moléstia acomete alguns do judiciário: é a juizite. Os sintomas são a perda da ordem jurídica como referência para os julgamentos, a confusão entre o fato e a prova destinada a reconstituí-lo e a autorreferência, normalmente envolta em moralismo, que é a ética de quem não tem ética.

Um ministro do STF, que se pautava pela racionalidade da ordem jurídica e não pela voz das ruas, declarou num voto que “não posso tudo o que quero; somente o que a Constituição autoriza”. Mas, ao votar pela prisão sem o trânsito em julgado, o ministro abandonou tal posicionamento. A justificativa foi do excesso de recursos para os tribunais superiores, que não julgam situações fáticas, pois o STJ julga recursos especiais em caso de contrariedade de lei federal e o STF os recursos extraordinários em casos de contrariedade à Constituição.


Os “juristas de internet” disseram que se os tribunais superiores não analisam fatos, apenas Direito, não há inocente após condenação em segunda instância. Mas nenhum juiz analisa fato. Fato é ocorrência concreta no mundo natural. Dos fatos, os juízes não tomam ciência. Quando bem provados, formam juízo sobre suas ocorrências por meio das narrativas das testemunhas ou outros meios. O fato se esvai com sua própria ocorrência e não se repete. Apenas é possível sua reconstituição histórica, que não pode ser feita por testemunhas acuadas ou por delações premiadas, após torturas.


Juízes que sabem não analisar os fatos têm menos certezas e, portanto, estão menos sujeitos a erros. Julgar com honestidade intelectual é mais difícil. Os linchamentos são mais fáceis. O excesso de trabalho, as metas, as pressões diversas e o descompromisso com os direitos alheios facilitam adoção de comportamentos burocráticos e injustiças.


As questões levadas aos tribunais superiores podem não se referir à reapreciação de provas, mas de procedimentalidade para sua produção. Um réu que confesse crime após tortura pelo juiz da causa não poderá ter sua confissão analisada por um tribunal superior. Mas, este poderá analisar o meio ilícito da para obtenção da prova. No caso do tríplex do Guarujá o STF não poderá analisar se tinha uma cozinha gourmet, como noticiado pela mídia. Mas, poderá analisar o indeferimento do pedido de prova feito pela defesa, quando ainda não se sabia ser um cubículo guarnecido, exclusivamente, por um fogão de quatro bocas. O indeferimento implicou cerceamento, intencional, do direito de defesa. O devido processo legal pode ser tão relevante quanto a questão fática, sujeita a interpretação.




Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/11/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/11/5829505-joao-batista-damasceno--juizes-nao-julgam-os-fatos.html#foto=1

sábado, 2 de novembro de 2019

Trem sem freio, ladeira abaixo


Depois do que o site The Intercept demonstrou ter acontecido no “Principado de Curitiba”, aqueles que se recusavam a acreditar nos abusos praticados pelo Ministério Público e pelo sistema de justiça já não mais podem dizer não saber do que são capazes as instituições contra as liberdades públicas. Claro que há aqueles que, mesmo diante das maiores ilegalidades, bizarrices e perversidades, acham pouco tudo o que se faz contra os que lhe são indesejáveis.

Com a acumulação de poderes conferidos ao Ministério Público na Constituição de 1988, acrescidos daqueles que se apropriou com a complacência de quem lhe deveria ter imposto limites, o MP se transformou num trem sem freio, ladeira abaixo, capaz de atropelar todo o sistema de direitos e garantias fundamentais. Foi a falta de limites em suas atuações que levou o ex-procurador Geral da República a confessar ter iniciado a preparação de crime contra a vida de um ministro do STF.

Em sentença que absolveu sumariamente o ex-presidente Michel Temer, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal, disse que o Ministério Público adulterou conversas entre Temer e Joesley. O juiz foi enfático ao dizer que o MPF editou a transcrição do diálogo, adulterando o seu sentido e disse: “A prova sobre a qual se fia a acusação é frágil e não suporta sequer o peso da justa causa para a inauguração da instrução criminal” e que “a denúncia transcreve o mesmo trecho do áudio sem considerar interrupções e ruídos, consignando termos diversos na conversa, dando interpretação própria à fala dos interlocutores (...)”.

Eu já ouvi de um delegado que não deveria acreditar nas transcrições feitas pelo Ministério Público ou pela polícia e que - sempre que necessário analisar uma conversa interceptada - eu ouvisse diretamente os áudios captados, na sua integralidade. Da decisão do juiz consta a razão da necessidade de tal diligência.

O juiz que absolveu o ex-presidente Temer comparou as versões do mesmo diálogo e distorções e disse: “No trecho subsequente das transcrições — principal argumento da acusação quanto ao crime de obstrução da justiça — a denúncia, uma vez mais, desconsidera as interrupções do áudio, suprime o que o Laudo registra como falas ininteligíveis e junta trechos de fala registrados separadamente pela perícia técnica que, a seu sentir, dão — ou dariam — sentido completo à conversa tida por criminosa".

Em 10/07/2013 escrevei neste espaço que: “O conflito que se estabeleceu em data recente entre Polícia Civil e Ministério Público, em razão da falsidade numa perícia elaborada por uma fonoaudióloga do Município do Rio cedida ao MP, que fizera montagem de gravação de voz para incriminar um acusado, é a ponta do iceberg do que teremos após a rejeição da PEC 37”. Ao invés de apurar o que publicizei, o então procurador geral de justiça, preferiu interpelar-me judicialmente.

