terça-feira, 30 de junho de 2015

Mundo sem Aluizio Freire


“Mas, enquanto os senadores brasileiros discutiam a libertação de “presos políticos” venezuelanos, acusados de causar dezenas de mortes e centenas de ferimentos em protestos, os reais “presos políticos” fluminenses, que tiveram prisão decretada tão-somente para não protestar na Copa, tiveram o deferimento de ‘habeas corpus’ pelo STJ, sem que qualquer palavra fosse pronunciada sobre tais prisões ou sobre o retardamento na soltura. Igualmente não se ouviu pronunciamento sobre a execução, numa rua em São Paulo, pela polícia, com narração e comemoração ao vivo pelo ‘jornalismo do mundo cão’. Discurso parlamentar seria pouco. Também não seria o caso de protesto perante o jornalista ou a emissora; mas perante quem atribuiu a concessão pública do canal de TV e não lhe impõe condições para o exercício da atividade em respeito à vida e à dignidade da pessoa humana”.
O Brasil é um país de contrastes, em todos os sentidos. A capacidade de fazer conviver os contrários, sem que se explicitem, é marca da brasilidade. O ‘jeitinho’ é fenômeno que não se caracteriza pela ilegalidade, ao mesmo tempo no qual não se caracteriza pelo padrão procedimental. É um modo especial alheio à procedimentalidade pelo qual se tentam resolver problemas. Nem sempre é ilegal, mas foge à normalidade institucional.
Esta capacidade de fazer conviver situações contrárias foi que propiciou no Império a convivência do ideário liberal e a escravidão. O liberalismo brasileiro era escravocrata e não tratava a liberdade individual como premissa dos demais direitos; do direito liberal de propriedade é que decorriam os demais. Portanto, da ausência de propriedade decorria a ausência da liberdade.
Semana passada senadores brasileiros foram à Venezuela, numa afronta à soberania daquele país, visitar presos, que consideram políticos, e levar a democracia ao povo venezuelano. Não fosse a ação protetora da polícia venezuelana teriam corrido risco. O tombamento de um caminhão de farinha que interrompeu o trânsito na estrada que liga o aeroporto à capital foi tratado como engarrafamento proposital para impedir o avanço dos forasteiros. Era o factoide de que se precisava. Os senadores disseram que o governo daquele país paralisara as vias públicas tão-somente para impedir suas locomoções.
Mas, enquanto os senadores brasileiros discutiam a libertação de “presos políticos” venezuelanos, acusados de causar dezenas de mortes e centenas de ferimentos em protestos, os reais “presos políticos” fluminenses, que tiveram prisão decretada tão-somente para não protestar na Copa, tiveram o deferimento de ‘habeas corpus’ pelo STJ, sem que qualquer palavra fosse pronunciada sobre tais prisões ou sobre o retardamento na soltura. Igualmente não se ouviu pronunciamento sobre a execução, numa rua em São Paulo, pela polícia, com narração e comemoração ao vivo pelo ‘jornalismo do mundo cão’. Discurso parlamentar seria pouco. Também não seria o caso de protesto perante o jornalista ou a emissora; mas perante quem atribuiu a concessão pública do canal de TV e não lhe impõe condições para o exercício da atividade em respeito à vida e à dignidade da pessoa humana.
A semana foi triste. E desde quinta-feira mais triste ainda com a morte do jornalista Aluizio Freire. Foi dele a matéria na qual se noticiou, em 2007, que o então governador Sérgio Cabral considerava o útero das mulheres faveladas fábrica de reposição de mão de obra para o tráfico.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/06/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-06-27/joao-batista-damasceno-mundo-sem-aluizio-freire.html
 

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