domingo, 23 de fevereiro de 2014

Violência 'nossa' de cada dia

“A violência ‘nossa’ de cada dia, antes de violentar os demais, violenta a nós mesmos porque nos tira a única coisa que é realmente ‘nossa’: a humanidade, a capacidade de conceber o bom, o belo, o justo e a possibilidade de sermos melhores. A violência ‘nossa’ de cada dia tem disfarces variados e está sempre à ‘nossa’ porta. Mas nunca haveremos de tratá-la como nossa. Ela sempre há de ser tratada como indesejável. Muito é o que podemos fazer contra a violência, a começar pela preservação dos valores imateriais que nos caracterizam como humanidade”.

O acorrentamento de jovens negros e pobres na Zona Sul do Rio de Janeiro não é novidade. Desde 2010 O DIA  noticia fatos desta natureza. Isto também é corriqueiro na história do Brasil. A instituição do pelourinho foi uma tentativa estatal de suprimir a vingança privada e submeter o castigo corporal a um agente do Estado. Nem é novidade a execução de um jovem por segurança particular, com tiros no rosto em plena luz do dia, na periferia. Depois de muitos anos pela Baixada Fluminense, dentre os quais 18 anos como juiz, posso afirmar que tal fato também é corriqueiro. Novidade foi a filmagem.

A história da humanidade é uma história com violência. Mas nenhuma sociedade conviveu pacificamente com a violência como temos vivido. Convivemos cotidiana e pacificamente com atos de violência que acabam matando o que nos caracteriza como humanos. Por isso vivenciamos a busca da felicidade fora de nós. Mais do que a maldade, temos presenciado o império da perversidade e da bestialidade.

É a violência ‘nossa’ de cada dia. Ela está presente sempre que se consegue impor a destruição e o desrespeito ao invés da construção e da cortesia; está presente em tudo que separa, divide ou destrói; está presente na desconsideração aos outros por suas carências, formas de ser, de viver ou de ver a realidade; quando por falta de argumento para promovermos o convencimento de quem pensa ou sente diferente, o ridicularizamos. Igualmente quando nos calamos frente a uma injustiça ou quando desviamos o olhar para não estabelecermos relação com quem precisa de ajuda. Por lavar as mãos, as sujamos.

Há uma violência no noticiário — por vezes exponenciada por padrões anômalos ao bom jornalismo — que nos indigna, nos revolta e nos aterroriza. Mas há também a sorrateira, que penetra em nossos lares e locais de trabalho, nossas ruas e mentes. É uma violência sutil que se instala em nós e não a tratamos como estranha ou passageira. Mas com naturalidade. Ela é o preparo do terreno para o plantio da barbárie.

A violência ‘nossa’ de cada dia, antes de violentar os demais, violenta a nós mesmos porque nos tira a única coisa que é realmente ‘nossa’: a humanidade, a capacidade de conceber o bom, o belo, o justo e a possibilidade de sermos melhores. A violência ‘nossa’ de cada dia tem disfarces variados e está sempre à ‘nossa’ porta. Mas nunca haveremos de tratá-la como nossa. Ela sempre há de ser tratada como indesejável. Muito é o que podemos fazer contra a violência, a começar pela preservação dos valores imateriais que nos caracterizam como humanidade.





Publicado originariamente no jornal O DIA, de 23/02/2014, pag. 16. Limk: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-02-22/joao-batista-damasceno-violencia-nossa-de-cada-dia.html

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Mais uma tentativa de golpe

“Quem ler matérias em determinados veículos de empresas de comunicação que patrocinaram o golpe empresarial-militar de 1964 saberá o quanto os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram atacados por seus posicionamentos em favor das liberdades públicas. Ao final, restaram todos vitimados pelo arbítrio: os ministros cassados e a liberdade de informação cerceada. Havemos de reafirmar o Estado Democrático de Direito”.

