sábado, 6 de abril de 2024

Garantias da magistratura, direito da cidadania

 

As garantias conferidas aos juízes para o exercício de suas funções com independência são tratadas, por vezes, pelo senso comum ou até mesmo pela mídia, como privilégios de uma categoria profissional. Dispõe a Constituição que os magistrados gozam das garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e da irredutibilidade de suas remunerações. A crise institucional que se abateu sobre o país em tempos recentes levou ao questionamento do que deveria ser um consenso da sociedade para que os juízes pudessem lhes assegurar os direitos livres de pressões externas ou internas.

Não fossem os juízes inamovíveis, diante de uma causa que envolvesse o interesse de grupo econômico em detrimento dos consumidores, bastaria remover o juiz e designar outro que atendesse aos interesses do poder econômico. As causas são distribuídas aos juízes por meio de sorteio. Assim, ninguém escolhe o juiz da sua causa.

Na Primeira República, período nefasto da história do Brasil encerrado com a Revolução de 1930, quando tais garantias não existiam, não raro as remunerações dos juízes eram cortadas, tornando-os reticentes diante do poder decorrente do coronelismo, quando tinham que tomar alguma decisão cujos interesses pudessem ser afetados. O Ministro do STF Victor Nunes Leal, cassado após a edição do AI-5, escreveu um livro clássico intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, onde analisa tal questão com profundidade.

Após a Revolução de 30, foi promulgada a Constituição de 1934. Mas durou pouco. Em novembro de 1937, foi instituído o Estado Novo e uma Constituição de feição autoritária foi outorgada. Mas mesmo diante daquela Constituição de feição autoritária houve quem defendesse as garantias dos magistrados como indispensável à segurança dos direitos dos cidadãos brasileiros.

Oliveira Vianna, que atuou como consultor da Presidência da República e foi o responsável pela instituição da Justiça do Trabalho no Brasil, posteriormente nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, teve a oportunidade de emitir parecer onde afirmava a necessidade de garantias da magistratura, mesmo naquele regime totalitário. Oliveira Vianna não qualificava o Estado Novo como uma ditadura ou um regime totalitário. Ao contrário, dizia que se tratava de uma democracia autoritária, onde o Chefe da Nação interpretava e representava a Vontade Geral. Portanto, toda decisão dos órgãos e poderes do Estado, mesmo as decisões judiciais, deveria estar em conformidade com a vontade do chefe do Estado.

Mas Oliveira Vianna ressalvava o perigo que poderia ser um regime no qual os juízes se sentissem inseguros de desagradar ao ditador. E para que não fossem tomados de tal sentimento, em prejuízo da realização dos direitos da sociedade, haveriam de ser imunes a qualquer tipo de retaliação. Embora de concepção autoritária e conservadora, as ideias de Oliveira Vianna precisam ser revisitadas no presente momento, a fim de assegurar as garantias à magistratura em proveito da sociedade.

Estudando os regimes totalitários europeus dos anos 30, Oliveira Vianna afirma que em nenhum deles os magistrados estavam sujeitos à hierarquia administrativa; em nenhum estariam subordinados ou subalternos aos chefes dos Estados totalitários. Disse que a restrição ao "livre movimento dos magistrados no campo das suas atribuições" e sem independência funcional da magistratura é impossível qualquer sistema funcionar.

Na vigência dos regimes totalitários, onde os poderes estavam enfeixados nas mãos do chefe do Poder Executivo, o Presidente da República podia suspender, aposentar ou demitir quaisquer funcionários cujo comportamento não lhe parecesse adequado. O Estado num regime totalitário não é Estado de Direito, onde há de viger a vontade impessoal da lei e não a vontade pessoal dos agentes públicos. Mas, interpretando a Constituição outorgada de 1937, Oliveira Vianna dizia que a "obediência pessoal do Chefe do Governo não pode atingir os órgãos da magistratura". E concluía que mesmo a aposentadoria autorizada naquela Carta autoritária somente se poderia fazer para os funcionários administrativos "quando, pelas suas ideias e doutrinas, estivessem em desacordo com os princípios do próprio regime". "Mas não poderia fazer o mesmo em relação aos magistrados, pois que estes não podem estar obrigados, órgãos de um poder político que são, ao mesmo dever de obediência; obediência eles só devem à lei e à Constituição", disse.

