“Disse o
juiz que "ambas as manifestações religiosas não continham traços
necessários de uma religião, a saber, um texto base (Corão, Bíblia etc),
ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado".
Neste sentido, o xintoísmo, o hinduísmo e o budismo também não seriam, para ele,
religiões. A fé precede o texto e o dispensa; no budismo não há deidade, no
hinduísmo há pluralidade de deuses, e no xintoísmo não há hierarquia. A decisão
que se refere aos cultos afro-brasileiros como "reuniões de macumba"
confunde a prática religiosa com o instrumento de percussão nela utilizada, a
exemplo dos bairros periféricos, onde popularmente se nominavam os pentecostais
tradicionais de ‘os bíblias’."
Jean
Bodin, ao conceber a teoria do poder divino dos reis, pretendeu justificar a
escolha da religião pelo soberano e evitar que as sociedades mergulhassem em
guerra civil. Se o rei era escolhido por Deus, deveria saber qual a verdadeira
religião. Tal concepção evitou guerras civis, mas possibilitou a matança
daqueles que não adotaram a religião oficial. A tirania se apossou do discurso
religioso e com ele justificou perseguições e extermínios, como ocorre sempre
quando o Estado seleciona um grupo para justificar sua atuação punitiva. A
fundação da cidade do Rio, em 1565, ocorreu neste contexto de guerras
religiosas. Fugindo de perseguições religiosas, protestantes e calvinistas
franceses ocuparam a Ilha de Villegagnon em 1555. Contra eles, combateram Mem de
Sá e Estácio de Sá, que os exterminaram. A separação da igreja e Estado,
princípio adotado por nós com o advento da República em 1889, tenta evitar a
preferência estatal por qualquer religião.
No
presente momento, o Rio é tomado por discussão sobre liberdade e tolerância
religiosa. Não apenas em decorrência de desrespeitos que se praticam contra
crenças populares, mas em razão de fundamento não jurídico de decisão judicial.
Ao
analisar pedido de retirada de vídeo postado na internet, no qual uma religião
se afirma em contraposição a outra de natureza popular, um juiz aproveitou para
expor concepção pessoal do que seja religião e das características que um
sistema de crenças deve conter para ser considerado tal. Disse o juiz que
"ambas as manifestações religiosas não continham traços necessários de uma
religião, a saber, um texto base (Corão, Bíblia etc), ausência de estrutura
hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado". Neste sentido, o
xintoísmo, o hinduísmo e o budismo também não seriam, para ele, religiões. A fé
precede o texto e o dispensa; no budismo não há deidade, no hinduísmo há
pluralidade de deuses, e no xintoísmo não há hierarquia. A decisão que se
refere aos cultos afro-brasileiros como "reuniões de macumba"
confunde a prática religiosa com o instrumento de percussão nela utilizada, a
exemplo dos bairros periféricos, onde popularmente se nominavam os pentecostais
tradicionais de "os bíblias".
Diante da
reação da sociedade, o juiz buscou se retratar, dizendo que "a crença no
culto de tais religiões, daí por que faço a devida adequação argumentativa para
registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de
religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto-base são elementos que podem
se cristalizar, de forma nem sempre homogênea". Não houve retratação ou
esclarecimento. Manteve-se a ideia de que uma religião há de ter texto-base e
deidade. Em matéria de fé, nenhum juiz tem competência, e o Estado somente deve
intervir para garantir a liberdade religiosa.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, em 25/06/2014.
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