segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Educação é direito


“As normas constitucionais não são meros projetos a serem implementados quando possível. Os direitos dos cidadãos são exigíveis de quem tem o dever de prestação, tal como pensavam, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire”.

 

Dispõe a Constituição que a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados são direitos sociais. Mas, também que é direito dos trabalhadores o salário mínimo, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo.

 

Saúde e educação são temas de todos os debates sobre direitos sociais. Embora seja competência privativa da União Federal estabelecer diretrizes e bases da educação nacional, compete a todos os entes da federação proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

 

A educação é direito de todos e dever do Estado, mas também da família, e há de ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

 

As bases constitucionais nas quais o ensino deve ser ministrado são a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino, gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, a valorização dos profissionais da educação escolar, a gestão democrática do ensino público, a garantia de padrão de qualidade e piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública.

 

O Estado tem o dever de efetivar educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade, universalização do ensino médio gratuito. atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até cinco anos de idade, acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do aluno e atendimento em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

 

As normas constitucionais não são meros projetos a serem implementados quando possível. Os direitos dos cidadãos são exigíveis de quem tem o dever de prestação, tal como pensavam, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

 
Publicado originariamente no jornal O DIA, pag. E6. Link:

Lendas de um juiz


“Ninguém que tenha exposição pública está isento dos mitos que se constituem sobre si. Mas os criados em torno do eterno juiz da Infância e Juventude Siro Darlan são emblemáticos. Não sem razão. Na época na qual a única política de proteção à população de rua eram o recolhimento e a internação, ele instituiu programa de assistência. E, com cartolina e uma máquina fotográfica instantânea, emitia ‘identidades’ para moradores de rua, que passavam a ostentar o único documento que lhes indicava nome, filiação, impressão digital e a imagem. Há muito a ser feito no Brasil pelos excluídos, e as práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça”.

 

Uma adolescente sugeriu à mãe que tatuassem um coração em cada uma, demonstrando amor recíproco. Coisa rara, na idade em que costumam querer se distanciar dos pais. Calorosa, a mãe acolheu o pedido e foram ao tatuador, onde ouviram que “portaria do juiz Siro Darlan” proibia tatuagem em criança ou adolescente, mesmo com autorização dos pais. Outros tatuadores repetiram a estória. Um deles narrou processo que sofrera por tal prática. A mãe indagou-me sobre a existência da norma e lhe disse que há quase uma década tal juiz fora promovido a desembargador e que não teria poderes constitucionais para tal restrição. Mas telefonei para ele, e a resposta foi a mesma: não editara tal portaria e não poderia fazê-lo.

 

O desembargador Siro Darlan aproveitou para me contar sobre quando chegou a um cinema e um grupo de adolescentes revoltados reclamava por não poder entrar, ainda que o filme estivesse classificado para as suas idades. O gerente colocara na porta aviso de que menores de 18 anos não poderiam ingressar no cinema desacompanhados dos pais, “por ordem do juiz Siro Darlan”. Custou a convencer o gerente do cinema de que era o próprio, que jamais editara tal proibição, que há alguns anos era desembargador e que não teria poderes para instituir tal restrição.

 

São muitas as ocorrências folclóricas sobre o desembargador. Uma estudante narrou que sofria ao ouvir seu nome, pois a mãe, diante de qualquer rebeldia, dizia que iria levá-la ao juiz. Outra mulher, vendo-me acompanhado do desembargador numa reunião com movimentos sociais, se aproximou com uma criança no colo e disse-me ser “menina do Siro”. Explicou que fora moradora de rua e, acolhida pelo então juiz da Infância e Juventude, teve oportunidade de fazer-se, estabelecer laços sociais e constituir família.

 

Ninguém que tenha exposição pública está isento dos mitos que se constituem sobre si. Mas os criados em torno do eterno juiz da Infância e Juventude Siro Darlan são emblemáticos. Não sem razão. Na época na qual a única política de proteção à população de rua eram o recolhimento e a internação, ele instituiu programa de assistência. E, com cartolina e uma máquina fotográfica instantânea, emitia ‘identidades’ para moradores de rua, que passavam a ostentar o único documento que lhes indicava nome, filiação, impressão digital e a imagem. Há muito a ser feito no Brasil pelos excluídos, e as práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça.

