A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) convidou
notáveis juristas nacionais para debate sobre a investigação defensiva. O
evento será realizado pelo Forum Permanente de Sociologia Jurídica da EMERJ e
ocorrerá no próximo dia 20, com transmissão pela internet. O ponto de partida
para a análise serão as ocorrências na Operação Lava Jato, notabilizada pela
atuação dos agentes do Sistema de Justiça à margem da lei a pretexto de exigir
de outros o cumprimento dela.
Na investigação acusatória regularmente processada, um delegado apura,
sigilosamente, um fato criminoso, certificando-se de sua efetiva ocorrência e
lista os possíveis autores da ilegalidade. Finda a apuração o delegado de
polícia remete um relatório ao Ministério Público, que formula uma acusação
perante a Justiça. Mas as pessoas que gerem este processamento não são deuses,
nem demônios. São seres humanos capazes dos mesmos erros, se o sistema não
estiver adequadamente sujeito a controle e responsabilização.
No nosso sistema, nem o promotor nem o juiz analisam os fatos. O que se
analisam são as reconstituições históricas do evento. O fato é evento na
realidade natural, que ocorre e se esvai. O que pode restar são registros e
possibilidades de reconstituições. Daí que a fidedignidade destas
reconstituições precisa ser honestamente observada para evitar que o processo
se desenvolva de forma fantasiosa.
Em data recente, um diligente juiz fluminense anulou interceptações
telefônicas, porque advogados dos acusados descobriram que os números dos
telefones de onde teriam partido as conversas imputadas aos seus clientes não
pertenciam a eles. Nos autos do processo, havia a transcrição das supostas
conversas. O juiz mandou oficiar à companhia telefônica e descobriu que os
números sequer estavam habilitados pela empresa de telefonia; os números
inexistiam. Alguém, em sede policial, inventou as conversas, as transcreveu e
as atribuiu a um número telefônico. O fato já havia ocorrido no 'Caso
Amarildo', quando foi detectado que as transcrições não correspondiam ao que
estava gravado. Numa operação policial chamada de 'Olho de Boi', igualmente foi
aventada a possibilidade de que gravações tivessem sido editadas, o que
implicou sério conflito institucional quando descoberto o problema. A perita da
Polícia Civil que detectou a falha hoje atua na Defensoria Pública, propiciando
melhor exercício do direito de defesa.
Se o relatório final do inquérito relata uma fantasia e esconde a
verdade, o Ministério Público não tem outra forma de atuação senão com base no
que conste em tal relatório. Se a acusação feita perante a Justiça igualmente
não retrata a realidade, o juiz pronunciará uma sentença sobre o que lhe foi
relatado e supostamente provado. Em ambas as situações, as atuações dos agentes
do Estado estarão fundadas em fantasia e não na realidade.
Um caso emblemático vitimou o reitor da Universidade Federal de Santa
Catarina, Luiz Carlos Cancellier, o CAU. No auge das ilegalidades operadas
pelos agentes da Operação Lava Jato, em 14 de setembro de 2017, o reitor e
outros professores foram conduzidos coercitivamente pela Polícia Federal (PF),
preso e posteriormente impedido de se aproximar da Universidade pela qual
dedicava sua vida. Ao reitor Cancellier foram formuladas absurdas ilicitudes
hipotéticas, sem base na realidade. Ele foi vítima de medidas violentas,
injustas e desnecessárias, dentre as quais ilegal condução coercitiva, prisão
temporária e afastamento cautelar do cargo.
Na época da operação, não havia qualquer acusação formal contra o
reitor. Tratava-se de apuração de possíveis fatos que sequer teriam ocorrido em
sua gestão. As decisões foram desnecessárias e arbitrárias. Tudo ocorreu no
contexto do lavajatismo, quando certas autoridades disputavam quem acenderia
maior fogueira para queimar quem consideravam hereges. O professor Cancellier
foi tratado de maneira abusiva, jogado numa cela da penitenciária e impedido de
exercer a função pública, sua razão de viver. Não havia evidência de qualquer
ilícito por ele cometido e não houve contraditório. Mesmo que se estivesse
diante de eventuais anomalias institucionais que demandassem atuação do Sistema
de Justiça, a dignidade da pessoa humana não poderia ser ignorada. Nem se
poderia afastar o princípio da inocência até o trânsito em julgado. Diligências
ou providências necessárias durante investigações ou processos judiciais
precisam ser as menos gravosas aos que ainda não tenham sido condenados
definitivamente. Impedido de sequer se aproximar do campus da Universidade, o
reitor suicidou-se.
As imputações fantasiosas e as conduções coercitivas de pessoas que não
tinham sido previamente intimadas ou que tivessem se recusado a comparecer
foram parte das abusividades praticadas na Operação Lava Jato. O próprio
presidente Lula foi vitimado por uma ilegal condução coercitiva, por grupo que
tinha projeto de poder político à margem dos princípios que orientam o Estado
de Direito e a democracia. Nesta semana, o ministro Dias Toffoli proferiu
fundamentada decisão na qual analisa muitas das ilegalidades havidas naquele
período, bem como possibilita a responsabilização dos agentes públicos que
atuaram à margem da legalidade.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/09/2023. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/09/6704587-a-lei-e-para-todos.html
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