domingo, 30 de junho de 2024

NOAM CHOMSKY VIVE E VIVE A INTELIGÊNCIA


 

Na terça feira (18) uma notícia se alastrou pelas redes sociais e jornais digitais comunicando a morte de Noam Chomsky. O estadunidense de 95 anos, linguista, filósofo, sociólogo, cientista cognitivo e um dos mais renomados personagens do campo da filosofia analista estava em São Paulo para tratamento médico, acompanhado de sua mulher brasileira. Em menos de uma hora as empresas de comunicação começaram a apagar as matérias. Chomsky não só estava vivo como havia recebido alta hospitalar. A velocidade da vida contemporânea, a falta de recursos das empresas de comunicação e a necessidade de publicar antes da concorrência facilita a publicação de matérias sem prévia e adequada apuração.

Chomsky é pouco conhecido da sociedade brasileira. Sua influência ocorre sobretudo nas universidades, no campo das ciências humanas, filosofia e letras. Mas neste momento em que tanto se discute sobre o modelo educacional no Brasil talvez devêssemos voltar nossa atenção para o que pensou ao longo da sua vida profissional. Não se trata de um iniciante, nem de alguém sem contribuição a dar num momento de tomada de decisão.

Noam Chomsky é Professor Emérito em Linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde atua há mais de 40 anos. Crítico do behaviorismo ou comportamentalismo, empregado nas escolas cívico-militares, seus trabalhos contribuem decisivamente para a formação da psicologia cognitiva, no domínio das ciências humanas. Antes de receber seu doutoramento em linguística pela Universidade da Pensilvânia, em 1955, ele realizou a maior parte de suas pesquisas na Universidade Harvard. Chomsky pesquisa, escreve e ensina e é indiscutivelmente o mais importante intelectual vivo da atualidade.

Jamais ouvira falar de Noam Chomsky até que em 1984 caiu-me nas mãos um exemplar da revista COMUM, editada pela Faculdade de Comunicação Hélio Alonso, FACHA, do ano de 1981. Era o número 8 de uma série que atingiria algumas dezenas, todas digitalizadas e disponíveis na internet. Um banquete para quem se interessa pelos temas da comunicação, educação e linguagem.

O editorial daquela revista tratava da crise na universidade brasileira na definição política, teórica e ideológica, depois de longo período de autoritarismo que nos fora imposto pelo regime empresarial-militar e que fragilizara as instituições acadêmicas de tal forma, que se mostravam incapazes de compreender e acompanhar o processo de transformação política do país. Já cursando a faculdade de Direito, naquele ano decidi cursar também Ciências Sociais, área na qual acabei por concluir completa formação com mestrado e doutorado.

Darcy Ribeiro dizia que “a crise na educação brasileira não é crise: é um projeto”. Darcy compartilhava com Anísio Teixeira, autor do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, e que fora jogado no poço de um elevador durante o Governo Médici, em 1971, a ideia de que é preciso educar para a vida e não apenas formar para certas finalidades. Em 1959 Darcy Ribeiro e Anisio Teixeira subscreveram outro manifesto sobre educação do qual resultou a primeira lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961, no Governo Jango. Nos 460 anos anteriores faltaram-nos preocupação real com a educação. Darcy Ribeiro, além dos CIEPs (Brizolões) com educação integral em tempo integral, criou duas universidades: A Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) que tem o seu nome.

Todos nascemos indivíduos. Tornamo-nos pessoas e pelos processos de socialização e interação, adquirimos outras qualidades, dentre as quais a de cidadãos. Educar é estabelecer as bases para a vida e a liberdade. Formar é moldar a uma forma pré-determinada para atender a interesses de terceiros. Educar é preparar a pessoa para a autorrealização. Formar é adestrar para responder a estímulo: Marcha! Alto! Direita, volver! Avança! Recue! Morra! Eis a questão a que querem subordinar os filhos da classe trabalhadora: robotização para torná-los vassalos úteis. Não se propõem escolas cívico-militares para os filhos da classe dominante.

