A compreensão do papel das Forças
Armadas na ordem institucional brasileira demanda análise da natureza das suas
funções e dos cargos ocupados pelos servidores públicos que a compõem. Leituras
superficiais e comprometidas com interesses não democráticos têm levado a interpretações
enviesadas do art. 142 da Constituição da República. Para compreensão dos
limites de atuação de tais servidores faz-se necessária análise do texto
constitucional aprovado em 1988 e das modificações decorrentes de emendas.
A Constituição de 1988 foi
elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte que, embora não tivesse sido
exclusiva, funcionou distintamente em relação às Casas do Congresso Nacional.
De 1987 a 1988 tivemos em funcionamento autônomo o Senado Federal, a Câmara dos
Deputados, o Congresso Nacional decorrente da reunião conjunta das duas Casas
e, soberanamente, a Assembleia Nacional Constituinte.
A Constituição, elaborada por um
poder originário que constituiu o Estado e suas instituições, previu a
possibilidade de sua reforma, mas ressalvou matérias insuscetíveis de modificações,
ou seja, as cláusulas pétreas ou núcleo inalterável da Constituição. Diz a
Constituição que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir a forma federativa de Estado, o
voto direto, secreto, universal e periódico, a
separação dos Poderes e os direitos e garantias
individuais.
No texto original os servidores
públicos militares das Forças Armadas, das polícias militares e bombeiros
militares estavam no capítulo que trata da Administração Pública. O art. 37 estabeleceu
normas gerais para a Administração Pública, os artigos 39 a 41 tratou dos
servidores públicos civis e o art. 42 tratou dos servidores públicos militares.
Em sua redação original a
Constituição qualificava os integrantes das Forças Armadas como servidores
públicos da Administração e não agentes políticos do Estado. O constituinte
originário não atribuiu às Forças Armadas qualidade de poder de Estado, pois estavam
textualmente inseridos no capítulo que trata da Administração Pública. Seus
agentes são servidores públicos regidos por estatuto próprio.
A Emenda Constitucional 18, de 05
de fevereiro de 1998, deslocou o disciplinamento das Forças Armadas para título
próprio, sem lhes retirar a natureza de servidores públicos. E não poderia
mesmo fazê-lo. O poder constituinte originário autorizou o Congresso Nacional a
alterar o texto constitucional, por meio de emendas, mas ressalvou determinadas
matérias que não podem ser objeto de modificação, dentre elas a separação dos
poderes. Pretender atribuir
qualidade de poder moderador às Forças Armadas implicaria reconhecer-lhe a
qualidade que não lhe foi atribuída pela Constituição em sua redação originária
e implicaria violação ao princípio da separação dos poderes, considerando que
servidores não constituem poder do Estado.
Os servidores públicos são
agentes da Administração Pública encarregados de executar os comandos
determinados pelos órgãos e agentes políticos do Estado. Um servidor público
ocupa cargo e desempenha atribuições no âmbito da administração pública, seja
civil ou militar. Servidores públicos não podem pretender se sobrepor aos poderes
a que estão subordinados.
Ne sutor ultra crepidam é
uma expressão latina, bem ao gosto dos juristas, que significa, literalmente,
"Não vá o sapateiro além das sandálias". A frase, atribuída por
escritores romanos ao pintor Apeles, da cidade grega de Kós, que viveu no século
IV a.C., narra a história de um sapateiro que se dirigira ao artista apontando
defeito na versão artística de uma sandália. O artista prontamente corrigiu o
erro. Incentivado pela contribuição que dera à obra artística o sapateiro logo
começou a fazer outras observações, sob suas perspectivas. Apeles interrompeu a
impertinência do sapateiro dizendo a que deveria se limitar. A frase do grego,
registrada por romanos, tem sido usada para alertar aqueles que tentam se
intrometer em assuntos que estejam além de suas especializações ou atribuições.
E neste momento pode ser dirigida aos que pretendam, com armas, aferir a
vontade popular, atribuição que a Constituição outorgou à Justiça Eleitoral.
Como já disse o Ministro Edson Fachin, “quem trata de eleições são forças
desarmadas”.
A subordinação do estamento
armado ao poder civil é um parâmetro de civilidade. Tal como o sapateiro de Kós
que pretendeu ir além do seu ofício, não raro, ao longo da história, com o uso
da força, a parcela armada tende a querer subordinar o remanescente da
sociedade civil, ampliando o seu campo de atuação. Assim como fez Apeles é
preciso delimitar os campos de atuação de cada um. O restabelecimento da
redação original do art. 42 da Constituição da República pode propiciar
adequada interpretação do art. 142. Além disto, outras medidas precisam ser
tomadas para incorporar o estamento militar à sociedade brasileira, dentre os
quais a mudança do curriculum das escolas e academias militares e a integração
dos hospitais militares à rede de hospitais do SUS.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/08/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/08/6463323-joao-batista-damasceno-o-poder-constituinte-e-as-forcas-armadas.html