O parecer emitido pelo então ministro do Tribunal de Contas da União, publicado em Ensaios Inéditos pela Editora da Unicamp, nos coloca a questão de necessidade de independência funcional dos juízes em prol da realização dos direitos e garantias da sociedade. Num Estado Democrático de Direito, tal como assegurado no art. 1º da Constituição da República, tais garantias não comportam dúvida. Menos ainda por posicionamentos doutrinários dos julgadores. Afinal, um dos princípios consagrados na Constituição é o da pluralidade, sem o que não há que se falar em democracia.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/04/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/04/6822685-garantias-da-magistratura-direito-da-cidadania.html

sábado, 23 de março de 2024

Forças Armadas e Poder Moderador: uma usurpação

 

Proclamada a independência do Brasil, em 1822, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte. O projeto de Constituição de 1823 estabelecia limitações ao poder do Imperador. D. Pedro I mobilizou tropas do Exército, cercou a Assembleia e a dissolveu. Em 25 de março de 1824, outorgou uma constituição na qual dispunha sobre os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. A "Pessoa do Imperador" recebeu a qualidade de inviolável e sagrada, não sujeito a responsabilidade alguma. Reservou-se, o Imperador, o exercício dos poderes Executivo e Poder Moderador, pelo qual podia intervir nos demais poderes.

Proclamada a República em 1889, por um golpe militar, foi elaborada a Constituição de 1891. Quando Rui Barbosa apresentou o projeto de Constituição em elaboração ao Marechal Deodoro da Fonseca, este perguntou onde estavam seus poderes para dissolver o Parlamento. Foi com muita dificuldade que Rui Barbosa tentou fazer-se entender dizendo que o regime mudara e que num regime de separação de poderes um poder não pode interferir no funcionamento do outro. Mesmo o Judiciário não concebia seus poderes para declarar uma lei inconstitucional quando contrariava a Constituição. Isto porque durante o Império a sanção da lei pelo Imperador removia a contradição que pudesse existir. Assim, no Império, uma lei contrária à Constituição, depois da sanção do Imperador, se sobrepunha a esta. No regime constitucional republicano, a Constituição se sobrepõe à lei e, se esta for incompatível com aquela, prevalece a Constituição e a lei deve ser declarada inconstitucional.

Quanto ao Poder Moderador, este deixou de existir no sistema de separação de poderes, harmônicos e independentes. A harmonia decorre do exercício limitado às suas atribuições exclusivas. São independentes, pois cada qual não precisa da autorização do outro para seu funcionamento.

Proclamada a República e instituído um regime constitucional de divisão de poderes, os conflitos políticos e jurídicos se resolvem pelo exercício das respectivas competências pelos poderes do Estado e pelo Sistema de Freios e Contrapesos. Este se caracteriza pelo equilíbrio entre os três poderes do Estado buscando a harmonia determinada constitucionalmente.

Tendo retornado aos quartéis após a ditadura empresarial-militar instituída em 1964, os militares continuaram a atuar nos bastidores e, durante a Assembleia Nacional Constituinte, tiveram grande atuação visando a resguardar poder político. O que emergiu com o golpe que destituiu a Presidenta Dilma foi a ativação do desejo de poder que se mantinha latente na caserna. Desde o golpe que proclamou a República nenhuma crise política deixou de ter a presença militar, notadamente do Exército. Por vezes, as Forças Armadas eram o ator principal das crises, tal como a crise que levou ao suicídio do Presidente Getúlio Vargas ou a tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitscheck. Mas as Forças Armadas não têm qualquer papel constitucional a ser exercido na esfera política. Seu papel institucional é outro.

Como sempre acontece, em momentos de crise, aparecem os conselheiros prometendo tirar leite de pedra. Assim não faltam os que afirmam existir papel político a ser desempenhado pelas Forças Armadas, numa interpretação enviesada do art. 142 da Constituição. Neste momento, um dos bacharéis em Direito badalados por golpistas afirma que "as Forças Armadas são um poder de estabilização da nação". Chega-se a falar de "regime constitucional das crises", que teria amparo no título V da Constituição e que trata do Estado de Defesa, Estado de Sítio, Forças Armadas e Segurança Pública. O art. 142 da Constituição, inserido em tal capítulo, quando trata da possibilidade de emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, não autoriza intervenção nos outros poderes do Estado. As Forças Armadas não exercem poder moderador. E isto decorre da redação originária da Constituição.

