Não foi apenas a morte de um homem dentro de
uma viatura transformada em câmara de gás que marcou o protagonismo da Polícia
Rodoviária Federal (PRF) no noticiário dos últimos dias. A chacina da Vila
Cruzeiro, com a morte de 23 pessoas, assim como em outros casos de igual
natureza, expôs o que anda fazendo a PRF fora das estradas.
Tais atuações, com resultado de mortes, tem
levado a sociedade brasileira a indagar o que está acontecendo com a PRF. No
imaginário social, a PRF ainda guarda a lembrança do Vigilante Rodoviário e do
cão Lobo, fiel escudeiro e companheiro de patrulhas do inspetor Carlos,
notabilizados em filmes pela fidalguia com a qual ajudavam os motoristas em
tempos nos quais a qualidade dos veículos era duvidosa e as estradas bem piores
que as atuais.
Em se tratando de carreira funcional, a PRF
é exemplar. Trata-se de uma classe horizontalizada, sem a hierarquização que
engessa as demais carreiras policiais. Mas, o que a PRF tem feito não mais
corresponde ao imaginário, nem está em consonância com a ordem jurídica. A
Constituição da República é clara: “A Polícia Rodoviária Federal, órgão
permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira,
destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”.
Portanto, a Constituição delimitou o âmbito territorial da atuação da PRF, ou
seja, as rodovias federais. E nenhuma lei ou ato normativo pode ampliar tais
poderes, sob pena de inconstitucionalidade.
Ao invés de se manter no âmbito das estradas
federais e da legalidade a PRF tem saído pelo acostamento e adentrado em
caminhos marginais e vias urbanas. Duas portarias de ex-ministros da Justiça da
atual Presidência da República mudaram as atribuições da PRF e permitiram a
integrantes da corporação participar de operações conjuntas com outros órgãos.
Em 11 de fevereiro passado, agentes da PRF,
em conjunto com agentes do Bope, já haviam atuado na Vila Cruzeiro com o
objetivo declarado de capturar suposta quadrilha especializada em roubos de
carga e prender um tal de Chico Bento. Naquela incursão, oito pessoas foram
mortas. Em outubro do ano passado, pelo menos 25 pessoas foram mortas em uma
ação conjunta da PRF com a PM de Minas Gerais, em Varginha, no sul do estado.
Ao arrepio da Constituição, o site da PRF
anuncia que sua atuação não está limitada ao texto constitucional, pois “a PRF
tem sob sua responsabilidade a segurança viária e a prevenção e repressão
qualificada ao crime em mais de 75 mil quilômetros de rodovias e estradas
federais em todos os estados brasileiros e nas áreas de interesse da União”.
Mas não só em áreas que considera de
interesse da União atua a PRF. Em 18 de março de 2018, quatro dias depois do
assassinato da vereadora Marielle Franco, um policial rodoviário compareceu ao
bar Bip Bip, tradicional reduto boêmio em Copacabana, na Zona Sul do Rio, e
depois de beber umas e outras começou uma discussão com o dono do bar,
Alfredinho, de 74 anos. Alfredinho, que morreu menos de um ano depois, foi
detido e levado para a 14ª Delegacia Policial, no Leblon. O tumulto foi criado
por um agente da PRF que criticava Alfredinho em razão de uma placa que
homenageava a vereadora assassinada. Policial armado e bêbado fazendo arruaça
em bar não é novidade para quem já tenha trabalhado na periferia e tido o
dissabor de julgar tais casos. A surpresa foi a presença de viaturas da PRF
deslocadas para Copacabana onde estava o agente transgressor.
O ovo da serpente que eclode foi colocado na
chocadeira pelas sucessivas concessões feitas ao sistema repressivo desde a
redemocratização. O aparato repressivo herdado da ditadura empresarial-militar
não foi desmontado. Ao contrário, escondeu-se nos esgotos das instituições no
aguardo do momento para atuar à luz do dia, o que faz hoje.
Muitos foram os incentivos que,
ironicamente, governos populares deram aos porões. Eu trabalhava em Nova Iguaçu
quando lá foi instalada uma fábrica de armas que se diziam não letais. A morte
de Genivaldo nos dá dimensão da letalidade, assim como os jornalistas que
perderam a visão em decorrência de tiros de bala de borracha, disparados enquanto
cobriam manifestações, sabem o quanto são lesivas. A ampliação do aparato
repressivo não é substitutiva de outros métodos de violência antes empregados,
pois se incorporam.
As armas de menor letalidade ampliam o
aparato repressivo e os lucros. Elas precisam ser distribuídas aos agentes e
usadas, pois têm prazo de validade. Assim, potencializam ainda mais a
violência. Ferem, cegam e matam. E também atendem aos interesses dos que se
enriquecem com a venda, e às vezes, dos encarregados das aquisições.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/06/2022, pag. 14. Disponível
no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/06/6415499-joao-batista-damasceno-armas-nao-letais-que-matam.html
Entrei na PRF em 2104, quando se orgulhavam de ser uma "policia-cidadã". De fato, me parecia uma instituição comprometida com a segurança dos condutores e da população em geral. Sempre me desgostei com o enfoque excessivo no combate ao "tráfico de drogas", que só prendia mulas e caminhoneiros. Mas de lá pra cá... a instituição tem abraçado o bolsonarismo com um sorriso no rosto... sinal dos tempos
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