Rachadinha
não é crime. Dispõe a Constituição da República que não há crime sem lei
que antes o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Portanto, crime é
o que a lei conceitua como tal e não há no ordenamento jurídico brasileiro
qualquer definição de “rachadinha” como fato criminoso. Mas parlamentar que
embolse a remuneração dos assessores lotados em seu gabinete, que crime
comete? Depende da conduta havida. Vamos analisar?
O crime
pode ser de peculato que consiste em apropriar-se de dinheiro, valor ou
qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em
razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Se a nomeação
do funcionário para assessoria não se destina à constituição de efetiva assessoria,
mas meio de apropriação do dinheiro público que seria a sua remuneração é
peculato. A nomeação é apenas meio para a apropriação do dinheiro público.
Trata-se de
crime praticado pelo parlamentar contra a administração pública. Para fins
penais parlamentar é funcionário público, assim como todo aquele que
desempenha atividade pública, sejam agentes políticos ou voluntários em
colaboração com o poder público.
O crime pode
ser de extorsão que consiste em constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, com o intuito de obter para si ou para outrem indevida
vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma
coisa. A exigência de entrega de cartão e senha do banco, feita a
assessor, visando aos saques e apropriação de sua remuneração caracteriza
este crime.
O crime
pode ser de roubo que consiste em subtrair coisa alheia móvel, para si ou
para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de
havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. A
coisa móvel subtraída pode ser o dinheiro do funcionário e neste caso o
parlamentar pratica o crime de roubo e o funcionário é a vítima. Tanto o
roubo quanto a extorsão são crimes contra o patrimônio do funcionário
lesado na subtração de sua remuneração.
Quando o
que se pratica é roubo, extorsão ou peculato não é adequado chamar de
“rachadinha”. As “coisas” têm seus nomes e não é adequado chama-las por
outro. Caqui e tomate são frutas parecidas, mas diversas e com nomes próprios.
A
dificuldade não está em qualificar o que se faz. Para tanto basta
analisar a conduta do criminoso e ver sua compatibilidade com o texto da
lei. Difícil é fazer certas instituições funcionarem para se pronunciarem
sobre conduta de gente poderosa. Por vezes é até mesmo difícil descobrir
que órgão tem competência para julgar. Há casos de processos iniciados
no STF, devolvidos a juiz singular de primeira instância, com
posterior deslocamento – ainda que não definitivo – para órgão colegiado
de tribunal local. São situações em que decorridos anos da prática do
crime ainda sequer se definiu em que órgão iniciará o processo.
Há regras
para definição da competência dos órgãos do Poder Judiciário. Está na
Constituição e nas leis. Não há foro privilegiado para função que não mais
se exerce. Cessado exercício da função, cessa o foro privilegiado. Se o
criminoso ocupa outro cargo, o foro privilegiado existe apenas para o cargo
atual. Pelos crimes cometidos em cargo anterior, que não mais ocupa, não
mais há o foro privilegiado que antes ostentava. Portanto,
inexistindo foro privilegiado por crime anterior ao cargo atual e não
subsistindo foro por prerrogativa de função pelo cargo que não mais se exerce,
a competência é a comum.
Além de
crime, a apropriação de remuneração de assessor, caracteriza improbidade
administrativa e sujeita o desonesto a devolver em dobro e ficar
inelegível por até 8 anos.
Pode até
não ser crime algum, no caso do servidor que, graciosamente, sem qualquer
comportamento intimidatório do parlamentar, ter se disposto a privar-se
dos seus meios de subsistência para ajudar o tribuno a juntar o dinheiro
para comprar imóveis, por exemplo. E neste caso, não se estará diante de
ilícito penal. Mas, de ato voluntário de disposição de bem próprio, ou
seja, de doação feita por pessoa capaz de doar a pessoa igualmente capaz
de receber.
O que se
faz aqui é uma análise abstrata, sem qualquer conexão com casos concretos
eventualmente ocorridos ou noticiados. Qualquer semelhança é mera
coincidência. Cada caso merece análise própria.
Publicado originariamente em 31/08/2021, no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/07/6201524-joao-batista-damasceno-rachadinha-e-crime.html
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