A rejeição da PEC 37 ampliou os poderes do MP e a possibilidade de abusos, em conluio com a mídia. Se o Ministério Público é capaz de promover um grande escândalo na tentativa de atingir um Presidente da República, com distorção de conversa gravada, do que alguns agentes não são capazes contra aqueles que não dispõem dos mesmos recursos para defesa? O problema dos trens sem freios é que acabam descarrilando.


Hiena, raposa, leão, burro e tigrada


Um vídeo publicitário divulgado, nesta semana, pelo presidente da república mostrava um leão fragilizado sendo atacado por um conjunto de hienas. Uma legenda identificava o leão como o presidente e as hienas como sendo mídia, movimentos sociais, partidos políticos e instituições. Foram expressamente citados: STF, CNBB, OAB, ONU, Greenpeace, Lei Rouanet, Veja, Folha de S. Paulo, Globo, Jovem Pan, Estadão, PT, PCdoB, PSOL, PSDB, PDT, feministas, MST, Força Sindical, MBL que sempre apoiou o presidente e o seu próprio partido, o PSL. O leão atacado é apresentado como o “isentão”, salvo por outro leão, o “conservador patriota” e ao final o presidente exclama: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Diante da repercussão o presidente apagou a postagem e se desculpou.


Norbert Elias no livro A Sociedade de Corte analisa a corte de Luís XIV, o Rei-Sol, e sua rigorosa estrutura fundamentada sobre símbolos. Na obra ele estuda as relações sociais e suas interdependências e conclui: um louco que se acredita rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias. O presidente pretende governar acima das circunstâncias, desprezando as relações sociais das quais decorrem todo o exercício de poder. E isto pode ser perigoso para a democracia, pois pode ceder à tentação autoritária presente na formação do presidente e no círculo que o envolve.

Pretendendo governar acima das circunstâncias o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Luís Bonaparte, reeditou em 1851 o golpe que o tio dera em 1799. Analisando aquele golpe Karl Marx escreveu que “Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Nesta semana um dos filhos do presidente da República ameaçou com a repetição da tragédia de 1964.

A tigrada que aterrorizava a sociedade brasileira durante a ditadura empresarial-militar não foi domada com a redemocratização. Os mecanismos operados nos porões do regime não foram desativados. A morte de Marielle pode ter sido uma tentativa da tigrada de causar comoção e proporcionar acesso ao poder. Pode ter encomendado o crime para não envolver as próprias Forças Armadas, como no caso da bomba do Riocentro.

A notícia divulgada no Jornal Nacional de que um dos acusados de executar Marielle estivera no condomínio onde mora o presidente para se encontrar com outro acusado e que interfonara para a casa do presidente para ter entrada autorizada, é emblemática. O presidente estava em Brasília. A reportagem não fez alusão a qualquer filho do presidente. Mas, em seu pronunciamento, visivelmente transtornado, o presidente diz quererem prender seu filho. Qual filho? Algum é ligado a milicianos? Algum pode ter intermediado a encomenda da tigrada?

Maquiavel no XVIII capítulo de O Príncipe diz que convém a um governante fazer uma escolha entre ser raposa ou leão. O leão pode ter força, mas não sabe fugir das armadilhas. É necessário ser raposa para conhecer as armadilhas e delas escapar. E arremata: “Os que querem apenas ser leão demonstram não conhecer do assunto”. Ao trazer um filhote para o centro do debate o pretenso leão caiu numa armadilha.







Trem sem freio, ladeira abaixo


Depois do que o site The Intercept demonstrou ter acontecido no “Principado de Curitiba”, aqueles que se recusavam a acreditar nos abusos praticados pelo Ministério Público e pelo sistema de justiça já não mais podem dizer não saber do que são capazes as instituições contra as liberdades públicas. Claro que há aqueles que, mesmo diante das maiores ilegalidades, bizarrices e perversidades, acham pouco tudo o que se faz contra os que lhe são indesejáveis.

Com a acumulação de poderes conferidos ao Ministério Público na Constituição de 1988, acrescidos daqueles que se apropriou com a complacência de quem lhe deveria ter imposto limites, o MP se transformou num trem sem freio, ladeira abaixo, capaz de atropelar todo o sistema de direitos e garantias fundamentais. Foi a falta de limites em suas atuações que levou o ex-procurador Geral da República a confessar ter iniciado a preparação de crime contra a vida de um ministro do STF.


Em sentença que absolveu sumariamente o ex-presidente Michel Temer, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal, disse que o Ministério Público adulterou conversas entre Temer e Joesley. O juiz foi enfático ao dizer que o MPF editou a transcrição do diálogo, adulterando o seu sentido e disse: “A prova sobre a qual se fia a acusação é frágil e não suporta sequer o peso da justa causa para a inauguração da instrução criminal” e que “a denúncia transcreve o mesmo trecho do áudio sem considerar interrupções e ruídos, consignando termos diversos na conversa, dando interpretação própria à fala dos interlocutores (...)”.


Eu já ouvi de um delegado que não deveria acreditar nas transcrições feitas pelo Ministério Público ou pela polícia e que - sempre que necessário analisar uma conversa interceptada - eu ouvisse diretamente os áudios captados, na sua integralidade. Da decisão do juiz consta a razão da necessidade de tal diligência.


O juiz que absolveu o ex-presidente Temer comparou as versões do mesmo diálogo e distorções e disse: “No trecho subsequente das transcrições — principal argumento da acusação quanto ao crime de obstrução da justiça — a denúncia, uma vez mais, desconsidera as interrupções do áudio, suprime o que o Laudo registra como falas ininteligíveis e junta trechos de fala registrados separadamente pela perícia técnica que, a seu sentir, dão — ou dariam — sentido completo à conversa tida por criminosa".


