terça-feira, 27 de agosto de 2019

Os juízes e a Lei de Abuso de Autoridade


Pode parecer surpreendente que os juízes sejam contra a edição de uma lei visando a punir os abusos de autoridade. O que parece estar sendo desconsiderado pelos juízes é que, se editada, a lei será aplicada por eles mesmos, ainda que o acusado seja outro juiz. Quando a lei a eles se destinam não confiam nos julgamentos dos seus pares? Juizes são bons tão somente na aplicação da lei para os outros? O temor da magistratura com a edição da Lei de Abuso de Autoridade é demonstrativo de que os juízes sabem como são feitos os julgamentos, conhecem as tramas que envolvem as investigações, as acusações, os processos e a formação de juízo sobre os fatos e os acusados. Por isso os juízes têm medo dos juízes. Sou juiz e também tenho medo.

Os juízes estão certos. O Direito Penal não resolve nada. A questão é que, no Brasil, virou a panaceia para todos os males e tem sido usado em todos os conflitos relacionais. Com a edição de uma Lei de Abuso de Autoridade e o encarceramento se pretende resolver questões da estrutura autoritária da sociedade brasileira. A lógica de quem pensa o Direito Penal e o Sistema de Justiça para resolver problema de abuso de autoridade é a mesma de quem acredita que a violência somente se combate com `tiro na cabecinha´, ou seja, para acabar com um tipo de violência seria necessária uma violência maior de outro tipo.

O Direito Penal vem sendo usado abusiva e indevidamente. De conflito no campo decorrente da estrutura fundiária, a conflitos de interesses decorrentes de relações de consumo ou exercício de necessidades fisiológicas em vias públicas onde inexiste banheiro público, tudo tem sido submetido ao sistema de justiça penal.

Os laços de sociabilidade e civilidade não se estabelecem a partir do Direito. Muito menos do Direito Penal. Não somos homicidas em série porque o Código Penal nos puniria. Mas, porque somos humanos e nos reconhecemos como tal, assim como aos outros. O Direito Penal é inadequado na maioria das vezes, também por ser o mais rigoroso. Além disto, impõe `punições não previstas em lei´ como a estigmatização e a humilhação do acusado. É o ramo do Direito mais sujeito aos riscos de cometer injustiças irreparáveis. O Direito Penal, mesmo diante de leis claras orientadas por princípios objetivos, é sempre abstrato e subjetivo, com aplicação carregada de preconceitos.

De decisão judicial se recorre. Não se pune quem decidiu. O trabalho dos juízes não pode ficar sujeito a ameaças do Direito Penal. A independência judicial é fundamento da atividade dos juízes, assim como a responsabilidade institucional, a imparcialidade e o compromisso com a realização substancial da ordem jurídica. As decisões judiciais devem estar sujeitas a revisões a fim de reparar possíveis erros. O princípio da inocência precisa ser reafirmado em nome da sociabilidade. E esta concepção deve ser estendida a todos os cidadãos e a todos os que são acusados. A repulsa dos juízes à Lei do Abuso de Autoridade deve servir como reflexão de que todos erramos e de que o Direito Penal somente deve ser aplicado como último recurso diante de um conflito. Jamais em primeiro lugar.

Não foi a falta de lei de abuso de autoridade que propiciou as ilegalidades na Lava Jato. Todos sabemos que condução coercitiva de quem não fora intimado e desatendera intimação, interceptação de conversa telefônica quando cessada a autorização, divulgação de conversa telefônica e outras violações ao sigilo profissional, bem como recebimentos - em conflito de interesses com os objetivos institucionais que deveriam orientar as atuações funcionais -, a pretexto de palestras, pagos por quem tinha interesse no resultado de causa, são ilícitos. Mas, havia instâncias que respaldavam as ilegalidades.

A Lei do Abuso de Autoridade poderá não atingir quem incida nas ilegalidades que pretende evitar e seja protegido. Mas, poderá ser fundamento para perseguições a quem não atenda a interesses escusos, ainda que ao final se conclua pela improcedência do que abusivamente se acuse. As penas não estão somente nas sentenças, mas sobretudo nos processos a que são submetidos os `indesejáveis´.


sábado, 24 de agosto de 2019

A resposta do porão


O golpe empresarial militar que assaltou o Estado em 1964 agregou setores contrários aos interesses do povo brasileiro alinhados com interesses dos EUA, reforçados durante o governo JK. Do seio militar havia os tenentistas que se insubordinavam desde 1922, chamados de “Sorbone das Forças Armadas”, e militares de visão mais tacanha, chamados de “linha dura”. Os militares nacionalistas eram legalistas. Consumado o golpe, com apoio yankee, como comprovam documentos já publicizados nos EUA e mostrados no filme ‘O dia que durou 21 anos’, começaram as perseguições aos brasileiros nacionalistas, incluindo militares, e aos comunistas.

