Tendo saído do
mundo da natureza vivemos no mundo da cultura. Muito do que fazemos não é
natural, mas cultural. Alimentar-se ou hidratar-se é um ato biológico e
determinado pela natureza. Como ou com o que se alimentar ou se hidratar é
determinado pela cultura. Enquanto nós, os brasileiros, não nos alimentamos com
insetos ou morcegos outros povos não se alimentam com camarão ou carne de
porco. Uma amiga sul-coreana me falou sobre carne de cachorro, hábito
alimentar em seu país. Achei estranho. Mas um amigo comum, árabe, que nos
ouvia, interveio e me perguntou sobre nosso hábito de comer carne de
porco, para ele, hábito alimentar tão estranho quanto os insetos, morcegos
ou cachorros
Cultura é um
conceito amplo que representa o conjunto de valores, tradições, crenças e
costumes de determinado grupo social. A cultura embora dinâmica
é recepcionada, vivida e transmitida por meio da comunicação ou imitação
de uma geração para outra, sucessivamente. A cultura é um aprendizado
social, vivenciado na família, na escola e nos demais grupos sociais nos quais
o indivíduo se integre. Cultura é o patrimônio social de um grupo,
traduzindo-se nos padrões dos comportamentos humanos e envolve
conhecimentos, experiências, atitudes, valores, crenças, religião, língua,
hierarquia, relações espaciais, noção de tempo, conceitos de universo e
muitos outros que caracterizam e identificam um determinado grupamento.
A cultura na
sociologia representa o conjunto de saberes e tradições de um povo. Estes
são produzidos pela interação social entre os indivíduos de uma comunidade ou
sociedade. Em sessenta momentos diferentes a Constituição da República se
refere a cultura ou valores culturais. No artigo 5º dispõe sobre direitos e
garantias fundamentais e expressa que qualquer cidadão é parte legítima
para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
patrimônio público ao patrimônio histórico e cultural.
A mesma
Constituição dispõe que é competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos municípios a proteção às obras e outros bens de
valor histórico, artístico e cultural, assim como impõe o dever
de proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à
tecnologia, à pesquisa e à inovação. O poder de legislar sobre matéria cultural
igualmente é definido concorrentemente a todos os entes federativos.
No título que
trata da ordem social a Constituição reservou seção própria para tratar da
cultura e dispõe que o Estado garantirá a todos o pleno exercício
dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, bem como
impõe o apoio, incentivo, valorização e difusão das manifestações
culturais. Dispõe
ainda a Constituição que o estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional.
A cultura
pressupõe a passagem do estado de natureza para um estado civilizatório. A
negação do conhecimento acumulado ao longo da história é a negação da
cultura. É uma incompreensão do progresso da humanidade e exaltação da
primariedade da vida. Há os que se orgulham da estupidez e os que revestem a
incultura com a verborragia empolada.
Viver em
sociedade implica estar integrado aos seus valores. As instituições foram
criadas e são mantidas para dar referência para os
comportamentos presentes e reduzir as incertezas do futuro. Como seres
sociais somos capazes de dar significado ao que originariamente não o
tinha. Os sociólogos designam este processo de reisificação ou coisificação.
‘Res’ é coisa em latim e é de onde provém as palavras república, que
significa coisa pública, e reivindicar, que significa requerer uma coisa.
No livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, há um diálogo entre o
Pequeno Príncipe e uma raposa. Quando o menino vai partir a raposa lhe diz que
para ela, até então, o trigal era coisa indiferente, pois raposas não
comem trigo. Mas que a partir daquela data quando visse o vento no trigal
se lembraria dos cabelos dele e que imaginaria que estivesse por perto. O
trigal que antes era indiferente para a raposa ganhou um significado. Os
símbolos diversos com os quais convivemos cotidianamente, e que dão
sentido aos nossos comportamentos, igualmente foram
construídos socialmente, seja a indumentária, os artigos religiosos ou
práticas sociais diversas.
Conhecimento é cultura. Mas a falta de conhecimento formal não é ausência de cultura. Ao contrário. O conhecimento é apenas um dos elementos culturais de um grupo social. Afinal, todos conhecemos pouco e ignoramos muito. O conhecimento é limitado a apenas ao que foi objeto de nossa compreensão. Mas vivemos um momento no qual, sobretudo em razão das redes sociais, as opiniões estão sendo sobrepostas ao conhecimento. Assim, difundem-se as fake news, publicizam-se as opiniões despidas de fundamento e enaltece-se a estultice. Mas a sociedade caminha para frente e ocasionalmente corrige seus erros e excessos. A democracia é parte da cultura de um povo e nós a estamos construindo. Falta muito. Mas já demos significativos passos.
publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/07/2023, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/07/6662834-joao-batista-damasceno-cultura-conhecimento-e-fake-news.html
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