Em novembro de 1986 um badernaço em Brasília chocou
o país. Acabara de ser eleita a Assembleia Nacional Constituinte. O presidente
José Sarney, em fevereiro, por decreto, havia congelado os preços do varejo,
mudado a moeda de Cruzeiro para Cruzado e cortado três zeros do seu valor
nominal
Foi um golpe eleitoral. Não se regula procura e
oferta por decreto. A situação econômica do país era caótica e nos
supermercados faltava tudo: queijo, ovos, carne, óleo e até papel higiênico. O
fracasso do Plano Cruzado foi retumbante. Para animar os eleitores o presidente
ordenou que a Polícia Federal fosse a campo e confiscasse os bois que
encontrasse.
A Polícia Federal que fora instituída pela ditadura
empresarial-militar, e que atuara tanto na repressão aos opositores do regime
quanto no exercício da censura, se esmerava para mostrar bons serviços no
momento de redemocratização. Daí que se mostrou disposta a prender o gado.
Passada a eleição o presidente decretou o Plano Cruzado II, com medidas
impopulares, dentre as quais aumento de tarifas públicas, reajuste de impostos,
liberação dos reajustes de preços e arrocho salarial. A inflação galopava.
Sentindo-se enganada eleitoralmente e diante das
medidas econômicas que pioravam sua qualidade de vida a sociedade foi tomada de
indignação. As centrais sindicais e organizações da sociedade civil começaram a
se manifestar. Uma manifestação em Brasília partiu da Rodoviária, no Plano
Piloto da capital, com o intuito de seguir para o Congresso e, depois, para o
Ministério da Fazenda. A passeata seguiu sem ser incomodada.
Uma barreira policial que havia sido montada não
impediu a passagem dos manifestantes, nem lhes causou embaraço. Trabalhadores,
sindicalistas e donas de casa chegaram a acreditar que tal comportamento se
devesse aos novos ares democráticos que o país acreditava estar respirando.
Chegando ao Congresso um cordão de isolamento feito
pelo Exército impediu a aproximação à Praça dos Três Poderes. Igualmente não
puderam ir ao Ministério da Fazenda entregar cartas de protesto ao então
ministro da Fazenda. Os manifestantes iniciaram retorno à Rodoviária, mas um
grupo deu início a depredações, agressões e incêndios de carros e ônibus. Do
carro de som, o presidente da CUT deu por encerrada a manifestação e os
trabalhadores se retiraram da Esplanada dos Ministérios.
Mas um grupo permaneceu e manteve o quebra-quebra,
atingindo os próprios policiais que antes havia possibilitado a passagem. Além
dos prejuízos materiais, o distúrbio terminou com quase uma centena de feridos,
incluindo alguns policiais com gravidade. Posteriormente a imprensa publicou
fotografias de ônibus do Exército deixados no caminho, recheados de papelão
para facilitar o incêndio, bem como identificou militares das Forças Armadas
dentre os incendiários. Mais que uma revolta popular foi um ato de terrorismo
de Estado.
A tigrada já vinha dando demonstrações ostensivas
de que não tolerava a redemocratização. O Caso Riocentro o demonstrou. Tais atos
eram forma de admoestação para salvaguardar algumas sinecuras, bem como
negociar perdão por atos antidemocráticos posteriores à lei da anistia de 1979.
Havia a crença de que a anistia pacificaria o país e que a torrente democrática
arrastaria os vermes e ratos para os esgotos e que a civilidade prevaleceria em
definitivo sob a luz do sol. Mas nos porões escuros e nos esgotos subterrâneos
os ratos se fortaleceram, se reproduziram e ressurgem como zumbis.
As forças políticas envolvidas no processo de
redemocratização subestimaram o poder de permanência da tigrada. A chamada
normalidade democrática, que vigeu nas zonas urbanizadas das cidades,
notadamente a Zona Sul do Rio de Janeiro, não se estendeu às periferias e
favelas.
Convivendo e trabalhando na Baixada Fluminense por
algumas décadas, não vislumbrei por lá o sopro democrático, nem a efetiva
regularidade institucional. Se durante a ditadura o Capitão Zamith era capaz de
tudo na Baixada Fluminense, no período da chamada “normalidade democrática”,
com instituições em funcionamento formal, outros algozes das liberdades
públicas surgiram. Mas todos enfiados até o pescoço no aparato repressivo do
Estado, que não foi desmontado na redemocratização.
Nesta semana novo badernaço ocorreu em Brasília,
sem qualquer atuação efetiva do aparato estatal para impedir os atos de
vandalismo. Depredações, incêndios, tentativa de invasão da sede da Polícia
Federal, bloqueio de vias expressas e intimidações a cidadãos que estavam em
vias públicas levaram pânico à cidade. Setores da mídia noticiam que o GSI,
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, pode “estar
por trás dos atos terroristas que que apavoraram Brasília na noite de
segunda-feira (12)”.
Se os atos de terrorismo são praticados para
negociar benesses e anistia não podemos contemporizar. Tal como num assalto a
mão armada somente podemos contemporizar para evitar o mal maior, que seria a
perda de nossa vida. Mas, em seguida havemos de reclamar o que nos é de direito
e buscar as responsabilizações devidas.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em
17/12/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/12/6541704-joao-batista-damasceno-badernaco-em-brasilia.html
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