A redação original do art. 42 da Constituição dispunha que os militares das Forças Armadas são servidores públicos militares. Servidor público é agente da Administração. Não é exercente de poder do Estado. Não hão de ter poder político numa sociedade civil, salvo quando usando a força usurpam o poder, executando as próprias razões e rompendo com o primado da civilidade. Mesmo que a Emenda à Constituição nº 18 de 1998 tenha dado redação diversa ao art. 42, não foram as Forças Armadas convertidas em Poder Moderador. Isto porque a Constituição, ao dispor sobre emendas à Constituição, foi expressa ao dizer que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a separação dos Poderes".

Pode-se alterar a Constituição por outros fundamentos, inclusive pela força dos golpes de Estado, como ocorreu com a Emenda Constitucional nº 01 de 1969, após a edição do AI-5. Mas o nome a se atribuir à modificação é golpe, usurpação de poder ou outro fundado na força. A Constituição de 1988 não foi alterada para atribuir poder moderador às Forças Armadas. E não poderia sê-lo por expressa proibição nela contida.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/03/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/03/6814505-forcas-armadas-e-poder-moderador-uma-usurpacao.html


sábado, 9 de março de 2024

Dia Internacional da Mulher, história de luta

 

Ontem, dia 08, comemoramos o Dia Internacional da Mulher. A história da data vem sendo apropriada comercialmente e sobre ela se tem criado fantasias, suprimindo a história de luta das mulheres componentes do Mundo do Trabalho por melhores condições de vida e existência. A data é marco da luta das mulheres operárias no início século XX, cuja atuação já se acentuava anteriormente nos movimentos sindicais. Muito se fala sobre o motivo de 8 de março ter sido escolhido o Dia Internacional da Mulher, relacionando-o a um incêndio que matou 129 mulheres em uma fábrica têxtil, em Nova York, em 1911. Mas a data foi motivada pela luta operária e pelos movimentos políticos e torná-la um dia de festa é uma maneira de apagar o protagonismo das mulheres na história. O mesmo acontece com o Dia do Trabalhador, 01 de maio, que ao longo da história foi dia de protesto em razão do enforcamento de quatro operários grevistas em Chicago, em 1887. O 1º de maio se transformara em dia de protesto e greve por todo o mundo e para esvaziar as manifestações foi instituído feriado e se tem tentado transformar em dia festivo dos trabalhadores.

As versões sobre fatos ou mitos sempre privilegiam os interesses majoritários. Eduardo Galeano disse que "se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano? Eva teria esclarecido que não nasceu da costela de Adão, nem conheceu nenhuma serpente, nem ofereceu maçã a ninguém e que Deus nunca lhe dissera para parir com dor e nem que haveria de ser dominada pelo marido". Eduardo Galeano conclui seu texto dizendo que "todas essas histórias são mentiras que Adão contou para a imprensa".

Há uma tentativa de transformar o dia 8 de março apenas numa data de homenagens às mulheres, apropriada pelo comércio. Mas se trata de data com raízes históricas mais profundas.

Embora oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) apenas em 1975, o Dia Internacional da Mulher é comemorado desde o início do século XX pelas organizações de mulheres trabalhadoras. Hoje, em momento de desindustrialização e crise no mundo trabalho, a data é cada vez mais lembrada como um dia para a reivindicação de igualdade de gênero e manifestações ao redor do mundo, aproximando-a de sua origem na luta das mulheres que trabalhavam em fábricas desde o florescer da Revolução Industrial.

Na metade do século XIX, as trabalhadoras e trabalhadores demonstraram ter tomado consciência de sua posição de classe na sociedade e compreendido que toda riqueza é produzida pelo trabalho e que, portanto, quem trabalha tem direito ao resultado do que é produzido. A ideia de que somente o trabalho produz riqueza não é de nenhum daqueles que escreveram o Manifesto Comunista de 1848. Mas de Adam Smith, economista liberal, que publicou, em 1776, o livro Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecido como A Riqueza das Nações. Daí é que os trabalhadores passaram a reivindicar que a riqueza, produto do trabalho, fosse entregue a quem trabalha e não aos detentores de capital.