Nesta coluna não há pertinência, nem espaço para discutir o que é o behaviorismo ou comportamentalismo, criticado por Chomsky, ou às ideias de um psicólogo chamado Skinner ou de Pavlov. Mas para exemplificar lembremos que Pavlov tocava um sino e dava comida aos seus cães. Em certo dia tocou o sino e não deu a comida. Os cães, adestrados a comer ao ouvirem o sino, salivaram tal como se estivessem diante da comida. A crítica de Noam Chomsky à psicologia behaviorista ou comportamentalista, que pretendem adotar nas escolas públicas brasileiras, decorre do fato de que seu objetivo é instituir previsão e controle sobre o comportamento das pessoas, afastando-as da introspecção e da reflexão. O método que se pretende implantar visa a conseguir um esquema unitário dos comportamentos automatizados e irrefletidos ou condicionamentos, sem distinguir a linha divisória entre o Ser Humano e um animal. Mas não somos bestas! Não somos gado! Não nos guiaremos como rebanho, pastoreados para o precipício. Chomsky vive! E vive a inteligência.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/06/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/06/6872973-joao-batista-damasceno-noam-chomsky-vive-e-vive-a-inteligencia.html


sexta-feira, 14 de junho de 2024

Sérgio Bernardes, um “arquiteto esquecido”?


O Brasil tem suas esquisitices. Não é à toa que não temos sequer um Nobel. Tal como os iconoclastas que destroem imagens religiosas e se opõem às suas venerações, sempre que nos surge um talento arranjamos jeito de lhe colocar defeitos. E não faltam os advogados do diabo. O Advogado do Diabo era uma instituição da Igreja Católica. Era aquele que argumentava contra a canonização dos candidatos, tentando descobrir quaisquer falhas em seu desfavor. Instituído em 1587 pelo Papa Sisto V, foi abolido pelo Papa João Paulo II em 1983, mas nem por isso deixa de existir. Se dependesse dos Advogados do Diabo, nem São Pedro seria santo. Afinal, foi pego na mentira.

Hoje completam vinte e dois anos da morte do arquiteto, urbanista e design Sérgio Bernardes. Dentre suas muitas obras está o Pavilhão de São Cristóvão. Depois de um incêndio que lhe destruiu o teto côncavo, abriga a Feira de Tradições Nordestinas. Sérgio Bernardes marcou o modernismo. É um dos principais nomes, mas permanece à sombra de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, igualmente monstros sagrados da arte. O Rio de Janeiro é muito ingrato com artistas que lhe quiserem melhorar a qualidade de vida. Devemos a Lota Macedo Soares a beleza do Aterro do Flamengo, mas pouco se fala dela. O arquiteto Burle Marx, juntamente com ela, semeou o gigantesco jardim à beira-mar plantado de modo a que sempre esteja florido. Quando uma espécie encerra seu ciclo floral outra já entra em cena. Há uma comunidade de coletores de sementes, que se conheceu ao longo dos anos. Ultimamente, as maritacas têm acordado mais cedo ou comido as sementes antes que amadureçam, frustrando os coletores. Burle Marx deixou seu sítio para o Estado, aberto à visitação, e seu nome nele se perpetua. Affonso Eduardo Reidy é outro dos arquitetos de quem os cariocas pouco falam. Sua mais vistosa obra é o Museu de Arte Moderna no centro do Rio. Mas há outras esplendorosas.

Eu conheci Sergio Bernardes quando ainda era estudante. Nas eleições de 1982 o regime empresarial-militar inventou o voto vinculado. O eleitor tinha que votar em candidatos de apenas um partido. Eram seis votos: vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, senador e governador. Um único voto em partido diferente o anulava. Foi uma forma que a ditadura arranjou para manter os currais eleitorais, garantir a fidelidade partidária nos grotões e inviabilizar os partidos de oposição que surgiam e não tinham como arranjar tantos candidatos quantos necessários para formar as nominatas. No Rio de Janeiro o povo queria Brizola governador depois de 15 anos de exílio, nacionalista e mais expressivo nome da oposição aos militares. Daí é que os eleitores começavam a preencher a cédula, de papel, pelo número do candidato a governador, que era 2, e depois preenchia o restante da cédula, sem sequer saber quem eram os candidatos, desde tivesse o número 2. Foi uma festa! Teve gente que apenas emprestou o nome para compor a nominata do partido, mas acabou eleita.