Em 10/07/2013 escrevei neste espaço que: “O conflito que se estabeleceu em data recente entre Polícia Civil e Ministério Público, em razão da falsidade numa perícia elaborada por uma fonoaudióloga do Município do Rio cedida ao MP, que fizera montagem de gravação de voz para incriminar um acusado, é a ponta do iceberg do que teremos após a rejeição da PEC 37”. Ao invés de apurar o que publicizei, o então procurador geral de justiça, preferiu interpelar-me judicialmente.


A rejeição da PEC 37 ampliou os poderes do MP e a possibilidade de abusos, em conluio com a mídia. Se o Ministério Público é capaz de promover um grande escândalo na tentativa de atingir um Presidente da República, com distorção de conversa gravada, do que alguns agentes não são capazes contra aqueles que não dispõem dos mesmos recursos para defesa? O problema dos trens sem freios é que acabam descarrilando.




terça-feira, 8 de outubro de 2019

Necropolítica: por que a polícia atira em favelados?

O filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe, Professor de Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, é autor do livro “Necropolítica”, onde diz que “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. O soberano ou quem age em seu nome pode matar de várias formas, inclusive “mirando na cabecinha”.

Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, das mais competentes e coerentes, perguntou-me porque eu acreditava que policiais atiravam a esmo para dentro das favelas. A pergunta me estagnou. Não adiantaria relatar conversas com policiais que me disseram já terem se protegido atrás de uma pilastra de concreto, apoiado o fuzil no ombro e “sentado o dedo” na direção que poderiam estar os que pretendiam atingir. Já ouvi a expressão “com certeza acertei gente”, sem demonstração de preocupação se acertara quem desejava, um pai de família, uma dona de casa ou uma criança.

Para a resposta à amiga, de quem divirjo quase sempre, precisava de uma reflexão e resposta que não se limitasse à minha limitada experiência, apesar de 26 anos de contínuo exercício como juiz, sendo 18 na Baixada Fluminense, além das relações que me possibilitam juízo sobre tais ocorrências.

A resposta do porquê policiais atiram a esmo para dentro das favelas está no exercício do poder e na necessidade de afirmarem o senso de autoridade que acreditam ter. Além do desmedido senso de autoridade, quando policiais não o são, pois se reduzem a meros agentes de autoridade, acresce-se a desumanização daqueles que são tratados como indignos de viver, porque não rentáveis. As empresas de comunicação dão a sua colherada de contribuição promovendo a espetacularização das ocorrências.

Num país que desumanizou pretos durante 300 anos e os tratou como objetos não é de se estranhar a permanência do sentimento que possibilita a exclusão, que é capaz de abominar o princípio constitucional da inocência e de negar o direito à vida. Por isso, há instituições capazes de julgar um praça que seja pego para bode expiatório. Mas, inexistem instituições nacionais capazes do controle da politica de extermínio e submissão da cadeia de comando ao banco dos réus. Talvez o único apelo seja para o Tribunal Penal Internacional que julga autores de crimes contra a humanidade.


Quem exercita poder costuma rotineiramente impor alguma sanção ou promover alguma premiação a fim de relembrar quem exerce a autoridade e manter a legitimidade conquistada. Por vezes, a violência que é própria do exercício do poder é exercida tão somente para reafirmar o senso de autoridade. Na medida em que os cidadãos não mais legitimam a autoridade e seus agentes, há uma tendência a instituir o mando pela força, instalando-se o autoritarismo. Policiais, sem efetivo poder de mando, descrentes da própria hierarquia a que estão subordinados, tentam estabelecer sobre moradores na periferia e favelas um comando desmedido não amparado pela lei; por meio da violência tentam obter uma obediência incondicional que não conseguem com base na crença da legitimidade de suas ações, porque as mazelas de alguns são testemunhadas por quem não vive em gabinetes. É neste contexto que autoridades se tornam autoritárias e agentes de autoridades em agentes do extermínio, arregimentando-se em milícias. A situação adquire maior gravidade quando avançando sobre o poder político, as milícias chegam ao poder.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/10/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/10/5805860-joao-batista-damasceno--necropolitica--por-que-a-policia-atira-em-favelados.html

Necropolítica: por que a polícia atira em favelados?


O filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe, Professor de Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, é autor do livro “Necropolítica”, onde diz que “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. O soberano ou quem age em seu nome pode matar de várias formas, inclusive “mirando na cabecinha”.
Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, das mais competentes e coerentes, perguntou-me porque eu acreditava que policiais atiravam a esmo para dentro das favelas. A pergunta me estagnou. Não adiantaria relatar conversas com policiais que me disseram já terem se protegido atrás de uma pilastra de concreto, apoiado o fuzil no ombro e “sentado o dedo” na direção que poderiam estar os que pretendiam atingir. Já ouvi a expressão “com certeza acertei gente”, sem demonstração de preocupação se acertara quem desejava, um pai de família, uma dona de casa ou uma criança.
Para a resposta à amiga, de quem divirjo quase sempre, precisava de uma reflexão e resposta que não se limitasse à minha limitada experiência, apesar de 26 anos de contínuo exercício como juiz, sendo 18 na Baixada Fluminense, além das relações que me possibilitam juízo sobre tais ocorrências.
A resposta do porquê policiais atiram a esmo para dentro das favelas está no exercício do poder e na necessidade de afirmarem o senso de autoridade que acreditam ter. Além do desmedido senso de autoridade, quando policiais não o são, pois se reduzem a meros agentes de autoridade, acresce-se a desumanização daqueles que são tratados como indignos de viver, porque não rentáveis. As empresas de comunicação dão a sua colherada de contribuição promovendo a espetacularização das ocorrências.
Num país que desumanizou pretos durante 300 anos e os tratou como objetos não é de se estranhar a permanência do sentimento que possibilita a exclusão, que é capaz de abominar o princípio constitucional da inocência e de negar o direito à vida. Por isso, há instituições capazes de julgar um praça que seja pego para bode expiatório. Mas, inexistem instituições nacionais capazes do controle da politica de extermínio e submissão da cadeia de comando ao banco dos réus. Talvez o único apelo seja para o Tribunal Penal Internacional que julga autores de crimes contra a humanidade.
Quem exercita poder costuma rotineiramente impor alguma sanção ou promover alguma premiação a fim de relembrar quem exerce a autoridade e manter a legitimidade conquistada. Por vezes, a violência que é própria do exercício do poder é exercida tão somente para reafirmar o senso de autoridade. Na medida em que os cidadãos não mais legitimam a autoridade e seus agentes, há uma tendência a instituir o mando pela força, instalando-se o autoritarismo. Policiais, sem efetivo poder de mando, descrentes da própria hierarquia a que estão subordinados, tentam estabelecer sobre moradores na periferia e favelas um comando desmedido não amparado pela lei; por meio da violência tentam obter uma obediência incondicional que não conseguem com base na crença da legitimidade de suas ações, porque as mazelas de alguns são testemunhadas por quem não vive em gabinetes. É neste contexto que autoridades se tornam autoritárias e agentes de autoridades em agentes do extermínio, arregimentando-se em milícias. A situação adquire maior gravidade quando avançando sobre o poder político, as milícias chegam ao poder.





domingo, 29 de setembro de 2019

Eu apoiei a PEC 37, que limitava os poderes do MP


Eu apoiei a PEC 37, que limitava os poderes do MP.

Com ela o ex-PGR teria aprendido mais cedo que não é super herói e não teria querido matar um ministro do STF. Eu sei o que são estes “potentados da burocracia”, pois já vivi ameaçado dentro do tribunal a que pertenço.




https://blogdodelegado.wordpress.com/2013/04/17/joao-batista-damasceno-pec-37/

PEC 37


A proposta de emenda à Constituição limitando os poderes investigatórios criminais exercidos indevidamente pelo Ministério Público o coloca sob o Estado Direito. Com a PEC 37 fica explícito que cabe à polícia investigar e ao MP o controle da atividade policial. O MP pretende investigar diretamente, acumulando os poderes investigatório e acusatório, sem que seja controlado nesta atividade.



Juízes, promotores ou policiais não são deuses. São pessoas sujeitas aos mesmos erros que as demais. A cordialidade que nos caracteriza propicia perseguições, caprichos e apadrinhamentos. Demonstrando o quanto se é rigoroso na aplicação da lei, há quem seja capaz de atrocidades com os que não sejam do seu clã ou se encontrem em situação de vulnerabilidade. Somente um sistema de distribuição de funções entre diferentes órgãos e controle recíproco de uns sobre os outros pode ensejar o exercício adequado de cada função.



Ao longo de 20 anos julgando ações civis públicas e ações por improbidade administrativa, vislumbrei o quanto por vezes se é rigoroso com uns e nem tanto com outros. Nos inquéritos cíveis públicos, o MP tem o poder de investigar, mas nem sempre o faz diretamente. Em muitos casos as investigações são feitas por policiais militares alocados junto ao MP, em decorrência de “convênio remunerado”, de discutível legalidade, celebrado no Rio. Muitos foram os relatos de abusos destes policiais agindo em nome do MP, sem quem os controlasse.



Diversamente do inquérito civil, quando em regra o acusado tem maior capacidade de defesa, a seletividade do sistema penal torna os excluídos alvos preferenciais de sua atuação, com pouca possibilidade de subtração ao arbítrio. O MP já tem poderes para requisitar investigações e, para controle, pode acompanhar as diligências.


Poder concentrado e sem controle é sinônimo de abuso. As anomalias que se registram nas investigações feitas pelo MP e nas perícias de sua equipe no Rio nos apontam o caminho pelo qual a rejeição da PEC 37 nos conduziria.

sábado, 28 de setembro de 2019

O despreparo de Janot


Não conheço o ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot. Mas, todos que o conhecem dizem-me que é despreparado tecnicamente. 

Sobre a declaração de Janot de que fora armado para o STF para matar o ministro Gilmar Mendes, este editou nota na qual diz:

“Confesso que estou algo surpreso. Sempre acreditei que, na relação profissional com tão notória figura, estava exposto, no máximo, a petições mal redigidas, em que a pobreza da língua concorria com a indigência da fundamentação técnica. Agora ele revela que eu corria também risco de morrer”.

Por sua vez o ministro Marco Aurélio disse:

“Fico a me indagar. Se a pontaria do pretenso atirador for tão acurada quanto o conhecimento jurídico, eu poderia ser atingido”.

O membro do Ministério Público quis jactar-se de coragem que não teve para vender seu livro. Não é a primeira vez que um livro de má qualidade, com o demérito do dano ambiental resultante das árvores cortadas para fazer o papel, tem bravatas antecipadas por seu autor para alavancar as vendas

Mas, até no marketing Janot é fraco. Para alavancar a venda de livro de qualidade, talvez, similar ao livro de Janot o ex-deputado constituinte e ex-ministro do STF declarou às vésperas do lançamento, em 2003, que “nem todos os artigos da Constituição foram votados pela Assembleia Constituinte. Houve a inserção de dois artigos ‘de última hora’ no texto constitucional”. Mas, não revelou quais eram os artigos. Quem quis saber teve que ler no livro.

