domingo, 26 de fevereiro de 2023

Agentes públicos, liberdades públicas e nudez

Há alguns anos dois turistas alemães foram presos e conduzidos para a Delegacia de Proteção ao Turista, em Salvador (BA), após trocarem a roupa num canto do saguão do aeroporto daquela cidade. Um terceiro, que estava com eles, também foi conduzido coercitivamente, com evidente abuso de autoridade, à delegacia para prestar depoimento. Os três, todos com mais de 60 anos, embarcariam de volta às suas casas na Alemanha, depois do Carnaval, mas foram impedidos em razão da prisão.

Os turistas disseram que não acharam que a troca de roupas incomodaria as pessoas presentes no aeroporto, depois de tudo o que viram no Carnaval pessoalmente e pela TV, nem que se tratava de crime. Apesar do evidente erro quanto à licitude do que fizeram, os dois turistas foram autuados por prática de ato obsceno e somente dias depois puderam viajar. Quem conhece a Alemanha sabe que, com muito menos exibicionismo que no Carnaval brasileiro, é comum encontrar pessoas nuas tomando sol nos parques, sem qualquer atenção dos demais frequentadores. Os turistas alemães até hoje não devem ter entendido qual é a regra de vestimenta ou da falta dela no Brasil.

No Rio de Janeiro, uma banhista que fazia topless na Barra da Tijuca foi presa pela Guarda Municipal, conduzida à delegacia de polícia e igualmente autuada. De novo o que se viu foi abuso de autoridade. Isto porque, além da licitude da prática do topless, a Guarda Municipal – hoje autarquia – era uma empresa pública com seus empregados uniformizados visando, exclusivamente, à proteção do patrimônio público municipal. A Guarda Municipal carioca não era e continua não sendo uma polícia de costumes. Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Isto decorre do princípio da legalidade esculpido na Constituição e os agentes públicos somente podem e devem fazer o que a lei manda.

Na Grécia Antiga, os desportos tinham duas modalidades: hípicos e gímnicos. Nos esportes equestres ou hípicos, os atletas competiam vestidos. Nos desportos gímnicos os atletas competiam nus. O radical da palavra gímnico é o mesmo das palavras ginásio, ginasta, ginástica, ginecologia e está relacionado ao físico ou à atividade física.

Há algum tempo li e não reencontrei a fonte para a devida citação que os gregos competiam nus para exibição do corpo e demonstração da virtude do cuidado com ele. A nudez dos atletas gímnicos compunha um ritual cívico, que também tinha sentido religioso. Na Grécia Antiga, a competição com o corpo nu era motivo de orgulho, pois demonstrava virtudes mentais, coragem e devoção aos objetivos. A vergonha para os antigos gregos não era a nudez, mas o corpo nu sem cuidados que denotava uma pessoa sem educação e sem cultura.

O cuidado físico demonstrava o padrão social do indivíduo e era considerado uma dádiva divina. Os deuses, criadores do mundo e dos jogos, se compraziam com o corpo nu bem cuidado, segundo a concepção daquela sociedade. Os vencedores dos jogos recebiam a coroa de louro como equiparação aos deuses que cultuavam. O corpo belo, em forma, era admirável e representava virtude e bravura. Demostrava o trabalho dos atletas para alcançá-lo. O louro da vitória era um reconhecimento pelo árduo trabalho no “gymnásion” até o alcance do que se considerava perfeição.

A liberdade corporal com a nudez era a expressão da liberdade que os cidadãos gregos tinham; tratava-se de valores que os distinguiam de outras culturas e contribuía para a racionalização da qual emergiu a democracia, pela qual hoje teimamos em resistir para sua realização substancial.

Sobre o comportamento de passistas nuas no Carnaval, uma psicóloga, numa entrevista, disse que se tratava de uma prática libertadora e que todo mundo deveria experimentar alguma vez na vida. A consideração de que a nudez no Carnaval ou em praia, e apenas nessas circunstâncias, se traduz em prática libertadora reflete o moralismo, a naturalização do tabu da indumentária e sério problema com o conceito de liberdade.

O processo de naturalização consiste em nos acostumarmos com criações sociais e as tratarmos como se decorressem da natureza. Andar vestido não é natural, pois na natureza não se usa roupa. Andar vestido é cultural e necessário socialmente, ainda que sob calor de 40 graus. O uso de terno no verão carioca é antinatural e lesivo à saúde, mas demandado em certos meios sociais. Vesti-lo não há de ser considerado opressão. Mas conduta social adequada a meio específico.

Outras práticas sociais não decorrem da natureza, mas da milenar construção da convivência humana. Na natureza não existe direito, nem liberdade. Tudo na natureza é instinto e poder do mais forte. Liberdade é a ausência exterior de limitação e também o direito de fazer e buscar tudo que a outrem não prejudique.

A troca de roupa num saguão de aeroporto, o desfile das passistas nuas, o topless ou nudismo nas praias não haveriam de incomodar quem não o está fazendo, nem ser considerados práticas libertadoras. Tratam-se de condutas compatíveis com o que é natural e adequadas, numa sociedade orientada pela liberdade individual, por não causarem danos a quem quer que seja.