Dentre as instituições do Estado, as Forças Armadas foram as que mais sofreram com o golpe empresarial militar de 1964. Por patriotismo, dezenas de milhares de militares perderam suas patentes e postos. Venceram os entreguistas. Os opositores do regime ficaram sujeitos a prisões arbitrárias, torturas, morte e desaparecimentos. A primeira fase do regime estava sob o comando dos militares tenentistas, de melhor formação intelectual. Mas com Costa e Silva, a tigrada subiu ao poder. No Governo Médici a ditadura escancarou os dentes e perdeu a vergonha de ser ditadura. A abertura política começou com o retorno do tenentista Ernesto Geisel e as mortes passaram a acontecer somente quando autorizadas. As execuções, não autorizadas, sob tortura, de Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog levou o general presidente Geisel a destituir o comandante do 2.º Exército e depois o próprio ministro do Exército, Silvio Frota.

Os setores conservadores, mas moderados, que haviam apoiado o golpe passaram a fazer oposição: OAB, Igreja, empresários e ampla parcela da classe média. A abertura aconteceu num processo lento, gradual e seguro, antes que a sociedade reagisse. Mesmo assim, a tigrada ficou raivosa e passou a botar bombas pela cidade: ABI, OAB, Câmara de Vereadores, bancas de jornal etc. Foram muitas, até que uma bomba explodiu no colo de um terrorista do Exército no Riocentro, em 1981, onde mataria milhares de jovens num show de MPB. Morreu o sargento Rosário, mas sobreviveu o capitão Machado, mantido no Exército e reformado como coronel em data recente. Em troca do encerramento do caso, a tigrada aquietou-se nos esgotos e tornou possível a abertura política.

Poucos anos depois um outro capitão ameaçou colocar bombas, dando sinais de que os terroristas continuavam em atividade. Mas, a área moderada tinha o controle e o colocou para fora. Aproveitando os desarranjos pelos quais passa a sociedade brasileira, a tigrada saiu da caverna, com o apoio da mídia tomou o poder, e ameaça as próprias instituições. O retorno da tigrada é conseqüência de não termos feito a redemocratização com responsabilização dos que atentaram contra a democracia e o Estado de Direito, assaltaram o poder, mataram, torturaram, estupraram, roubaram, traficaram e desapareceram com pessoas. A tigrada está no poder e as milícias são a nova face dos ‘Esquadrões da Morte’ que de dentro do DOPS, DOI-Codi, Polícia Federal e quartéis assombravam as noites e os sonos durante os ‘Anos de chumbo’. A morte de Marielle pode ter sido encomendada por aqueles que queriam plantar o terror a fim de surgirem como ‘salvadores da pátria’ a exemplo dos que queriam explodir o gasômetro do Rio de Janeiro na hora do rush. O emprego das Forças Armadas contra os próprios brasileiros, para Garantia da Lei e da Ordem (GLO), e no Haiti, nos governos Lula e Dilma, pode ter reforçado os seus papéis e suas ousadias.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/08/2019, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/08/5675177-joao-batista-damasceno--a-resposta-do-porao.html


domingo, 11 de agosto de 2019

Brasil arcaico em decadência


Em sua obra Lavoura Arcaica o escritor Raduan Nassar narra o encontro de um faminto com um ancião milionário dono de uma mansão a quem pede comida. O ancião simula estar entregando o que comer. “O faminto, dobrando-se de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de irritação” e sem saber o que pensar da encenação dela participa como se estivesse recebendo comida e mastiga o alimento imaginário.

O filósofo Platão dedicou sua obra à justiça depois de presenciar a condenação à morte do seu mestre Sócrates. Quatrocentos anos depois, com o mesmo ideário de Platão, o filho de um carpinteiro de Nazaré se notabilizou por pregar justiça e acabou pregado numa cruz. E se fez deus para os que nele crêem. O ‘Divino de Nazaré’ falou que são bem aventurados os que têm fome e sede de justiça.

