“A violência ‘nossa’ de cada dia, antes de violentar os demais, violenta
a nós mesmos porque nos tira a única coisa que é realmente ‘nossa’: a
humanidade, a capacidade de conceber o bom, o belo, o justo e a possibilidade
de sermos melhores. A violência ‘nossa’ de cada dia tem disfarces variados e está
sempre à ‘nossa’ porta. Mas nunca haveremos de tratá-la como nossa. Ela sempre
há de ser tratada como indesejável. Muito é o que podemos fazer contra a
violência, a começar pela preservação dos valores imateriais que nos
caracterizam como humanidade”.
O acorrentamento de
jovens negros e pobres na Zona Sul do Rio de Janeiro não é novidade. Desde 2010 O
DIA noticia fatos desta natureza. Isto também é corriqueiro na
história do Brasil. A instituição do pelourinho foi uma tentativa estatal de
suprimir a vingança privada e submeter o castigo corporal a um agente do
Estado. Nem é novidade a execução de um jovem por segurança particular, com
tiros no rosto em plena luz do dia, na periferia. Depois de muitos anos pela
Baixada Fluminense, dentre os quais 18 anos como juiz, posso afirmar que tal
fato também é corriqueiro. Novidade foi a filmagem.
A história da
humanidade é uma história com violência. Mas nenhuma sociedade conviveu
pacificamente com a violência como temos vivido. Convivemos cotidiana e pacificamente
com atos de violência que acabam matando o que nos caracteriza como humanos.
Por isso vivenciamos a busca da felicidade fora de nós. Mais do que a maldade,
temos presenciado o império da perversidade e da bestialidade.
É a violência
‘nossa’ de cada dia. Ela está presente sempre que se consegue impor a
destruição e o desrespeito ao invés da construção e da cortesia; está presente
em tudo que separa, divide ou destrói; está presente na desconsideração aos
outros por suas carências, formas de ser, de viver ou de ver a realidade;
quando por falta de argumento para promovermos o convencimento de quem pensa ou
sente diferente, o ridicularizamos. Igualmente quando nos calamos frente a uma
injustiça ou quando desviamos o olhar para não estabelecermos relação com quem
precisa de ajuda. Por lavar as mãos, as sujamos.
Há uma violência no
noticiário — por vezes exponenciada por padrões anômalos ao bom jornalismo —
que nos indigna, nos revolta e nos aterroriza. Mas há também a sorrateira, que
penetra em nossos lares e locais de trabalho, nossas ruas e mentes. É uma
violência sutil que se instala em nós e não a tratamos como estranha ou
passageira. Mas com naturalidade. Ela é o preparo do terreno para o plantio da
barbárie.
A violência ‘nossa’
de cada dia, antes de violentar os demais, violenta a nós mesmos porque nos
tira a única coisa que é realmente ‘nossa’: a humanidade, a capacidade de
conceber o bom, o belo, o justo e a possibilidade de sermos melhores. A
violência ‘nossa’ de cada dia tem disfarces variados e está sempre à ‘nossa’
porta. Mas nunca haveremos de tratá-la como nossa. Ela sempre há de ser tratada
como indesejável. Muito é o que podemos fazer contra a violência, a começar
pela preservação dos valores imateriais que nos caracterizam como humanidade.
Publicado originariamente no jornal O DIA, de 23/02/2014,
pag. 16. Limk: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-02-22/joao-batista-damasceno-violencia-nossa-de-cada-dia.html