 

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/01/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-01-18/joao-batista-damasceno-lendas-de-um-juiz.html

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Que todos tenham vida


“Segurança e liberdade são expressões contidas tanto no preâmbulo da Constituição quanto no Art. 5º, quando trata dos direitos e garantias individuais fundamentais. A liberdade, na nossa ordem jurídica, é o primeiro direito sobre o qual se assentam todos os demais e consiste no direito de fazer e buscar tudo o que não prejudique terceiros”.

 

Ante a diversidade de hábitos e costumes pelo mundo e ao longo dos tempos sempre se buscou o que em comum caracterizaria a humanidade. Coreanos comem cachorro e dizem ser uma iguaria. Árabes e judeus não comem porco por considerá-lo impuro. Dizem os psicólogos que a civilidade que nos caracteriza como humanidade nos impõe três interdições absolutas, em qualquer lugar ou época: alimentação com carne dos indivíduos da mesma espécie, relação sexual de pais e mães com filhos e filhas e matar o semelhante.

 

Antropólogos relativizam e distinguem canibalismo de antropofagia. Esta seria um ritual pelo qual se adquiririam atributos do oponente abatido, enquanto o canibalismo seria mero ato de alimentação. Mas cada povo estabelece seus valores de acordo com seus hábitos consolidados, caracterizadores de sua cultura. Assim, outras interdições podem ser instituídas em cada lugar ou época. Porém, serão sempre relativas.

 

A Constituição da República no capítulo dos direitos e garantias individuais diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança; em seu preâmbulo, diz que a Assembleia Constituinte se reuniu para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

 

Segurança e liberdade são expressões contidas tanto no preâmbulo da Constituição quanto no Art. 5º, quando trata dos direitos e garantias individuais fundamentais. A liberdade, na nossa ordem jurídica, é o primeiro direito sobre o qual se assentam todos os demais e consiste no direito de fazer e buscar tudo o que não prejudique terceiros.

 

Instituições somente estarão habilitadas ao desempenho de suas atribuições se, para a garantia da segurança, indispensável à vida coletiva, atuarem em prol da liberdade, da vida e da felicidade humana. Para tanto é preciso que revisitemos os fundamentos da República e seus objetivos fundamentais, dentre os quais a construção de sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

A eliminação da vida se traduz em interdição universal. Nenhuma política pública visando à segurança dos cidadãos pode ter por pressuposto o extermínio. Que todos tenham vida e que a tenham em abundância!

 

Publicado originariamente em O DIA, em 04/01/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-01-11/joao-batista-damasceno-que-todos-tenham-vida.html

 

Broa de milho e cultura


 “Comer é um ato natural e biológico. Todo ser vivo demanda alimentação para sua subsistência e reprodução. Mas, o que comer e como comer é que faz o diferencial e é resultado do mundo da cultura”.

 

O Instituto Atá lançou o projeto “Gastronomia é cultura”. Claro que gastronomia é cultura. Comer é um ato natural e biológico. Todo ser vivo demanda alimentação para sua subsistência e reprodução. Mas, o que comer e como comer é que faz o diferencial e é resultado do mundo da cultura.

 

O hábito alimentar do brasileiro pouco tem dos povos originários. Poucos elementos nativos foram incorporados à nossa dieta. Os colonizadores trouxeram seus alimentos e seus hábitos alimentares. Com exceção da mandioca é raro o ingrediente na mesa do brasileiro que não tenha origem exterior. A batata, o milho e a banana são americanas, mas não são do Brasil. Manga, jaca, laranja, uva são de origem ainda mais remota. Boi, porco e galinha também não são nossos. A construção da brasilidade na culinária não se fez com os ingredientes, mas na forma de seus preparos. O milho é mexicano, mas a broa de milho é mineira, ou melhor, do Brasil-interior. Mesmo tendo ingredientes originários da África o acarajé, o vatapá e o caruru são baianos.

 


Tanto quanto já se desprezaram os ingredientes nativos, também já se desprezarem os hábitos alimentares dos brasileiros. O livro ‘Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros´ de Eduardo Frieiro é um descalabro em se tratando de análise da cultura alimentar caipira. Nele contém elogios ao bife com batata frita, considerados ‘modo superior de alimentação’ a que Monteiro Lobato diria ser pensamento de homem colonizado. Joaquim Barbosa, agora midiático ao lado de subcelebridade global, quando presidente do STF, disse que seu antecessor era um reles brasileiro, um caipira que não conhecia o conjunto musical The Ink Spots. Na mente do colonizado conhecer um conjunto musical estrangeiro o torna especial. É este tipo de elite que se está recriando no Brasil, sem compromisso com os valores do povo brasileiro.