A justiça é uma lei não escrita que rege a vida humana. As leis escritas não ordenam as vidas. O que fazemos decorre dos laços de sociabilidade e civilidade. Se o dispositivo de lei que pune o homicídio fosse revogado a maioria das pessoas ainda assim não se tornaria homicida. A lei é mera referência de ordem, assim como os preceitos sociais, ideológicos, religiosos e outras referências de comportamentos. São meras referências as quais precisamos nos ater. O objetivo da norma jurídica é dar referência de ordem e reduzir as incertezas para o futuro. Não é criar cidadãos robotizados, observadores autômatos dos dispositivos legais. Mas, alguma coisa está fora da ordem.

Nesta semana o poder judiciário fluminense revogou a prisão preventiva por ele mesma decretada do estudante Weslley Rodrigues Jacob. Preto, pobre e morador do Morro do Alemão foi vitimado pelo conhecido flagrante forjado pela polícia. Não é caso único, nem raro. Quem conhece a periferia sabe o que é o aparato repressivo do Estado. Um dos casos mais emblemáticos de flagrante judicial foi a prisão de Rafael Braga, morador de rua que tinha uma garrafa de detergente com a qual higienizava a calçada onde dormia confundida com Coquetel Molotov. A condenação se deu sem que fosse periciado o objeto apreendido e o morador de rua contraiu tuberculose na prisão. De instituição criada para garantir direitos o judiciário se converteu em homologador das arbitrariedades policiais. É notório o que o sistema de justiça faz com o preso político mais visível do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Há outras centenas de milhares de ilegalidades. A decisão do STF que impediu a remoção do ex-presidente Lula para cela coletiva em São Paulo é demonstração de percepção da vilania e começo da reação para fazer cessar as violências da Polícia Federal a serviço do ministro Moro e daqueles para quem trabalha. A sociedade não continuará a endossar os enriquecimentos dos ‘palestrantes de Curitiba’ que lucram com discursos de falso conteúdo moralizador. É hora de cessar a paciência diante dos caprichos dos poderosos e de dar mostras de irritação com o que se faz em nome da justiça.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/08/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/08/5671023-joao-batista-damasceno--brasil-arcaico-em-decadencia.html

ABI e liberdade de imprensa



Uma avassaladora onda moralista tomou conta mídia corporativa brasileira, acusando o site The Intercept Brasil por publicar mensagens do membro do Ministério Público Deltan Dallagnol e do ex-juiz Sérgio Moro. Acusam o The Intercept de ter publicado mensagens obtidas por meio de crime. Ora, quase todas as conversas telefônicas divulgadas pela mídia corporativa são obtidas por meio de crimes. Sem a prática de crimes muito pouco poderia ser publicado. Por vezes os crimes são praticados por particulares que ilegalmente violam as comunicações. Noutras vezes, a captação da mensagem é feita legalmente, com autorização judicial, mas divulgada por quem tem o dever de sigilo profissional, seja polícia, Ministério Público ou pelo próprio juiz da causa.

Em data recente um juiz fluminense proibiu grande empresa de comunicação de publicar trechos do inquérito que apurava a execução da Marielle. O jornalista tinha cópia integral do inquérito. Mas, nem ele nem a emissora poderiam ser acusados do crime de violação de segredo profissional. Papel de jornalista é divulgar o que sabe. Se não informa, incide no padrão de manipulação da notícia pela omissão. Quem cometeu o crime foi o policial que forneceu as peças ao jornalista. A empresa de comunicação não publicou porque a multa seria pesada. Mas, reclamou da justiça e alegou cerceamento da liberdade de imprensa.
O delegado Protógenes Queiroz foi condenado criminalmente e perdeu o cargo em decorrência de acusação de ter fornecido à imprensa informações sob sigilo da Operação Satiagraha. Mas, a Operação Lava Jato demonstra que a lei não é para todos. Nem há coerência no padrão de comportamento das empresas de comunicação.

Na divulgação da conversa da presidenta Dilma com o ex-presidente Lula não se pode acusar a mídia de prática de crime. O crime foi do agente da Polícia Federal que manteve a interceptação das comunicações telefônicas após a cessação da autorização judicial. Também cometeu crime o ex-juiz Sérgio Moro que divulgou o que deveria ter sido mantido em sigilo. Não tivesse divulgado indevidamente a conversa da então presidenta, o hoje ministro teria cometido o crime de prevaricação, por ter tido ciência do crime do policial e não tomado as providências devidas. Mas, em se tratando da Lava Jato a lei não é para todos. 