Em Nova Iguaçu Brizola deu um banho de urna nos adversários e graças a ele o partido igualmente elegeu o prefeito. Embora se tratasse de arquiteto internacionalmente renomado, Sérgio Bernardes deixou o confortável escritório na Avenida Sernambetiba e assumiu o cargo de Secretário de Planejamento e Coordenador-geral da Prefeitura de Nova Iguaçu e começou a apresentar seus projetos para a construção de uma cidade economicamente viável e agradável aos seus habitantes. Mas acostumados, como somos, a improvisos, temporalidades e jeitinhos seus projetos foram incompreendidos. Nas vezes que o ouvi expressou-se de forma prática, simplificando o que parecia ser complexo, mas sem pretensão de convencer o interlocutor.

Um dos seus projetos foi construir um porto interno na Baixada Fluminense. Ele propôs que não se construísse o porto de Itaguaí ou o que viria a ser o Arco Rodoviário Metropolitano no Rio de Janeiro. Ele propunha que se interligasse, por um canal, o Rio Iguaçu, que deságua na Baía de Guanabara em Duque de Caxias, ao Rio Guandu, que deságua na Baía de Sepetiba. Dizia que os portos do Rio de Janeiro e Itaguaí ficariam interligados e o canal serviria como porto interno, protegido, ao longo do qual poderiam se estabelecer indústrias e outras atividades empresariais. Durante o tempo em que falava a plateia se remexia como se aquilo fosse um projeto inexequível. Ao fim de sua palestra, ainda menino, me aproximei e perguntei a ele sobre a viabilidade de se construir um canal com tal dimensão. Ele não me falou dos canais de Suez, Corinto ou Panamá. Apenas me perguntou: “Você conhece o porto de Hamburgo?” Eu disse que não. Jamais tinha saído do país. Ele emendou: “Depois de conhecer me fale”. Na primeira vez que fui à Alemanha minha maior curiosidade era conhecer tal porto, para espanto de todos que diziam haver coisas melhores para ver. Hamburgo e seu porto estão a 110 km do mar, é o 3º maior da Europa e 15º do mundo. O projeto de Sérgio Bernardes até que era singelo. Ele era muito maior. O Brasil está perdendo a possibilidade de ser grande porque seus filhos e suas instituições estão se apequenando.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 15/06/2024, pag. 12. Lnk: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/06/6864328-joao-batista-damasceno-sergio-bernardes-um-arquiteto-esquecido.html



domingo, 2 de junho de 2024

Razões da natureza e desmedida pretensão humana

 

No século XVIII eclodiu um movimento intelectual e político na Europa marcado pela valorização da razão e pela crítica ao absolutismo monárquico, O Iluminismo. O iluminismo defendeu a valorização da razão em detrimento da fé como forma de entender o mundo e os fenômenos da natureza. Era decorrência do racionalismo, corrente filosófica que trazia como argumento a noção de que a razão é a única forma que o ser humano tem de alcançar o conhecimento.

Tais transformações no modo de pensar e agir colocaram a pessoa humana no centro das existências e estabeleceu-se a crença de que o ser humano era o senhor da natureza. O iluminismo alterou completamente a forma com a qual as pessoas entendiam as relações estabelecidas no mundo em que viviam, influindo nas crenças, formas políticas, artes e todas as demais atividades humanas. Mesmo a forma com que se faziam os jardins foi alterada por aquele movimento.