A luta das mulheres por igualdade de gênero desde o século XIX estava no contexto do movimento operário para exigir a distribuição da riqueza socialmente produzida e por melhores condições de trabalho, que para as mulheres eram ainda piores que as condições dos homens.

Embora o incêndio em Nova York, no dia 25 de março de 1911, na Triangle Shirtwaist Company, que matou 129 mulheres, tenha efetivamente ocorrido e trazido à tona as más condições enfrentadas por mulheres desde a Revolução Industrial, a data não rememora aquele evento. Há registros anteriores a esse episódio que trazem referências a reivindicações das mulheres para que suas causas fossem incluídas nos movimentos de luta de todos os trabalhadores. Se hoje a desigualdade de gênero ainda é acentuada, a situação da mulher era muito pior que a dos homens nas relações de trabalho no século XIX e início do século XX. Uma grande passeata realizada por mulheres socialistas em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York, reivindicava melhores condições de trabalho para as mulheres. Em 1910, a alemã Clara Zetkin propusera, em reunião da Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, a criação de um dia internacional de manifestações das mulheres operárias por igualdade de direitos. O primeiro dia oficial da mulher foi celebrado em 19 de março de 1911. Em 1913, as mulheres operárias nos EUA protestavam pela igualdade de direitos trabalhistas, mas também pelo direito de votar. Na Rússia, em 1917, milhares de mulheres foram às ruas contra a fome e a guerra. Foi a greve das mulheres operárias russas o pontapé inicial para a Revolução de 1917, que deu origem ao Dia Internacional da Mulher.

No início do século XX, na Europa, crescia cada vez mais o movimento das mulheres nas fábricas. Mas o 8 de março prevaleceu graças à onda de protestos das mulheres russas. Após a revolução bolchevique, a data foi oficializada entre os soviéticos como celebração da "mulher heroica e trabalhadora" e foi difundida pelo mundo. 8 de março é o marco da luta pela igualdade de gênero. Não é data de festa, mas de luta de quem compõe o mundo do trabalho.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/03/24, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/03/6806486-dia-internacional-da-mulher-historia-de-luta.html

 


sábado, 24 de fevereiro de 2024

A fuga do presídio de segurança máxima

 

Ao longo da história, quando os sistemas têm as suas bases abaladas e se tornam insustentáveis com os valores que os legitimam, o apelo à violência para a manutenção do status quo é prática comum. Mas uma ordem somente pode ser mantida com justiça. Sem justiça somente se pode tentar manter a ordem com violência. A manutenção de uma ordem iníqua com violência dura pouco; cedo ou tarde desaba.

Na África do Sul, país ocupado e colonizado por ingleses e holandeses, quanto mais o apartheid se mostrava insustentável maior era violência do Estado contra a população nativa e negra. O apartheid foi sustentado por meio da violência, com as forças policiais sul-africanas constantemente promovendo massacres. A resistência da população sul-africana foi intensa e aconteceu por meio de grupos como o Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, que esteve preso por 27 anos.

No Haiti, governado por décadas por François Duvalier, "Papa Doc", e posteriormente por seu filho Jean-Claude Duvalier, "Baby Doc", o poder somente se pode exercer por meio da violência da Milícia de Voluntários da Segurança Nacional, conhecidos como Tonton Macoutes, que significa na língua crioula haitiana "Tio do Saco".

Os Tontons Macoutes foram responsáveis por centenas de milhares de torturas, assassinatos e desaparecimentos de pessoas. Tonton Macoute ou "Tio do Saco" era expressa referência ao "homem do saco" ou "bicho-papão", personagem imaginário capaz de promover desaparecimento ou eliminação de pessoas.

O Brasil vive o dilema de tentar resolver a crise que assola o sistema socioeconômico por meio de medidas repressivas. Em data recente,  o presidente Lula pediu perdão a Leonel Brizola e a Darcy Ribeiro pela obstrução que seus partidários fizeram aos CIEPs nos anos 90 do século passado. Darcy Ribeiro dizia, em 1982, que, "se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios". E Brizola dizia que o Brasil somente se estabeleceria como nação para todos os seus filhos por meio de uma soberana política nacional de desenvolvimento. Os CIEPs foram boicotados, sob o fundamento de que escola não é restaurante, e ao invés de se investir em educação, o país foi entregue à especulação dos banqueiros. A conta chegou. Nada que não tivesse sido previsto.