Já não bastam manifestos por uma cultura de paz. É preciso exigir o fim da violência política das forças desestabilizadoras da democracia. Ao Estado cabe possibilitar o desarmamento dos ânimos e fazer valer os preceitos da Constituição.

A morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Band, não é a primeira morte de profissional de comunicação em cobertura de conflitos. A morte do repórter cinegrafista Gelson Domingos, também da Band, já denotava a necessidade de segurança aos profissionais das empresas de comunicação. A violência que suportam não é apenas a simbólica, entremeada no produto de suas atividades.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) apurou casos de agressões contra jornalistas durante as manifestações e protestos. Agentes do Estado cometeram 75% delas, e manifestantes, 25%. Ninguém, menos ainda um trabalhador no exercício da função, há de ser agredido. 

Assim como a opção pela luta armada serviu para justificar a truculência do regime empresarial-militar, a ação de infiltrados nas manifestações concorre para legitimar o Estado Policial que ascende. Da resistência à ditadura participaram jovens que hoje dirigem o país, a quem compete evitar a supressão dos direitos. 

A liberdade de imprensa não há de ser apenas um discurso ou um artigo da Constituição. Há de compreender garantias, também, aos jornalistas. Desde junho, milhões de cidadãos se expressam pelo Brasil, demonstrando a vitalidade da nossa democracia.

Mas há quem — dentre os manifestantes e no aparato do Estado — acrescente a elas o ingrediente inapropriado da violência. O direito de manifestação não há, também, de ser apenas um discurso ou um artigo da Constituição. O Golpe de Estado que não se consumou quando da denúncia do Mensalão — porque faltou povo que o apoiasse — nem durante as legítimas manifestações de junho não pode ser convertido em golpe contra os direitos, seja de manifestação, de reunião, de ampla defesa e de exercício da advocacia.

Com tal golpe, o legado da Copa haverá de ser o entulho do autoritarismo. É inadmissível a supressão dos direitos e o ataque aos que os defendem, sejam militantes, jornalistas, defensores públicos, promotores, magistrados ou advogados. 

Quem ler matérias em determinados veículos de empresas de comunicação que patrocinaram o golpe empresarial-militar de 1964 saberá o quanto os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram atacados por seus posicionamentos em favor das liberdades públicas. Ao final, restaram todos vitimados pelo arbítrio: os ministros cassados e a liberdade de informação cerceada. Havemos de reafirmar o Estado Democrático de Direito.


 



Publicado originariamente no jornal O DIA, de 16/02/2014, pag. 14 Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-02-15/joao-batista-damasceno-mais-uma-tentativa-de-golpe.html

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Paz com sociabilidade


“Legados da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 talvez não se realizem para a sociedade. Especialistas apontam que os megaeventos trazem benefícios para os organizadores, mas deixam ônus para os cidadãos”.

Legados da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 talvez não se realizem para a sociedade. Especialistas apontam que os megaeventos trazem benefícios para os organizadores, mas deixam ônus para os cidadãos. Os Jogos Pan-Americanos de 2007 pouco ou nada deixaram para a cidade e para o cartunista Latuff, apenas um processo por haver ironizado o mascote, marca de propriedade de uma empresa envolvida no evento.

O Rio de Janeiro vive momento difícil. Os transportes públicos são caros e precários; o trânsito, caótico; nos hospitais públicos não há atendimento adequado, e não há Educação pública de qualidade. Em matéria de política de segurança pública, a calamidade não poderia ser maior. Concretiza-se a ineficácia da ocupação militar de territórios, pois quem antes se questionava sobre sua impropriedade e insustentabilidade no longo prazo hoje tem por certo que o barco está afundando.