A invasão de dispositivo informático é crime, assim definido no Código Penal, bem como a violação de comunicação telefônica. Mas, de quem viola. Não do jornalista que divulga, prestando relevante serviço à sociedade. A imprensa, em tais casos, lança luzes sobre os que - dos escombros institucionais - lucram com discursos moralizadores. Os jornalistas do The Intercept que publicam não cometem crime. Realizam sua função: publicar. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) promoveu ontem um ato de solidariedade ao jornalista Glenn Greenwald e ao site de notícias The Intercept Brasil. A Casa de Barbosa Lima Sobrinho retomou a defesa das liberdades públicas, que neste momento se faz necessária.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/07/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/07/5667572-joao-batista-damasceno--abi-e-liberdade-de-imprensa.html

A reforma que deforma


A aprovação da Reforma da Previdência aniquila os direitos dos trabalhadores e somente ao sistema financeiro interessa. Estamos migrando do sistema de solidariedade social para o sistema de capitalização, sem qualquer garantia de que os direitos decorrentes das contratações serão prestados ao final. Nenhuma empresa de capitalização formada durante a ditadura empresarial militar cumpriu o contratado quando chegou a hora de pagar as aposentadorias e pensões. Somente os financistas e generais que as protegiam se beneficiaram de tal captação da poupança popular. Alem de ter que formar a própria poupança em planos de previdência, os trabalhadores terão que pagar aos bancos para administrar seus dinheiros.

Derrubado o Muro de Berlim, o capital já não se constrange no ataque ao mundo do trabalho. Antes temia a reação dos trabalhadores. Celebra-se o fim da Era Vargas e oito dos deputados do partido que reivindica o legado do trabalhismo votaram contra os trabalhadores sem risco de punição partidária. O capital ganhou de sete a zero. Nas últimas décadas, a cooptação dos representantes dos trabalhadores por governos que ocuparam o campo da esquerda ajudou a desmobilizar a classe trabalhadora e neste sentido prestou mais um serviço ao capital.

Além do aumento do tempo de contribuição para os atuais segurados, aumento da idade minima e redução dos direitos, tem-se a eliminação do direito ao pensionamento a dependentes. Dentre os dependentes que perderam o direito à pensão quando da morte dos pais estão os filhos maiores com doenças psiquiátricas. Determinados direitos foram reduzidos à metade do salário mínimo. Mas as filhas solteiras dos militares manterão o direito à pensão integral, mesmo tendo empregos, filhos e companheiros. Para receber somente não poderão casar. Trata-se de uma reforma perversa que somente aos mais pobres atinge.

Os tralhadores perderam direitos. Os partidos de esquerda que pretendiam defender seus interesses sofreram derrota há muito não imaginada numa votação no parlamento brasileiro. Mas a vitória não foi do governo. Este pouco ajudou na votação. Proposto o projeto, coube à Câmara promover sua aprovação. Os banqueiros cuidaram de manipular a opinião pública e convencer - por meios não explicitados - os parlamentares.

Em meio a esta derrota do mundo do trabalho, que amplia a pilhagem pelo mundo do capital, faleceu de infarto o jornalista Paulo Henrique Amorim, que colocava sua inteligência e sua voz na denúncia das iniquidades que se perpetram no presente momento. Assim como Paulo Francis infartou depois de processo lhe movido por denúncias durante o governo FHC, Paulo Henrique Amorim infartou depois de ter sido afastado da Rede Record por pressão do Palácio do Planalto. A injustiça mata de diversas formas: de bala, de fome e de infarto.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/07/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/07/5662727-joao-batista-damasceno--a-reforma-que-deforma.html

O juiz e o herói


A mídia e a sociedade têm incensado egos e propiciado que juízes saiam dos seus papeis institucionais e assumido protagonismos incompatíveis com as funções institucionais lhes acometidas. Mas todo poder é relacional e os magistrados não assumiriam tais papéis se não encontrassem nas relações que estabelecem apoio para o que fazem. Daí é que também são responsáveis os que os apoiam ou incentivam.

Após a 2ª Guerra Mundial fortes movimentos nacionais de libertação tomaram conta dos países colonizados. As potências europeias já não mais chamavam suas colônias por este nome. Passaram a dizer que eram territórios nacionais distantes. Portugal chamava Angola de território português d´além mar. A França fazia o mesmo com Guiana Francesa e com a Argélia. As guerras de libertação nacional fizeram os franceses formular o conceito de inimigo interno e alocação de suas Forças Armadas para combate aos argelinos.

