Ao longo da história, quando os sistemas têm as
suas bases abaladas e se tornam insustentáveis com os valores que os
legitimam, o apelo à violência para a manutenção do status quo é prática
comum. Mas uma ordem somente pode ser mantida com justiça. Sem justiça
somente se pode tentar manter a ordem com violência. A manutenção de uma
ordem iníqua com violência dura pouco; cedo ou tarde desaba.
Na África do Sul, país ocupado e colonizado por
ingleses e holandeses, quanto mais o apartheid se mostrava insustentável
maior era violência do Estado contra a população nativa e negra. O
apartheid foi sustentado por meio da violência, com as forças policiais
sul-africanas constantemente promovendo massacres. A resistência da
população sul-africana foi intensa e aconteceu por meio de grupos como o
Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, que esteve preso por
27 anos.
No Haiti, governado por décadas por François
Duvalier, "Papa Doc", e posteriormente por seu filho Jean-Claude
Duvalier, "Baby Doc", o poder somente se pode exercer por meio
da violência da Milícia de Voluntários da Segurança Nacional, conhecidos
como Tonton Macoutes, que significa na língua crioula haitiana "Tio
do Saco".
Os Tontons Macoutes foram responsáveis por centenas
de milhares de torturas, assassinatos e desaparecimentos de pessoas.
Tonton Macoute ou "Tio do Saco" era expressa referência ao
"homem do saco" ou "bicho-papão", personagem imaginário
capaz de promover desaparecimento ou eliminação de pessoas.
O Brasil vive o dilema de tentar resolver a crise
que assola o sistema socioeconômico por meio de medidas repressivas. Em
data recente, o presidente Lula pediu perdão a Leonel Brizola e a
Darcy Ribeiro pela obstrução que seus partidários fizeram aos CIEPs nos
anos 90 do século passado. Darcy Ribeiro dizia, em 1982, que, "se os
governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir
presídios". E Brizola dizia que o Brasil somente se estabeleceria
como nação para todos os seus filhos por meio de uma soberana política
nacional de desenvolvimento. Os CIEPs foram boicotados, sob o fundamento
de que escola não é restaurante, e ao invés de se investir em educação, o
país foi entregue à especulação dos banqueiros. A conta chegou. Nada que
não tivesse sido previsto.
Sem projeto nacional de desenvolvimento e sem
educação integral, pública e laica, tal como preconizado por Anísio Teixeira
desde 1932 em manifesto publicado naquele ano, os rumos que a história
tomou nos trouxe ao caos no qual estamos inseridos. Ampliam-se as vagas
nos presídios, constroem-se presídios de segurança máxima, aumentam-se as
penas, prendem-se e promovem-se conduções coercitivas de jovens pretos,
pobres e periféricos para delegacias, sem mandado judicial ou situação de
flagrante, e nada se apresenta como solução para o problema da violência e da
criminalidade. Isto porque a solução não está no aparato repressivo.
A existência dos presídios de segurança máxima de
onde teriam fugido dois presos em Mossoró surgiu nos EUA, nos anos 80, e é
a expressão da falência do sistema prisional. Não bastasse o sistema
prisional que coloca o Brasil na terceira posição mundial em número
absoluto de presos, bem como proporcionalmente à sua população, criamos
por aqui, copiando aquele país, sua especialização: os presídios federais
de segurança máxima.
O sistema prisional é o destino para os
indesejáveis. Imprestáveis para produzir ou incapazes de consumir,
precisam ser acomodados em local no qual não perturbem os negócios. Assim,
o Estado do Bem-Estar Social, previsto na Constituição Cidadã de 1988, vai
sendo substituído pelo Estado Penal. O Direito Penal inicialmente tratado
como medida de contenção do poder punitivo do Estado transforma-se em meio
de contenção dos indesejáveis. Neste contexto, os presídios de segurança
máxima não são criados para dar solução a problemas da chamada criminalidade
no seio social. Mas tão somente visam a buscar solução para os
problemas existentes no interior do sistema prisional.
O Brasil registra o aprisionamento de cerca de
oitocentas mil pessoas. Significativo número desses presos cumpre pena por
acusação de tráfico de substâncias que a lei considera ilícitas e foram
pegas sem que estivessem portando arma. Portanto, não são pessoas a quem
se possa atribuir a qualidade de violentas ou perigosas. Pobres, pretos e
periféricos superlotam o sistema prisional, propiciando um ambiente de
violência e degradação da qualidade de pessoas humanas. Mas o sistema não
reconhece que ele próprio é o problema e desconsidera o que gera ao
promover o encarceramento em massa. As prisões no Brasil têm condições
piores que as masmorras medievais. Não são poucos os casos de mortes no
interior do sistema prisional, muitas delas por doenças nele
adquiridas, dentre as quais tuberculose, além de homicídios praticados por
outros presos ou por agentes do Estado. Aliás, não se pode afastar a
hipótese de que muitos presos tidos como foragidos foram na verdade
assassinados no interior do sistema prisional e o registro de fuga encobre
o homicídio. O Caso Rubens Paiva é exemplo desta ocorrência.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, em 23/02/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/02/6798525-a-fuga-do-presidio-de-seguranca-maxima.html