Quase um terço do contingente da Polícia Militar, efetivamente empregado em atividade de segurança pública, está alocado em algumas poucas dezenas de áreas militarmente ocupadas, em prejuízo do resto do estado. A ocupação militar de uma área não significa extinção da criminalidade. Crime é fenômeno social que permeia as relações em todas as sociedades. Com a ocupação militar algum tipo de criminalidade migra, mas não é possível ocupar militarmente todo o estado. Não haveria recursos materiais e humanos ou capacidade organizativa de uma empreitada tão insana.

Os ataques a policiais nas áreas das UPPs, com morte de praças, cujas vidas são expostas pela política militarizada, tornam mais acentuada a sensação de insegurança e propiciam ações individuais marcadas pelo sentimento de vingança. A política de confronto submete praças à truculência e os expõe à morte. Só os que se beneficiam da política de segurança militarizada e com a ‘guerra à criminalidade’ são capazes de defender a política de confronto e extermínio. Para estes, pouco importa se morre um policial, um traficante ou um trabalhador.

O que se tem no presente momento é a difusão da sensação de violência, do desejo de vingança e da cultura da truculência, que em nada contribui para uma cultura de paz. Uma obra de arte choca mais que os rastros de sangue de pessoas arrastadas depois de mortas. Jovens pobres e negros são vitimados em suas comunidades, discriminados nos shoppings e sujeitos a serem acorrentados em postes na Zona Sul da cidade. Sem o reconhecimento de que todos são detentores de direitos inerentes à qualidade de pessoa humana, não haverá paz.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, 09/02/2014, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-02-09/joao-batista-damasceno-paz-com-sociabilidade.html

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Garantia da Lei e da Ordem


“Judiciário não é um órgão, mas um dos poderes da República”

Marcelo Cerqueira, eleito vice-presidente da União Nacional de Estudantes (UNE) em 1963, esteve com o presidente João Goulart dias antes do golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964. Depois do golpe, já advogado, notabilizou-se na defesa de perseguidos do regime. Constitucionalista, teve também atuação política. Em 1986 foi um dos candidatos a deputado federal mais votados do Rio de Janeiro, mas não foi parlamentar constituinte. Seu partido não completara o quociente eleitoral, número de votos mínimos necessários para dar direito ao primeiro assento parlamentar. Marcelo Cerqueira tem se manifestado preocupado com a portaria normativa ‘Garantia da Lei e da Ordem’, editada pelo ministro da Defesa, Celso Amorim.

Portarias são atos administrativos internos pelos quais os chefes de órgãos expedem determinações a seus subordinados. São atos ordinatórios que visam a disciplinar o funcionamento da Administração e se limitam ao âmbito interno dos órgãos públicos. Do ponto de vista técnico, causa estranheza que se edite uma portaria com pretensão normativa. Pior ainda é seu conteúdo. A portaria pretende estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas contra a sociedade.

A Constituição estabelece que a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública pela Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares. O manual classifica como força oponente pessoas, grupos de pessoas ou organizações, explicitando divórcio entre o Estado e a sociedade civil. A portaria ‘criminaliza’ qualquer movimento, inclusive os sociais. Além disto, reduz as Forças Armadas ao papel de polícia no combate à criminalidade, quando sua função constitucional não é desta natureza.

O documento diz que os planejamentos das Operações de Garantia da Lei e da Ordem deverão ser elaborados no contexto da Segurança Integrada, com a participação dos órgãos do Judiciário, do Ministério Público e de segurança pública. Ou é a arrogância de quem se julga com superpoderes ou a ignorância sobre a divisão de poderes própria do nosso sistema constitucional. O Judiciário não é um órgão, mas um dos poderes da República. Quem o elaborou tem ciência da ilegalidade. Afinal, trata da necessidade de assessoria jurídica aos comandantes e fala da ‘suma importância’ da participação do Judiciário no apoio ao planejamento e na execução das operações, visando a evitar contestação. Mas o papel do Judiciário também é outro. É garantir os direitos.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, de 02/02/2014, pag. 12. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-02-01/joao-batista-damasceno-garantia-da-lei-e-da-ordem.html