Os Estados Unidos se apropriaram do conceito de inimigo interno e o exportaram para a América Latina, onde as Forças Armadas nacionais passaram a combater o próprio povo em proveito daquele país, instituindo as ditaduras militares no Cone Sul. A repressão aos movimentos nacionalistas propiciou a politização das Forças Armadas, mas também a judicialização da repressão política. Policiais truculentos tratados como “heróis da polícia”, homens de ouro, cerraram fileiras ao lado dos “gorilas” que reprimiam o povo. Os magistrados não ficaram fora do processo e também surgiram “juízes heróis”. E continuam a surgir.

O conceito de policial herói, truculento mas incorruptível, pressupõe um agente que pode abrir mão das regras pré-estabelecidas na luta do bem contra o mal, não estando subordinado ao Estado de Direito. Isto porque os heróis estão acima da lei. A mesma lógica orientou o ministro Joaquim Barbosa e depois o então juiz Sérgio Moro, elevados à categoria de heróis. Um era o Batman e o outro Super-Homem e na atuação de ambos se pode apontar ilegalidades. A ideia do juiz herói decorre da corruptela do policial herói. Assim como o policial herói se coloca à margem da lei, e - neste sentido - se transforma num marginal, o juiz herói assume igual papel.

Juízes não são deuses ou demônios. São serem humanos iguais aos demais e sujeitos aos mesmos erros, se não estiverem republicanamente sob controle. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acaba de criar a figura do ‘juiz sem rosto’ para ‘combater’ o crime organizado. Juízes combatentes ou justiceiros deixam de ser equidistantes e perdem a capacidade de julgar imparcialmente. O tribunal arbitrariamente escolheu a vara que será transformada em ‘vara do juiz sem rosto’. Trata-se de um magistrado oriundo da carreira militar, tal como o ex-juiz que prometeu “mirar na cabecinha”. Não faltará quem alegue, e com razão, que se trata de juízo de exceção em afronta à Constituição da República. Restará aos tribunais invalidar tal construção estranha ao Estado Democrático de Direito.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/07/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/07/5659376-joao-batista-damasceno--o-juiz-e-o-heroi.html


Promiscuidade institucional

Mais mulheres são efetivamente estupradas sem denunciarem ao sistema de justiça que as que formulam falsas acusações. Mas, estas ocorrências igualmente não podem ser ignoradas, nem o princípio de que todos são inocentes até a prova definitiva em contrário. O princípio da inocência há de valer para todos, como marco civilizatório. Em data recente uma acusação de estupro a um jogador de futebol dividiu as opiniões nas redes sociais. Sem qualquer informação confiável uns acusavam a mulher, outros condenavam o jogador e outros ainda o inocentavam. Até a advogada do acusado sofreu intimidações, por ser uma militante feminista. A advocacia vem sendo criminalizada e não falta incompreensão do papel do advogado, que é defender os direitos dos acusados a um julgamento justo, o que não se confunde com participação nos fatos imputados.
A promiscuidade envolvendo mídia, magistrados, membros do MP e policiais é um sério risco para as liberdades públicas. Para evitar este tipo de `feijoada institucional’ é que foi formulado o sistema da separação dos poderes que devem ser independentes, com competências exclusivas, e harmônicos, isto é, sem adentrar nas esferas uns dos outros.

O princípio de que ninguém deve ser considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória foi relativizado e basta que a mídia aponte alguém como suspeito para ser considerado culpado.

Em 2011 um escândalo sexual derrubou o francês Dominique Strauss-Khan da diretoria do Fundo Monetário Internacional. Ele era um dos políticos mais influentes da França e favorito nas eleições que se avizinhavam. Dominique chegou a ser preso, mas o Ministério Público requereu o encerramento do caso, surpreendendo a Suprema Corte de Justiça de New York e até própria defesa. A camareira do hotel que o acusava de estupro fora flagrada pelo Ministério Público numa ligação para o namorado preso, perguntando o que poderia ganhar se acusasse o francês de estupro. A inexistência de conluio entre o Ministério Público e o Poder Judiciário propiciou que a justiça fosse feita naquele caso.

Acostumados a conversas de confessionários, quando da falência da Varig, um grupo de juízes foi a New York para uma “conversinha com o coleguinha estadunidense”, sobre uns aviões apreendidos por lá. O juiz os recebeu e lhes disse que não poderia comentar o caso, pois nos EUA um juiz não pode comentar sobre um processo sem a presença das demais partes interessadas.