Publicado originariamente no jornal O DIA em 25/02/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/02/6581936-joao-batista-damasceno-agentes-publicos-liberdades-publicas-e-nudez.html


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Lehman Brothers, fraudes e inconsistências contábeis

 


Um dono de padaria arranjou um jeito que lhe parecia simples de pagar menos impostos. Selecionou determinadas mercadorias que seriam escrituradas contabilmente, e sobre as quais pagaria imposto, e outras que não constariam da contabilidade. O esquema funcionou maravilhosamente durante anos. Passou ileso em todas as fiscalizações a que fora submetido. Os fiscais analisavam as escritas nos livros de entradas e saídas - de acordo com a escrita contábil -, conferiam as notas fiscais arquivadas com as escriturações, calculavam o imposto sobre a diferença e analisavam as guias de pagamento de imposto. Tudo em ordem.

O problema é que um dia uma fiscal notou que não havia entrada nem saída de açúcar, na padaria, de acordo com a escrituração contábil. Alguma coisa estava errada. A padaria vendia pão doce, café e açúcar. Mas nas escritas contábeis jamais fora anotado um único quilo da mercadoria. Numa visita ao estabelecimento a fiscal encontrou duas realidades: uma impecavelmente escriturada e outra paralela.
Muitos dos produtos comerciados não constavam da contabilidade, dentre os quais o açúcar. Era o caixa dois do dono da padaria. Coitado! Foi descoberto e rigorosamente autuado. O caso é real e já tem mais de 30 anos.

Inconsistência contábil é um nome pomposo que se dá a fraudes. Em se tratando de empresas de capital aberto, com ações ofertadas ao público, a inconsistência proposital é fraude à Economia popular. Mesmo quem nunca tenha comprado uma ação pode estar sendo lesado pela fraude. Um fundo de pensão que invista em ação de uma empresa fraudulenta pode estar impedindo seus beneficiários do direito à aposentadoria. Uma cooperativa de saúde que faça o mesmo pode levar inúmeras pessoas à perda do direito à vida. O problema está no modelo neoliberal que tenta afastar da atividade financeira a regulação estatal, possibilitando que alguns poucos bilionários possam causar crises capazes de arruinar a vida de milhões de pessoas e a própria Economia de todo um país.

O ex-ministro da Fazenda Delfim Neto, em entrevista ao programa Roda Viva, em 2019, falou sobre o que se repete no mundo financeiro: “As pessoas devem ler o Relatório Pécora, feito pelo Congresso norte-americano sobre a crise de 1929. Vão ver que os banqueiros cometeram todos os crimes do mundo. E vão ver o seguinte: que banqueiro solto volta para o local do crime”.

A crise que se abateu sobre os EUA e sobre o mundo em 2008 decorreu de mais uma fantasia contábil. Os bancos financiavam aquisições de imóveis para pessoas que jamais poderiam pagar as prestações. Quando as pessoas atrasavam o pagamento elas pediam empréstimo dando como garantia o direito de aquisição dos imóveis que jamais seriam seus. Num dado momento a bolha estourou.

A crise financeira, iniciada em 2007, foi causada pela perda de valor de ativos imobiliários, provocou uma reação em cadeia, carregou a Europa, se alastrou pelo mundo e provocou uma recessão global no ano de 2009. Levou à nacionalização de bancos, derrubou governos e gerou taxas de desemprego altíssimas. Num primeiro momento o governo dos EUA salvou duas corretoras da falência, gastando US$ 100 bilhões. Mas o problema era mais profundo. A alegria durou pouco. Uma semana depois, o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos EUA, quebrou. Todo o sistema foi colocado em discussão, inclusive as agências de certificação que atribuem notas para as empresas e levam o público a investimentos nelas.

Na crise dos EUA uma figura acabou se notabilizando. Foi um investidor chamado Bernie Madoff, que virou filme. Madoff era um administrador de fortunas e por igual processo de escrituração fraudulenta convencia os investidores de que estavam tendo ganhos, quando na verdade o dinheiro dos novos depósitos é que pagavam os rendimentos dos depósitos antigos. Com a falência do Lehman Brothers o público começou a fazer saques e novos investimentos não eram feitos. Daí é que a pirâmide ruiu. Milhões de trabalhadores no mundo perderam suas economias e seus meios de subsistência na velhice.

O tema é complexo, suscita paixões e mexe com grandes interesses. O professor Delfim Neto explicou onde está o problema em entrevista ao jornal GGN, de novo relembrando o Relatório Pécora: “A resposta é que, nos anos 1990 do século passado, o sistema financeiro começou a libertar¬-se da regulação imposta nos anos 1930, alegando que ela prejudicava o desenvolvimento econômico. Com apoio no Congresso e suporte ‘científico’ inventado ‘ad hoc’ por uma tribo de economistas, cujos membros enganam-se e divertem¬-se mutuamente”.

Em momento no qual se discute a autonomia do Banco Central, deferida após o Golpe de 2016, talvez valha a pena incluir na discussão o sistema financeiro, tomando como referência as apurações feitas pelo Congresso estadunidense após a crise de 1929.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, 11/02/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/02/6573026-joao-batista-damasceno-lehman-brothers-fraudes-e-inconsistencias-contabeis.html