Sem projeto nacional de desenvolvimento e sem educação integral, pública e laica, tal como preconizado por Anísio Teixeira desde 1932 em manifesto publicado naquele ano, os rumos que a história tomou nos trouxe ao caos no qual estamos inseridos. Ampliam-se as vagas nos presídios, constroem-se presídios de segurança máxima, aumentam-se as penas, prendem-se e promovem-se conduções coercitivas de jovens pretos, pobres e periféricos para delegacias, sem mandado judicial ou situação de flagrante, e nada se apresenta como solução para o problema da violência e da criminalidade. Isto porque a solução não está no aparato repressivo.

A existência dos presídios de segurança máxima de onde teriam fugido dois presos em Mossoró surgiu nos EUA, nos anos 80, e é a expressão da falência do sistema prisional. Não bastasse o sistema prisional que coloca o Brasil na terceira posição mundial em número absoluto de presos, bem como proporcionalmente à sua população, criamos por aqui, copiando aquele país, sua especialização: os presídios federais de segurança máxima.

O sistema prisional é o destino para os indesejáveis. Imprestáveis para produzir ou incapazes de consumir, precisam ser acomodados em local no qual não perturbem os negócios. Assim, o Estado do Bem-Estar Social, previsto na Constituição Cidadã de 1988, vai sendo substituído pelo Estado Penal. O Direito Penal inicialmente tratado como medida de contenção do poder punitivo do Estado transforma-se em meio de contenção dos indesejáveis. Neste contexto, os presídios de segurança máxima não são criados para dar solução a problemas da chamada criminalidade no seio social. Mas tão somente visam a buscar solução para os problemas existentes no interior do sistema prisional.

O Brasil registra o aprisionamento de cerca de oitocentas mil pessoas. Significativo número desses presos cumpre pena por acusação de tráfico de substâncias que a lei considera ilícitas e foram pegas sem que estivessem portando arma. Portanto, não são pessoas a quem se possa atribuir a qualidade de violentas ou perigosas. Pobres, pretos e periféricos superlotam o sistema prisional, propiciando um ambiente de violência e degradação da qualidade de pessoas humanas. Mas o sistema não reconhece que ele próprio é o problema e desconsidera o que gera ao promover o encarceramento em massa. As prisões no Brasil têm condições piores que as masmorras medievais. Não são poucos os casos de mortes no interior do sistema prisional, muitas delas por doenças nele adquiridas, dentre as quais tuberculose, além de homicídios praticados por outros presos ou por agentes do Estado. Aliás, não se pode afastar a hipótese de que muitos presos tidos como foragidos foram na verdade assassinados no interior do sistema prisional e o registro de fuga encobre o homicídio. O Caso Rubens Paiva é exemplo desta ocorrência.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/02/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/02/6798525-a-fuga-do-presidio-de-seguranca-maxima.html


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Assassinato de advogada, atentado ao Estado Democrático de Direito

Uma advogada foi assassinada juntamente com seu cliente na semana passada na cidade Santo Antônio, na região agreste do estado do Rio Grande do Norte. Minutos antes de ser morta, a advogada publicara uma foto de dentro da delegacia, momento no qual libertava seu cliente. Tratava-se de uma jovem advogada de 26 anos e a pessoa que soltara era o primeiro cliente que conseguia tirar da cadeia. Advogada e cliente foram mortos a tiros a cerca de 600 metros da delegacia de onde tinham saído.

O cliente, assassinado junto com a advogada, era investigado pela Polícia Civil. Na foto publicada pela advogada, numa imagem escurecida e mostrando apenas os pés de duas pessoas – provavelmente dela e do cliente –, escreveu: "Delegacia de Polícia Civil", "A sociedade e a sua mania de condenar um indivíduo apenas com base no 'disse me disse'".

O cliente da advogada assassinada era investigado como um dos suspeitos de um crime ocorrido dois dias antes, quando – durante uma vaquejada – duas pessoas numa motocicleta atiraram num vaqueiro e fugiram. Os autores do assassinato do vaqueiro não foram identificados, mas havia suspeita de que pudesse ser o cliente da advogada assassinada.