 


Com a redemocratização do Brasil em 1985 foi editada uma lei de incentivo à cultura e o ministro Aluísio Pimenta surpreendeu a todos com um programa de governo apoiado em manifestações da cultura regional, apelidado pelo ‘moderno’ jornal Folha de S. Paulo de ‘a cultura da broa de milho’. O mesmo jornal não chamou de ‘cultura da peruagem’ os gastos da ministra da cultura na gestão de Marta Suplicy para um desfile de moda em Londres, o que foi feito por Ricardo Boechat. Ao contrário, lhe abriu espaço para dizer que o desfile de moda financiando com dinheiro público servia para mostrar ao exterior uma imagem positiva do Brasil.



Quem faz a cultura popular é o povo. Recursos públicos para financiar o pedantismo de chefs e suas cozinhas é desperdício de dinheiro que é público e portanto de todos. A culinária, expressão da cultura do povo brasileiro, não demanda verbas para sua subsistência. A cultura da apropriação de verbas públicas é que é outro tipo de cultura.


 


Publicado originariamente em O DIA, em 04/01/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-01-04/joao-batista-damasceno-broa-de-milho-e-cultura.html

 

Prende e solta


 “A concessão de habeas corpus não expressa absolvição. Num Estado de Direito há procedimentalidade para as acusações. Sem regular processo, o que se tem é o linchamento, comum na mídia”.

 

Pessoas pouco familiarizadas com o sistema de direitos e garantias, notadamente com os direitos humanos, dizem que a polícia prende e a Justiça solta. A única instituição que pode prender ou soltar é a Justiça. Diz o Art. 301 do Código de Processo Penal que em situação de flagrante delito as autoridades e seus agentes devem dar voz de prisão, e qualquer do povo pode. Flagrante é a certeza visual do crime. Mas não só quem o viu pode efetuar a prisão. Se alguém está no local do crime com a arma do crime, pode ser pressuposto o autor do fato e portanto sujeito à prisão em flagrante, desde que feita imediatamente. A voz de prisão e a condução para a delegacia para a lavratura do auto de prisão somente subsistem se, ao serem comunicadas ao juiz, em 24 horas, for decretada a prisão cautelar. Inexiste prisão sem que seja decretada pela Justiça. Se a Justiça não a decreta, a pessoa, mesmo presa em flagrante, estará em liberdade. Cabe ao delegado de polícia, única autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante, se limitar a redigir termo circunstanciado, nos crimes de pequeno potencial ofensivo, ou ainda registro de ocorrência.

 

A concessão de habeas corpus para oficiais de alta patente da Polícia Militar não mereceu os mesmos comentários que os deferidos a outras pessoas. Tanto jornalistas, policiais e Ministério Público não se cansaram de falar da liberdade deferida às pessoas que invadiram o Hotel Intercontinental, em São Conrado, depois de presas por quase 600 dias sem terem sido apresentadas para julgamento. Falou-se da soltura, mas não se falou da ilegalidade da manutenção daquela prisão. No caso da soltura do alto comando da PM, não tivemos os comentários de sempre. Bem melhor assim. A imprensa seria mais informativa se, ao invés de comentários, se limitasse à informação.

 

A concessão de habeas corpus não expressa absolvição. Num Estado de Direito há procedimentalidade para as acusações. Sem regular processo, o que se tem é o linchamento, comum na mídia. O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. Mas ilegalmente. Diz a Constituição que a prisão é exceção. A prisão provisória, banalizada por juízes sem concepção do sistema de direitos fundamentais, somente excepcionalmente teria cabimento. Contra tais arbitrariedades é que existe habeas corpus, remédio contra a ilegalidade da prisão, pouco importando se o acusado é policial, traficante, juiz, promotor de justiça ou trabalhador em outro ramo de atividade. Para sua concessão adequada, a Justiça deve analisá-lo com a venda nos olhos, sem escolher o destinatário.

 

Publicado originariamente em O DIA, em 27/12/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-12-27/joao-batista-damasceno-prende-e-solta.html