Janot, ao contrário, não fala no livro o nome do ministro Gilmar Mendes. Conta apenas sua intencionalidade. Mas, para a imprensa revela quem era a vítima potencial. Quem vai comprar o livro agora para saber o que se passou

O ex-PGR perdeu o porte de arma, o acesso ao STF e o sócio no escritório. Só falta agora ninguém comprar o livro. Mostrou-se desqualificado também para o marketing.

Realmente, além da fraqueza técnica o ex-PGR deve estar acometido do mal que lhe diagnostica o ministro Gilmar Mendes em sua nota.



Pecado fake


A realização da Bienal do Livro neste ano, no Riocentro, propiciou mais uma oportunidade de reafirmação da liberdade de expressão e o ataque que se faz constantemente contra a inteligência. Ninguém é a favor da censura. Mas, há os que são contra as expressões alheias. Vozes obscurantistas difundiram pelas redes sociais que na Bienal havia livros pornográficos destinados ao público infanto-juvenil. Logo o prefeito Marcelo Crivella assanhou-se para apreensão dos referidos livros tendo como exemplo o governador do Estado de São Paulo que se recusou a distribuir livros com conteúdo contrário aos seus valores. Na disputa pelo obscurantismo cada pessoa acometida do complexo de Torquemada tenta ser mais obtusa que a outra.

Fake news são notícias falsas difundidas com conteúdo intencionalmente enganoso, como se fossem informações reais. Este tipo de notícia, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo. A novidade não são as notícias falsas. Mas, o poder viral das fake news ante o surgimento das novas mídias. Com o avanço tecnológico e maior intercomunicação entre pessoas e grupos as notícias falsas se espalham rapidamente.

As informações falsas apelam para o emocional, fazendo com que as pessoas consumam o material “noticioso” sem confirmar se é verdade seu conteúdo. E por isso as fake News têm maior apelo que as notícias verdadeiras ou aquelas que demandam raciocínios e formulação de juízos.

Pesquisadores tentam estabelecer uma relação entre o poder de persuasão das fake news e o grau de escolaridade dos seus destinatários. Mas, a escolaridade não limita o poder de crença. Cada pessoa crê naquilo que lhe é conveniente e isto independe de grau de escolaridade, poder econômico ou status. Os indivíduos tendem a crer no que lhes convém. As fake news sempre existiram. O termo é novo, assim como o modo de propagação, mas nada mais são que boatos de grande circulação.

Diante dos boatos, ao invés de gastar dinheiro público para cuidar da cidade, o prefeito mandou fiscalização à Bienal e ameaçou cassar a licença de funcionamento, esquecendo-se que licença é ato administrativo não sujeito a revogação pela vontade de quem se julga dono do poder. Os fiscais foram e comprovaram a inexistência de livros de conteúdo pornográfico infanto-juvenis. Não satisfeito o prefeito os mandou novamente e os fiscais, de novo, nada encontraram. Diante da ameaça que pairava, os organizadores do evento ajuizaram ação e obtiveram liminar para fazer cessar o assédio do alcaide. O município, difundindo processualmente fake news, juntou ao processo imagem de um livro holandês traduzido para o português de Portugal alegando que se tratava de gibi pornográfico. O tal livro, destinado ao público adulto, não é vendido no Brasil e não estava exposto na Bienal. Enganado pelo município, mas fazendo coro com a censura, o presidente do Tribunal de Justiça cassou a liminar deferida. Felizmente há juízes em Brasília e o STF restabeleceu a liberdade de expressão e difusão das obras escritas.

A obra prima de algumas religiões é o pecado. E somente mentes muito férteis são capazes de imaginar a existência de literatura pornográfica infanto-juvenil. Assim, não tardou para que o cardeal da cidade se solidarizasse com a censura, “em nome da família fluminense e das pessoas de bem”. Mas, dele, faltou igual preocupação com as famílias quando da desocupação - em dia de chuva - dos favelados da Ocupação Oi-Telemar em 2014.

O conservadorismo que nos rodeia é uma abominação política, ética e cognitiva. É abominação política porque fascista; é abominação ética porque violento e é abominação cognitiva, porque ignorante. Mas, não passarão!



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 21/09/2019, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/09/5683050-joao-batista-damasceno--pecado-fake.html