O homem em favor de quem atuava a advogada fora levado para a delegacia, conduzido coercitivamente sem qualquer amparo legal. Embora não houvesse flagrante ou mandado de prisão expedido por autoridade judicial competente, o investigado fora detido pela Polícia Militar em uma cidade vizinha e conduzido até a delegacia de Santo Antônio, distando cerca de 30 km de onde fora preso. Sem a indevida condução coercitiva não se teriam os dois homicídios.

Inexistindo mandado de prisão e não sendo caso de flagrante, a jovem advogada exigiu que o delegado o soltasse. E este o fez. Casos similares ocorrem pelo Brasil com certa regularidade. Os defensores das liberdades vivem as agruras de suas profissões no Brasil. Cerca de 50 advogados são assassinados por ano no Brasil. Advocacia e jornalismo são atividades de alto risco no Brasil. Tendo sido juiz por 18 anos na Baixada Fluminense tomei ciência do assassinato de muitos advogados. Embora muitas das vezes as investigações não relacionem o crime ao exercício profissional, depreendem-se, não raro, precisas vinculações.

No final dos anos 90, um advogado domiciliado em Nilópolis propusera em todas as comarcas do estado ações populares para que a Justiça compatibilizasse o número de vereadores nas Câmaras Municipais com proporcionalidade às respectivas populações. Os vereadores, em quase todos os municípios fluminenses, haviam estabelecido o número de cadeiras no máximo permitido. Ele pretendia que cada município tivesse número de vereadores, entre o mínimo e máximo permitido na Constituição, com proporcionalidade às respectivas populações. Eu julguei uma ação destas. O advogado foi assassinado.

Em Nova Iguaçu, no início do século, um grupo de jovens foi conduzido coercitivamente, sem flagrante e sem mandado, para uma delegacia. Tal como a advogada assassinada no Rio Grande do Norte, um advogado compareceu à delegacia e exigiu a libertação dos rapazes, o que foi feito. Ao chegar em casa, no bairro de Vilar dos Teles, o advogado foi assassinado.

Os algozes das liberdades não compreendem o trabalho dos profissionais do sistema de Justiça. Um jovem advogado defendeu um homem acusado de homicídio. No tribunal do júri, demonstrou a inocência do seu cliente, que foi absolvido. O irmão da vítima, inconformado com a absolvição de quem ele supunha ser o assassino, executou o advogado.

Na peça Júlio César, de Shakespeare, um dos personagens de um grupo que tramava um golpe exclamou: "A primeira coisa que faremos será matar todos os advogados". Advogados sempre foram obstáculo às tiranias e às violações aos direitos. Napoleão Bonaparte proibiu que os advogados interpretassem o seu Código Civil. Hitler classificava os advogados como pessoas desprezíveis. Durante a ditadura empresarial-militar, muitos advogados foram presos, torturados e alguns desaparecidos, tão somente porque defendiam os perseguidos do regime. Em 1980, quando da transição da ditadura para a democracia, a própria OAB/RJ foi alvo de bomba. Não raro os atentados à vida dos advogados envolvem agentes do Estado, tal como a carta-bomba endereçada ao presidente da OAB/RJ, Eduardo Seabra Fagundes, que matou sua secretária Lydia Monteiro.

No nosso modelo de democracia, fundada no Estado de Direito, com direitos e garantias individuais e fundamentais e no qual se assegura o contraditório e ampla defesa, a atividade do advogado é imprescindível. Dispõe a Constituição que o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Assim como o assassinato da Juíza Patrícia Acioli foi um atentado à Justiça, o assassinato de quem defende as liberdades se revela idêntico atentado ao devido processo legal. A proteção legal à atividade advocatícia há de ser objeto de todos os que pugnam pelas liberdades públicas. Afinal, sem advogado não há Justiça e sem Justiça não há democracia.