O escândalo envolvendo o ministro Sérgio Moro e o procurador Dellagnol na perseguição ao ex-presidente Lula nos dá a dimensão do que é capaz o sistema de justiça no Brasil, onde os “embargos de pé de ouvido” são – por vezes – mais eficientes que as petições. Moro diz que o que fez é comum. O furto de relógios e celulares de pedestres desavisados na Praia de Copacabana também é comum. E nem por isto é lícito. À margem da lei todos são marginais e o ministro atuou à margem dela. O conluio não foi negado e as mensagens podem ser recuperadas no aplicativo ou nos aparelhos usados pelos agentes públicos transgressores. Cabe aos tribunais superiores restabelecer os parâmetros de legalidade e racionalidade que devem orientar o sistema de justiça.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/06/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/06/5655689-joao-batista-damasceno--promiscuidade-institucional.html

Por direitos e por justiça


A percepção da seletividade do sistema de justiça no Brasil incentiva a campanha pela libertação do ex-presidente Lula, maior líder popular da história recente do Brasil. Seu partido – sabiamente - mobiliza sua militância com a campanha Lula Livre, visando a retomada do projeto político interrompido com o golpe de 2015. Mas, as manifestações contra os cortes na educação, desmonte do SUS, precarização das relações de trabalho, sucateamento do sistema previdenciário e outras ameaças ao mundo do trabalho – por interessarem a amplos setores da sociedade - aglutinam mais que a campanha por sua liberdade. E, por não se restringirem à militância no entorno do líder carismático elevado a símbolo, têm maior potencial transformador.

Os que se manifestam contra o retrocesso nas políticas públicas, sem comporem a campanha Lula Livre, acreditam que a centralidade em torno do símbolo possa produzir efeito quanto à sua liberdade, mas não refreia a pauta avassaladora do neoliberalismo. O ex-presidente Lula é um expert da política, sabe das fraquezas do sistema iníquo no qual vivemos e por isto é imbatível na democracia de massa. Só o tempo poderá consumi-lo. E é com isto que seus algozes contam. Mas, o que precisamos é evitar que o pouco do estado do bem estar social existente no Brasil seja demolido pelo neoliberalismo.

A justiça eleitoral não deixou Lula fora da disputa em 2018 porque estava preso. Sem a prisão já estaria inelegível pela condenação, no ‘Principado de Curitiba’, num julgamento discutível. A lei que o tornou inelegível foi por ele mesmo editada, qual seja, a Lei da Ficha Limpa. Quando sancionou a Lei da Ficha Limpa, Lula se imaginou do lado do cabo do chicote. Mas, o chicote tem duas pontas.

Na época da edição da lei, Cid Benjamin e eu escrevemos sobre ela. Meu artigo no O DIA foi ‘A República Velha de volta’. Muitos que hoje esbravejam aplaudiam a ‘lei moralizadora’. Não perceberam que cavavam a própria sepultura por desconhecerem o que fora o judiciário na 1ª República.

Quando Angela Davis, professora universitária militante dos Panteras Negras, travou luta pela liberdade dos ‘Irmãos Soledad’, razão pela qual também acabou presa, não falava apenas deles. A luta era contra a criminalização dos negros. Era a questão da negritude que era debatida. Não apenas dos ‘Irmãos Soledad” e, depois, dela própria!

Lutar por justiça não é lutar apenas pela liberdade de um preso, ainda quando encarcerado injustamente. Mas, por um judiciário democrático e republicano que funcione com fundamento na racionalidade que se espera da ordem jurídica. A liberdade de Lula, sem que a liberdade das pessoas encarceradas injustamente seja posta em questão, significa pretender apenas a liberdade para Lula.

Quando a polícia matou Mineirinho e o ‘desovou’ na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, Clarice Lispector escreveu uma crônica com o nome dele e assim terminou: O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”. Sua preocupação não foi apenas com o que se fez com Mineirinho, mas com todos os vitimados pelos justiçamentos, expressão dos crimes particulares aprovados por aqueles que - bem vestidos e alimentados - se refugiam no abstrato. Ela queria um sistema de justiça justo para todos. Para todos! Em 1978 a crônica foi republicada no livro ‘Para não Esquecer’ e contribuiu na campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/06/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/06/5650079-joao-batista-damasceno--por-direitos-e-por-justica.html