Depois de amanhã comemoraremos 524 anos do desembarque de
Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, na Bahia. Mas as glórias da
navegação, no país lusitano, ficaram para Vasco da Gama, que, em 1497,
contornara o Cabo da Boa Esperança abrindo o caminho para os demais
navegantes.
Os nomes dados por Vasco da Gama a duas regiões da atual África do
Sul permanecem até hoje: Cabo e Natal. Portugal não colonizou aquela
região, mas a mantinha como ponto de passagem e abastecimento. Os
tronos português e espanhol foram reunidos sob a mesma Coroa de 1580 a
1640, período chamado de União Ibérica, e em 1630 os holandeses ocuparam o
nordeste do Brasil. Com a restauração do Trono Português, em
1640, iniciou-se a expulsão dos holandeses, concluída em 1654. A região sul
da África que era disputada por portugueses, ingleses e holandeses
fora ocupada por estes, dois anos antes.
Os holandeses, em 1652, fundaram a Cidade do Cabo e lá se
estabeleceram, levando a fé protestante e renovada dos calvinistas,
admitindo a presença também de protestantes franceses. A mão de obra era
obtida escravizando os "cafres", africanos não islamizados. A
palavra pejorativa "cafre" vem do árabe "kafir" e
significava "infiel", na concepção dos mulçumanos. Camões, que
aclamou o contorno do Cabo da Boa Esperança, a emprega em seus versos. Em
decorrência da Guerra dos Cafres os colonizadores holandeses passaram a
escravizar e trazer pessoas da Indonésia, Madagascar e Índia.
Com o advento da Revolução Francesa de 1789 e das guerras
napoleônicas, em 1795 os ingleses invadiram e conquistaram a Cidade do
Cabo, levando a fé anglicana. Os ingleses, em 1835, aboliram a
escravatura. Em 1837, os colonos de origem holandesa, chamados de bóeres
ou africânderes, migraram para o interior da África e fundaram os Estados
autônomos de Orange e Transvaal, mantendo a escravidão. Em 1852, os
ingleses anexaram a Colônia de Natal à Colônia do Cabo, convivendo com aqueles Estados
autônomos. Mas a descoberta de diamantes e ouro naqueles Estados aguçou a
cobiça dos ingleses, que avançaram sobre a região.
Foram duas as guerras dos bóeres. Na primeira, foram vencedores. Mas
na outra, de 1889 a 1902, os ingleses consolidaram a dominação e em
1910 criaram a União Sul-Africana. Sua Constituição de 1910 já impedia
o direito de voto aos não-brancos. Em 1911, foi editada lei criminalizando
o abandono do trabalho pelos povos nativos. Em 1913, foi editada uma lei
de terras reservando 7% das terras para a população negra local e 93% para
os brancos.
Em 1931, a África do Sul proclamou sua independência e, em 1948,
numa eleição na qual apenas os brancos puderam votar, o Partido
Nacionalista, tendo à frente o pastor calvinista Daniel Francis Malan,
ganhou as eleições. Sua proposta era aprofundar a separação entre a
população negra e branca, diferentemente das propostas integracionistas do
primeiro-ministro Jan Smuts, que a perdera por cinco cadeiras no
parlamento.
Formado o governo do pastor Malan, foram instituídos os
bantustões, regiões onde os negros deveriam viver. Posteriormente tais
regiões foram transformadas em territórios regionais autônomos,
dificultando a locomoção dos moradores para os bairros, cidades ou áreas
destinadas aos brancos.
O apartheid, instituído na África do Sul em 1948, que durou até 1994,
não pode ser traduzido apenas como "racismo" ou
"discriminação racial". Tratou-se de um sistema social,
econômico e político-constitucional. Era uma estrutura econômica de classe
fundada na cor e características raciais.
Tive a atenção chamada para o problema na África do Sul quando
o Arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu ganhou o Prêmio Nobel
da Paz em 1984. A existência de uma autoridade religiosa negra na África
do Sul, durante o apartheid, me deixou curioso. Mas ao buscar entender o
que por lá se passava pude constatar que a religião do arcebispo não era a
dos bóeres (descendentes dos holandeses). Ele era anglicano. Os
descendentes dos bóeres eram calvinistas. Estes atuavam para o impedimento
de acesso à terra pelos grupos tribais, exerciam controle forçado sobre a
mão de obra, promoviam genocídio e sujeição dos povos nômades e promoviam
guerra às populações Xhosa, Zulu e Sotho pela posse das terras produtivas.
Os trabalhadores negros somente podiam viver nos bantustões
ou homelands e suas locomoções fora deles somente eram autorizadas se
a economia precisasse dos seus serviços. Fora das áreas a eles destinadas
não tinham direitos políticos ou civis. A pretexto de possibilitar
o desenvolvimento separado, o governo da África do Sul passou a declarar
os bantustões como Estados independentes, desnacionalizando a
população em seu próprio país. A saída do homeland passava a demandar um passaporte
ou salvo conduto. Mestiços e orientais não tinham homeland próprio e não
tinham os privilégios da população branca.
Elon Musk nasceu em Pretoria, fundada em 1855 e que se tornou capital
do Transvaal em 1860, região dos bóeres. Descende dos
colonizadores holandeses que instituíram o apartheid na África do Sul. Em
agosto do ano passado, Elon Musk se envolveu numa guerra verbal com Julius
Malema, líder do partido Combatentes da Liberdade Econômica (EFF, na sigla
em inglês). Ele pretendia que uma música contra o Apartheid na África do
Sul, cantada em reunião do EFF, fosse proibida. O passado insiste
em permanecer presente.
Publicado
originariamente no jornal O DIA , em 18/04/2024, pag. 12.
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