sábado, 16 de março de 2019

Marielle e a bomba do Riocentro

Em 16 de fevereiro de 2018 foi decretada intervenção nos órgãos de segurança do Rio de Janeiro e nomeado interventor, um general. Para secretário de segurança, outro general. O site Congresso em Foco difundiu depoimento de um parlamentar sobre a intervenção: “É uma intervenção decidida dentro de um gabinete, sem discussão com as Forças Armadas. Nosso lado não está satisfeito. Estamos aqui para servir à pátria, não para servir esse bando de vagabundos”, disse o então deputado. No dia 14 de março, há um ano e dois dias, a vereadora Marielle Franco foi executada. Os autores intelectuais e executores, pela ousadia, contestaram a intervenção e o modo como se realizava. O crime teve jeito de operação. Mas, isto foi ignorado. Uma desembargadora do Rio de Janeiro pôs-se a difamar a memória de Marielle e – caluniosamente - disse que fora eleita por facção criminosa, descumprira compromisso e que se tratava de acerto de contas. A polícia num primeiro momento direcionou as investigações para criminosos débeis, incapazes de tamanho atrevimento, que não deve ser visto como bravata pessoal, mas violência institucional.

Os acusados da execução da Marielle têm proximidade com atores políticos locais e nacionais, tidos como porta-vozes dos militares radicais, da linha dura ou tigrada. Não se pode – sem prévia investigação – acusar quem quer que seja de mandante ou incitador da execução de Marielle Franco. Mas, aqueles que têm domínio sobre os algozes das liberdades, sem compromisso com a dignidade humana e por isso são capazes de executar os que acreditam não tenham direito de viver, podem ter feito parte da operação objetivando radicalização da intervenção nas instituições.

Esquadrão da morte, mãos brancas, grupos de extermínio, justiceiros e milicianos não são autônomos em suas condutas. Sem apoio do poder político ou do poder econômico sucumbiriam no primeiro crime que cometessem. O que lhes garante a atividade criminosa permanente são os anteparos que recebem e os tornam imunes à responsabilização. A morte de Marielle tem jeito de operação pensada em escalões de comando, com execução em esfera subalterna, por cães de aluguel, com a intermediação de quem tenha trânsito nos dois mundos. Se os acusados da morte da Marielle forem efetivamente os autores, resta investigar sua motivação. Não convence que foi ódio, por pessoa que sequer conheciam. Certamente houve um interesse maior no crime, tal como nos crimes daqueles que tentavam boicotar o processo de abertura política no início dos anos 80, até o dia em que uma bomba explodiu – no Riocentro - no colo dos terroristas, matando um sargento e desnudando para o país o que setores radicais do Exército faziam. O Exército passou o recibo da conivência promovendo o sobrevivente, capitão terrorista, até o coronelato, posto no qual se reformou para viver na Barra da Tijuca.

O governador Witzel acerta ao dizer que os acusados podem fazer delação premiada. Esta somente se admite para os superiores. Melhor será que as investigações continuem e cheguem aos autores intelectuais sem a necessidade de delação. As bombas na ABI, OAB, Câmara de Vereadores e do Riocentro não visavam aos que mataram. Mas, às instituições democráticas. Os tiros que mataram Marielle e Anderson podem ter tido o mesmo alvo.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 16/03/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/03/5626741-marielle-e-a-bomba-do-riocentro.html


terça-feira, 12 de março de 2019

Talíria foi barrada. Que bom!

A deputada Talíria denuncia: “Desde que tomei posse, fui barrada TODOS OS DIAS aqui – na entrada, no elevador, no plenário. Eu uso broche e vou às sessões, como todo parlamentar. É difícil pra eles entenderem, mas nós, mulheres pretas, somos tão deputadas quanto os outros. Não aceito esse tipo de tratamento”.
Certamente a deputada não é barrada no acesso ao plenário da Câmara dos Deputados porque é mulher ou preta. Mas, porque tem cara de povo e deve se orgulhar disto. No 26º ano na magistratura, de vez em quando sou igualmente barrado no Tribunal de Justiça. Basta que mudem o segurança da portaria.
Voltando de férias e com a barba por fazer, entrei num ‘elevador privativo de magistrados’ juntamente com um desembargador nomeado pelo ‘quinto constitucional’ que mal sabia o corredor que levava ao seu gabinete. Direito, o infeliz não sabe até hoje. Mas, ganhou o cargo do governador. Um quinto dos tribunais estaduais é composto por desembargadores nomeados pelo governador, sem concurso. Algumas boas nomeações servem como justificativa para a manutenção do critério. Os demais são desembargadores por promoção de juízes de carreira, concursados. Ao retornar ao elevador, o ascensorista, constrangido, perguntou-me se eu era magistrado, pois havia sido repreendido pelo ‘desembargador janelado’ por ter permitido acesso de quem “não tinha a prerrogativa de entrar naquele elevador”. Identifiquei-me ao ascensorista e lhe sugeri dissesse ao desembargador, quando o encontrasse, que havia ouvido de mim que eu era magistrado “e dos concursados”. Mais tarde, sorridente, o ascensorista disse que o fez.
A cena se repete de vez em quando, notadamente quando estou sem terno ou sem gravata. E fico muito feliz. Tenho a sensação de que ainda não fui afetado pela empáfia que caracteriza certos ocupantes de cargos da burocracia do Estado. Continuo cidadão, olhando o mundo pelas lentes daqueles que deveriam ser os destinatários da justiça. A dignidade está no exercício das funções próprias do cargo, não nas mesuras típicas dos tratamentos provincianos em relações despidas de conteúdo capazes de lhes atribuir excelência.
Magistrados e magistradas, negros ou negras, que se caracterizam pela arrogância – e nos tribunais os há – não são barrados por seguranças igualmente negros ou negras. A questão não é apenas de gênero ou raça. Está, sobretudo, no diferencial de classe. Não é o fato de ser negra ou mulher que causa a interceptação da deputada Talíria na Câmara dos Deputados. É sua cara de povo. Se vestir um tailleur Chanel, colocar jóias e portar uma bolsa Louis Vuitton, Prada ou Gucci será tratada como a outra deputada, igualmente mulher e negra, que nunca foi barrada e já foi chamada de ‘Rainha de Sabá’.
Talíria, o dia que não a barrarem, esteja certa de que o segurança já a conhece ou você terá mudado de lado e deixado o lado do povo. A outra possibilidade seria termos conseguido transformar o Brasil numa república de verdade. Eu detestaria receber tapete vermelho, mesuras, rapapés e salamaleques quando me aproximasse das portarias; não gostaria de ser confundido com os recebem tais reverências. Prefiro ser barrado. Sinto-me humano, ocupante de um cargo cujas funções desempenho com responsabilidade, mas que com ele não me confundo.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/03/2019, pag. 9. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/03/5623713-taliria-foi-barrada--que-bom.html