Até o renascimento os jardins eram, em regra, cultivados pelos monges que plantavam ervas medicinais, verduras e algumas flores nos monastérios. O florescer do capitalismo, enriquecido com o ouro que ia das Minas Gerais para a Inglaterra, alterou o modo de vida da burguesia e da aristocracia. As casas ganharam feições suntuosas enfeitadas com jardins extravagantes. Um dos primeiros estilos de jardins foram os desenhados com plantas divididas em canteiros em forma de figuras ou em cercas vivas. Os jardins desenhados tornaram-se elaborados e geométricos, tendo aumentado a quantidade de plantas levadas da América, da África ou da Ásia, após os “grandes descobrimentos”. Não tardou para que as plantas também fossem objeto de intervenção em suas formas e as árvores e arbustos passaram a ser podados para que tivessem expressões geométricas ou formas de animais.

Na França o exemplo clássico de plantas podadas em formas geométricas é o Jardin Des Tuileries ou Jardim das Tulherias. No início do século XX, em decorrência do primeiro aterro feito nas praias que iam do Centro até onde hoje é a Urca foi construída uma praça no estilo do jardim francês. É a Praça Paris, na Glória, no Rio de Janeiro, com seus arbustos recortados em formas geométricas ou em forma de animais. Tal estilo representava a pretensão de domínio do homem sobre a natureza.

O progresso técnico e científico deu às sucessivas gerações a pretensão de domínio sobre a natureza, desprezando os danos ao meio ambiente e as consequências que tais intervenções poderiam ter.

A catástrofe que se abateu sobre a cidade de Porto Alegre precisa ser debitada ao desleixo das políticas governamentais que não cuidaram das barragens e comportas para evitar tamanhos danos, mas está, também, relacionada com as intervenções que se fizeram na região ao longo dos últimos séculos. A cidade de Porto Alegre cresceu avançando sobre o Rio Guaíba. Do fim do século 19 até a década de 1970, a cidade se expandiu sobre o manancial, apropriando-se de parte da enseada.

Eu estive em Porto Alegre depois da revitalização da orla, onde a arquitetura do espetáculo transformou os antigos galpões do porto em polo gastronômico e de diversão, com derrubada do muro que fazia a contenção das enchentes. De aterro em aterro, a cidade cresceu, diminuindo o leito original do rio para o escoamento das águas nas grandes chuvas.

As cidades hoje são administradas tomando como referência o interesse do mercado. A urbanização do já urbanizado, comum nas cidades brasileiras, atende ao interesse do marketing político, bem como das empreiteiras, enquanto áreas na periferia demandam os mais elementares serviços de saneamento. A ausência de políticas públicas habitacionais subordina o direito de moradia à possibilidade de acesso à casa própria por meio do mercado imobiliário. Quem não dispõe de meios para aquisição de moradia, pelo mercado, improvisa a construção da própria casa própria em seus momentos de lazer, em loteamentos nem sempre regulares ou em áreas, não edificantes, não apropriadas pelo mercado imobiliário. Esta é a origem das favelas. Se tais áreas fossem edificantes a especulação imobiliária delas já teria se apropriado, tornando-as inacessíveis para os componentes do mundo do trabalho.

Em 2011 tivemos um desastre ambiental de grande proporção nas cidades serranas do Rio de Janeiro. Em 2020 idêntico fenômeno se abateu sobre o sudeste de Minas Gerais. Agora foi em Porto Alegre. É momento de solidariedade aos atingidos pela catástrofe no sul. Mas igualmente é preciso entender que tais eventos têm causas e que estas podem ser evitadas ou minoradas por adequadas políticas públicas e cuidado adequado como meio ambiente. Embora não seja hora de apontar o dedo para os culpados é preciso termos em mente quem são os responsáveis. Na mitologia grega, quando Édipo descobriu que a desgraça que se abatia sobre Tebas se devia ao fato de ter casado com a própria mãe, não se desculpou dizendo não saber do parentesco, nem disse que não era hora de buscar o culpado. Furou os próprios olhos e partiu da cidade.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/06/2024, pag. 12.