Um dono de
padaria arranjou um jeito que lhe parecia simples de pagar menos impostos.
Selecionou determinadas mercadorias que seriam escrituradas contabilmente, e
sobre as quais pagaria imposto, e outras que não constariam da contabilidade. O
esquema funcionou maravilhosamente durante anos. Passou ileso em todas as
fiscalizações a que fora submetido. Os fiscais analisavam as escritas nos
livros de entradas e saídas - de acordo com a escrita contábil -, conferiam as
notas fiscais arquivadas com as escriturações, calculavam o imposto sobre a
diferença e analisavam as guias de pagamento de imposto. Tudo em ordem.
O problema é
que um dia uma fiscal notou que não havia entrada nem saída de açúcar, na
padaria, de acordo com a escrituração contábil. Alguma coisa estava errada. A
padaria vendia pão doce, café e açúcar. Mas nas escritas contábeis jamais fora
anotado um único quilo da mercadoria. Numa visita ao estabelecimento a fiscal
encontrou duas realidades: uma impecavelmente escriturada e outra paralela.
Muitos dos produtos comerciados não constavam da contabilidade, dentre os quais
o açúcar. Era o caixa dois do dono da padaria. Coitado! Foi descoberto e
rigorosamente autuado. O caso é real e já tem mais de 30 anos.
Inconsistência
contábil é um nome pomposo que se dá a fraudes. Em se tratando de empresas de
capital aberto, com ações ofertadas ao público, a inconsistência proposital é
fraude à Economia popular. Mesmo quem nunca tenha comprado uma ação pode estar
sendo lesado pela fraude. Um fundo de pensão que invista em ação de uma empresa
fraudulenta pode estar impedindo seus beneficiários do direito à aposentadoria.
Uma cooperativa de saúde que faça o mesmo pode levar inúmeras pessoas à perda
do direito à vida. O problema está no modelo neoliberal que tenta afastar da
atividade financeira a regulação estatal, possibilitando que alguns poucos
bilionários possam causar crises capazes de arruinar a vida de milhões de
pessoas e a própria Economia de todo um país.
O ex-ministro
da Fazenda Delfim Neto, em entrevista ao programa Roda Viva, em 2019, falou
sobre o que se repete no mundo financeiro: “As pessoas devem ler o Relatório
Pécora, feito pelo Congresso norte-americano sobre a crise de 1929. Vão ver que
os banqueiros cometeram todos os crimes do mundo. E vão ver o seguinte: que
banqueiro solto volta para o local do crime”.
A crise que se
abateu sobre os EUA e sobre o mundo em 2008 decorreu de mais uma fantasia
contábil. Os bancos financiavam aquisições de imóveis para pessoas que jamais
poderiam pagar as prestações. Quando as pessoas atrasavam o pagamento elas
pediam empréstimo dando como garantia o direito de aquisição dos imóveis que
jamais seriam seus. Num dado momento a bolha estourou.
A crise
financeira, iniciada em 2007, foi causada pela perda de valor de ativos
imobiliários, provocou uma reação em cadeia, carregou a Europa, se alastrou
pelo mundo e provocou uma recessão global no ano de 2009. Levou à
nacionalização de bancos, derrubou governos e gerou taxas de desemprego
altíssimas. Num primeiro momento o governo dos EUA salvou duas corretoras da
falência, gastando US$ 100 bilhões. Mas o problema era mais profundo. A alegria
durou pouco. Uma semana depois, o Lehman Brothers, o quarto maior banco de
investimentos dos EUA, quebrou. Todo o sistema foi colocado em discussão,
inclusive as agências de certificação que atribuem notas para as empresas e
levam o público a investimentos nelas.
Na crise dos
EUA uma figura acabou se notabilizando. Foi um investidor chamado Bernie
Madoff, que virou filme. Madoff era um administrador de fortunas e por igual
processo de escrituração fraudulenta convencia os investidores de que estavam
tendo ganhos, quando na verdade o dinheiro dos novos depósitos é que pagavam os
rendimentos dos depósitos antigos. Com a falência do Lehman Brothers o público
começou a fazer saques e novos investimentos não eram feitos. Daí é que a
pirâmide ruiu. Milhões de trabalhadores no mundo perderam suas economias e seus
meios de subsistência na velhice.
O tema é
complexo, suscita paixões e mexe com grandes interesses. O professor Delfim
Neto explicou onde está o problema em entrevista ao jornal GGN, de novo
relembrando o Relatório Pécora: “A resposta é que, nos anos 1990 do século
passado, o sistema financeiro começou a libertar¬-se da regulação imposta nos
anos 1930, alegando que ela prejudicava o desenvolvimento econômico. Com apoio
no Congresso e suporte ‘científico’ inventado ‘ad hoc’ por uma tribo de
economistas, cujos membros enganam-se e divertem¬-se mutuamente”.
Em momento no
qual se discute a autonomia do Banco Central, deferida após o Golpe de 2016,
talvez valha a pena incluir na discussão o sistema financeiro, tomando como
referência as apurações feitas pelo Congresso estadunidense após a crise de
1929.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, 11/02/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/02/6573026-joao-batista-damasceno-lehman-brothers-fraudes-e-inconsistencias-contabeis.html
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