Para todos os lados


A concepção de que uma nova lei de abuso de autoridade possa impedir ilegalidades de agentes públicos é mais uma crença fundada na fantasia. Tal crença se afasta da análise concreta da formação brasileira e no autoritarismo que permeia as relações sociais. A lei editada é inócua. Os fatos que ela tipifica já estão elencados como crimes na legislação brasileira. Matar é crime e em poucos países do mundo se mata tanto quanto no Brasil. Torturar é crime hediondo, mas até um menino pego furtando chocolate em supermercado é sujeito a tortura por milicianos contratados pelo comerciante. A filmagem e divulgação demonstram a ousadia e confiança dos milicianos nos que os incentivam. Derrubar moradia em área de vulnerabilidade social, com o uso do `caveirão´, é violação ao direito social de moradia inscrito na Constituição, mas os abusos dos condutores do `caveirão´ são comuns. Tudo o que fica na frente está sujeito à destruição pelo veículo de guerra contra pobres: barracos, carros, bicicletas, carrocinha de pipoca etc… Atirar do alto de helicóptero na população favelada implicaria violação ao Tratado de Genebra, se o Brasil estivesse em guerra com outro país, mas em Angra dos Reis – de dentro do helicóptero no qual estava o governador – foram feitos disparos a esmo. Enfim! Leis já temos. O que falta é respeito à dignidade da pessoa humana pelos agentes do Estado e sistema de controle de suas atuações. A Constituição elenca dentre as atribuições do MP o controle da atividade policial.
Durante a ditadura empresarial-militar as instituições ficaram reféns da força bruta dos que comandavam o Estado a serviço de interesses não explicitados. Agentes públicos diversos, incluindo juízes, desembargadores e três dos melhores ministros da história do STF, foram cassados e os demais intimidados. Não havia garantias constitucionais na prática, embora inscritas na Constituição outorgada pelo próprio regime, para inglês ver. Os chefes do Ministério Público, fosse o procurador geral da república ou os procuradores de justiça estaduais, eram nomeáveis e demissíveis pelo Presidente da República ou pelos governadores do Estado, ao seu bel prazer. Foi a crença de que a falta de autonomia do Ministério Público, como controlador dos demais poderes era o que nos faltava para o regular funcionamento institucional, que possibilitou se desse à instituição sua feição atual, como superpoder do Estado.
Mas, as instituições são o que as pessoas que ocupam os cargos fazem na prática. E o Ministério Público se convolou num superpoder com alguns membros imbuídos de projeto de poder pessoal e enriquecimento. O conluio e as palestras remuneradas do ´principado de Curitiba´ o demonstram. No tabuleiro do xadrez institucional o MP anda para todos os lados e salta quantas casas quiser. Ninguém o controla. É parte processual quando quer (e somente a ele cabe avaliar se será parte ou não), é fiscal da lei, seus membros somente podem ser denunciados por crimes pelos próprios membros da corporação, os mais antigos se reservam o direito de acumular os cargos na instituição com o exercício da advocacia em seus escritórios e ainda podem se licenciar para concorrer a cargos eletivos. Se perdem a eleição ou encerram o mandato, podem voltar às funções ministeriais. Para quem quer ser chamado de magistratura de pé, ou parquet, os membros do Ministério Público devem ter as mesmas limitações dos magistrados e ter controle de suas atividades por órgão que não seja da própria instituição, como basilar princípio republicano.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 07/09/2019, pag. Link: https://istoe.com.br/joao-batista-damasceno-para-todos-os-lados/


terça-feira, 27 de agosto de 2019

Os juízes e a Lei de Abuso de Autoridade


Pode parecer surpreendente que os juízes sejam contra a edição de uma lei visando a punir os abusos de autoridade. O que parece estar sendo desconsiderado pelos juízes é que, se editada, a lei será aplicada por eles mesmos, ainda que o acusado seja outro juiz. Quando a lei a eles se destinam não confiam nos julgamentos dos seus pares? Juizes são bons tão somente na aplicação da lei para os outros? O temor da magistratura com a edição da Lei de Abuso de Autoridade é demonstrativo de que os juízes sabem como são feitos os julgamentos, conhecem as tramas que envolvem as investigações, as acusações, os processos e a formação de juízo sobre os fatos e os acusados. Por isso os juízes têm medo dos juízes. Sou juiz e também tenho medo.

Os juízes estão certos. O Direito Penal não resolve nada. A questão é que, no Brasil, virou a panaceia para todos os males e tem sido usado em todos os conflitos relacionais. Com a edição de uma Lei de Abuso de Autoridade e o encarceramento se pretende resolver questões da estrutura autoritária da sociedade brasileira. A lógica de quem pensa o Direito Penal e o Sistema de Justiça para resolver problema de abuso de autoridade é a mesma de quem acredita que a violência somente se combate com `tiro na cabecinha´, ou seja, para acabar com um tipo de violência seria necessária uma violência maior de outro tipo.

O Direito Penal vem sendo usado abusiva e indevidamente. De conflito no campo decorrente da estrutura fundiária, a conflitos de interesses decorrentes de relações de consumo ou exercício de necessidades fisiológicas em vias públicas onde inexiste banheiro público, tudo tem sido submetido ao sistema de justiça penal.

Os laços de sociabilidade e civilidade não se estabelecem a partir do Direito. Muito menos do Direito Penal. Não somos homicidas em série porque o Código Penal nos puniria. Mas, porque somos humanos e nos reconhecemos como tal, assim como aos outros. O Direito Penal é inadequado na maioria das vezes, também por ser o mais rigoroso. Além disto, impõe `punições não previstas em lei´ como a estigmatização e a humilhação do acusado. É o ramo do Direito mais sujeito aos riscos de cometer injustiças irreparáveis. O Direito Penal, mesmo diante de leis claras orientadas por princípios objetivos, é sempre abstrato e subjetivo, com aplicação carregada de preconceitos.

De decisão judicial se recorre. Não se pune quem decidiu. O trabalho dos juízes não pode ficar sujeito a ameaças do Direito Penal. A independência judicial é fundamento da atividade dos juízes, assim como a responsabilidade institucional, a imparcialidade e o compromisso com a realização substancial da ordem jurídica. As decisões judiciais devem estar sujeitas a revisões a fim de reparar possíveis erros. O princípio da inocência precisa ser reafirmado em nome da sociabilidade. E esta concepção deve ser estendida a todos os cidadãos e a todos os que são acusados. A repulsa dos juízes à Lei do Abuso de Autoridade deve servir como reflexão de que todos erramos e de que o Direito Penal somente deve ser aplicado como último recurso diante de um conflito. Jamais em primeiro lugar.

Não foi a falta de lei de abuso de autoridade que propiciou as ilegalidades na Lava Jato. Todos sabemos que condução coercitiva de quem não fora intimado e desatendera intimação, interceptação de conversa telefônica quando cessada a autorização, divulgação de conversa telefônica e outras violações ao sigilo profissional, bem como recebimentos - em conflito de interesses com os objetivos institucionais que deveriam orientar as atuações funcionais -, a pretexto de palestras, pagos por quem tinha interesse no resultado de causa, são ilícitos. Mas, havia instâncias que respaldavam as ilegalidades.

A Lei do Abuso de Autoridade poderá não atingir quem incida nas ilegalidades que pretende evitar e seja protegido. Mas, poderá ser fundamento para perseguições a quem não atenda a interesses escusos, ainda que ao final se conclua pela improcedência do que abusivamente se acuse. As penas não estão somente nas sentenças, mas sobretudo nos processos a que são submetidos os `indesejáveis´.


sábado, 24 de agosto de 2019

A resposta do porão


O golpe empresarial militar que assaltou o Estado em 1964 agregou setores contrários aos interesses do povo brasileiro alinhados com interesses dos EUA, reforçados durante o governo JK. Do seio militar havia os tenentistas que se insubordinavam desde 1922, chamados de “Sorbone das Forças Armadas”, e militares de visão mais tacanha, chamados de “linha dura”. Os militares nacionalistas eram legalistas. Consumado o golpe, com apoio yankee, como comprovam documentos já publicizados nos EUA e mostrados no filme ‘O dia que durou 21 anos’, começaram as perseguições aos brasileiros nacionalistas, incluindo militares, e aos comunistas.

Dentre as instituições do Estado, as Forças Armadas foram as que mais sofreram com o golpe empresarial militar de 1964. Por patriotismo, dezenas de milhares de militares perderam suas patentes e postos. Venceram os entreguistas. Os opositores do regime ficaram sujeitos a prisões arbitrárias, torturas, morte e desaparecimentos. A primeira fase do regime estava sob o comando dos militares tenentistas, de melhor formação intelectual. Mas com Costa e Silva, a tigrada subiu ao poder. No Governo Médici a ditadura escancarou os dentes e perdeu a vergonha de ser ditadura. A abertura política começou com o retorno do tenentista Ernesto Geisel e as mortes passaram a acontecer somente quando autorizadas. As execuções, não autorizadas, sob tortura, de Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog levou o general presidente Geisel a destituir o comandante do 2.º Exército e depois o próprio ministro do Exército, Silvio Frota.

Os setores conservadores, mas moderados, que haviam apoiado o golpe passaram a fazer oposição: OAB, Igreja, empresários e ampla parcela da classe média. A abertura aconteceu num processo lento, gradual e seguro, antes que a sociedade reagisse. Mesmo assim, a tigrada ficou raivosa e passou a botar bombas pela cidade: ABI, OAB, Câmara de Vereadores, bancas de jornal etc. Foram muitas, até que uma bomba explodiu no colo de um terrorista do Exército no Riocentro, em 1981, onde mataria milhares de jovens num show de MPB. Morreu o sargento Rosário, mas sobreviveu o capitão Machado, mantido no Exército e reformado como coronel em data recente. Em troca do encerramento do caso, a tigrada aquietou-se nos esgotos e tornou possível a abertura política.

Poucos anos depois um outro capitão ameaçou colocar bombas, dando sinais de que os terroristas continuavam em atividade. Mas, a área moderada tinha o controle e o colocou para fora. Aproveitando os desarranjos pelos quais passa a sociedade brasileira, a tigrada saiu da caverna, com o apoio da mídia tomou o poder, e ameaça as próprias instituições. O retorno da tigrada é conseqüência de não termos feito a redemocratização com responsabilização dos que atentaram contra a democracia e o Estado de Direito, assaltaram o poder, mataram, torturaram, estupraram, roubaram, traficaram e desapareceram com pessoas. A tigrada está no poder e as milícias são a nova face dos ‘Esquadrões da Morte’ que de dentro do DOPS, DOI-Codi, Polícia Federal e quartéis assombravam as noites e os sonos durante os ‘Anos de chumbo’. A morte de Marielle pode ter sido encomendada por aqueles que queriam plantar o terror a fim de surgirem como ‘salvadores da pátria’ a exemplo dos que queriam explodir o gasômetro do Rio de Janeiro na hora do rush. O emprego das Forças Armadas contra os próprios brasileiros, para Garantia da Lei e da Ordem (GLO), e no Haiti, nos governos Lula e Dilma, pode ter reforçado os seus papéis e suas ousadias.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/08/2019, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/08/5675177-joao-batista-damasceno--a-resposta-do-porao.html


domingo, 11 de agosto de 2019

Brasil arcaico em decadência


Em sua obra Lavoura Arcaica o escritor Raduan Nassar narra o encontro de um faminto com um ancião milionário dono de uma mansão a quem pede comida. O ancião simula estar entregando o que comer. “O faminto, dobrando-se de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de irritação” e sem saber o que pensar da encenação dela participa como se estivesse recebendo comida e mastiga o alimento imaginário.

O filósofo Platão dedicou sua obra à justiça depois de presenciar a condenação à morte do seu mestre Sócrates. Quatrocentos anos depois, com o mesmo ideário de Platão, o filho de um carpinteiro de Nazaré se notabilizou por pregar justiça e acabou pregado numa cruz. E se fez deus para os que nele crêem. O ‘Divino de Nazaré’ falou que são bem aventurados os que têm fome e sede de justiça.

A justiça é uma lei não escrita que rege a vida humana. As leis escritas não ordenam as vidas. O que fazemos decorre dos laços de sociabilidade e civilidade. Se o dispositivo de lei que pune o homicídio fosse revogado a maioria das pessoas ainda assim não se tornaria homicida. A lei é mera referência de ordem, assim como os preceitos sociais, ideológicos, religiosos e outras referências de comportamentos. São meras referências as quais precisamos nos ater. O objetivo da norma jurídica é dar referência de ordem e reduzir as incertezas para o futuro. Não é criar cidadãos robotizados, observadores autômatos dos dispositivos legais. Mas, alguma coisa está fora da ordem.

Nesta semana o poder judiciário fluminense revogou a prisão preventiva por ele mesma decretada do estudante Weslley Rodrigues Jacob. Preto, pobre e morador do Morro do Alemão foi vitimado pelo conhecido flagrante forjado pela polícia. Não é caso único, nem raro. Quem conhece a periferia sabe o que é o aparato repressivo do Estado. Um dos casos mais emblemáticos de flagrante judicial foi a prisão de Rafael Braga, morador de rua que tinha uma garrafa de detergente com a qual higienizava a calçada onde dormia confundida com Coquetel Molotov. A condenação se deu sem que fosse periciado o objeto apreendido e o morador de rua contraiu tuberculose na prisão. De instituição criada para garantir direitos o judiciário se converteu em homologador das arbitrariedades policiais. É notório o que o sistema de justiça faz com o preso político mais visível do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Há outras centenas de milhares de ilegalidades. A decisão do STF que impediu a remoção do ex-presidente Lula para cela coletiva em São Paulo é demonstração de percepção da vilania e começo da reação para fazer cessar as violências da Polícia Federal a serviço do ministro Moro e daqueles para quem trabalha. A sociedade não continuará a endossar os enriquecimentos dos ‘palestrantes de Curitiba’ que lucram com discursos de falso conteúdo moralizador. É hora de cessar a paciência diante dos caprichos dos poderosos e de dar mostras de irritação com o que se faz em nome da justiça.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/08/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/08/5671023-joao-batista-damasceno--brasil-arcaico-em-decadencia.html

ABI e liberdade de imprensa



Uma avassaladora onda moralista tomou conta mídia corporativa brasileira, acusando o site The Intercept Brasil por publicar mensagens do membro do Ministério Público Deltan Dallagnol e do ex-juiz Sérgio Moro. Acusam o The Intercept de ter publicado mensagens obtidas por meio de crime. Ora, quase todas as conversas telefônicas divulgadas pela mídia corporativa são obtidas por meio de crimes. Sem a prática de crimes muito pouco poderia ser publicado. Por vezes os crimes são praticados por particulares que ilegalmente violam as comunicações. Noutras vezes, a captação da mensagem é feita legalmente, com autorização judicial, mas divulgada por quem tem o dever de sigilo profissional, seja polícia, Ministério Público ou pelo próprio juiz da causa.

Em data recente um juiz fluminense proibiu grande empresa de comunicação de publicar trechos do inquérito que apurava a execução da Marielle. O jornalista tinha cópia integral do inquérito. Mas, nem ele nem a emissora poderiam ser acusados do crime de violação de segredo profissional. Papel de jornalista é divulgar o que sabe. Se não informa, incide no padrão de manipulação da notícia pela omissão. Quem cometeu o crime foi o policial que forneceu as peças ao jornalista. A empresa de comunicação não publicou porque a multa seria pesada. Mas, reclamou da justiça e alegou cerceamento da liberdade de imprensa.
O delegado Protógenes Queiroz foi condenado criminalmente e perdeu o cargo em decorrência de acusação de ter fornecido à imprensa informações sob sigilo da Operação Satiagraha. Mas, a Operação Lava Jato demonstra que a lei não é para todos. Nem há coerência no padrão de comportamento das empresas de comunicação.

Na divulgação da conversa da presidenta Dilma com o ex-presidente Lula não se pode acusar a mídia de prática de crime. O crime foi do agente da Polícia Federal que manteve a interceptação das comunicações telefônicas após a cessação da autorização judicial. Também cometeu crime o ex-juiz Sérgio Moro que divulgou o que deveria ter sido mantido em sigilo. Não tivesse divulgado indevidamente a conversa da então presidenta, o hoje ministro teria cometido o crime de prevaricação, por ter tido ciência do crime do policial e não tomado as providências devidas. Mas, em se tratando da Lava Jato a lei não é para todos. 


A invasão de dispositivo informático é crime, assim definido no Código Penal, bem como a violação de comunicação telefônica. Mas, de quem viola. Não do jornalista que divulga, prestando relevante serviço à sociedade. A imprensa, em tais casos, lança luzes sobre os que - dos escombros institucionais - lucram com discursos moralizadores. Os jornalistas do The Intercept que publicam não cometem crime. Realizam sua função: publicar. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) promoveu ontem um ato de solidariedade ao jornalista Glenn Greenwald e ao site de notícias The Intercept Brasil. A Casa de Barbosa Lima Sobrinho retomou a defesa das liberdades públicas, que neste momento se faz necessária.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/07/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/07/5667572-joao-batista-damasceno--abi-e-liberdade-de-imprensa.html