Publicado originariamente no dia 10/02/2024, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/02/6790529-assassinato-de-advogada-atentado-ao-estado-democratico-de-direito.html

sábado, 27 de janeiro de 2024

CPIs, lawfare e golpe de estado

 

O retorno do presidente Getúlio Vargas ao poder, mediante eleição em 1950, em contexto no qual a sociedade brasileira se agitava na campanha O PETRÓLEO É NOSSO, do qual resultou a criação da Petrobras, alvoroçou os setores entreguistas, que gestaram todo tipo de aparato jurídico para inviabilizar o mandato daquele presidente legitimamente eleito. Num Brasil recentemente iniciado na industrialização, os setores médios e urbanos da sociedade, por alfabetizados, se consideravam intelectualizados, desprezavam a cultura popular e criminalizavam os anseios sociais. Seu ícone era o Brigadeiro Eduardo Gomes, que fez campanha com o slogan "vote no brigadeiro, que é bonito e é solteiro" e que dissera – na campanha presidencial – não querer votos de marmiteiros. Tais grupos sociais, agrupados sobretudo na UDN, pela qual concorreu o brigadeiro e foi derrotado em 1945 e 1950, eram incapazes de chegar ao poder pelo voto. Daí que desde o retorno de Getúlio Vargas ao poder tentavam golpe. Duas leis editadas neste período prenunciavam a crise que levou aquele presidente ao suicídio em 1954: a lei dos crimes de responsabilidade, 1079 de 1950, e a lei das CPI’s, 1579 de 1952. Estas leis foram editadas visando ao constrangimento e ao impeachment do presidente Getúlio Vargas.

Mesmo tendo montando um aparato legal para perseguir os adversários políticos e violentar a democracia, os setores entreguistas - dentre os quais estavam todos os membros da Sociedade dos Amigos da América (EUA) fundada pelo general Manuel Rabelo - nem sempre o utilizavam para seus objetivos; por vezes recorriam às tentativas de golpe militar. Várias foram tais tentativas até que se consumou o golpe empresarial-militar em 1964, que subordinou os interesses nacionais aos interesses dos EUA, no contexto
da Guerra Fria. Além da tentativa de golpe que levou Vargas ao suicídio em 1954, houve tentativa de impedimento da posse de Juscelino Kubitscheck, tentativas de golpe durante seu mandato, impedimento da posse de João Goulart quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, além de outras tentativas de menor relevo.

O desrespeito ao Estado de Direito e às instituições, no Brasil, manifesta-se por meio de golpes brutais ou por meio de acusações infundadas desvirtuando o funcionamento do sistema de Justiça. O que hoje designamos como lawfare, uso do aparato judicial como instrumento de guerra a pessoa declarada inimiga, sempre contou com as leis editadas para promover o impedimento do presidente Getúlio Vargas. Se o seu suicídio em 1954 adiou o golpe em 10 anos, tal aparato legal foi mantido em vigência para acossar os governos que acenassem com alguma medida em prol dos setores populares ou se manifestassem em prol da soberania nacional. Neste momento, tais leis são utilizadas como ameaças aos agentes públicos comprometidos com a democracia e com o Estado de Direito, dentre os quais ministros do STF, bem como o padre que se solidariza com a dor da população de rua em São Paulo.

As CPIs, instrumentos investigatórios do Poder Legislativo, se traduzem em meio legítimo de controle da atividade do poder público e daqueles que com ele estabeleçam relação recebendo valores oriundos dos cofres públicos. Mas o requerimento de instalação de uma CPI em São Paulo demonstrou que nem sempre os objetivos são republicanos. Um vereador que colhia as assinaturas para a CPI da população de rua declarou em relação ao Padre Júlio Lancelotti: "Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que seja algemado". Não se tratava de instaurar investigação para desvelar a situação da população de rua ou uso de recursos públicos em seu benefício. Mas meio abusivo de causar constrangimento a pessoa que não
exerce função pública e que não recebe dinheiro público para suas atividades.

Uma CPI não pode ser instaurada para apurar ocorrências privadas. Em se tratando de mecanismo de controle dos atos do poder público, pelo Poder Legislativo, somente pode ser instaurada visando à atuação dos agentes públicos e seus órgãos, de particulares a quem o poder público tenha delegado atribuições ou de particulares em colaboração com o poder público que tenham recebido recursos estatais. Um sacerdote, no exercício de suas funções, não é agente público, não é concessionário, permissionário ou autorizatário de função pública e, se não recebe dinheiro público para suas atividades assistenciais, não está sujeito à fiscalização pelo poder público.

Os regimes repressivos se louvam de promover a segurança e a paz. Mas o que promovem é a paz dos cemitérios ou das cidades prestes a serem invadidas durante as guerras. Marcelo Yuka disse que "paz sem voz, não é paz; é medo". E Gilberto Gil e Chico Buarque compuseram nos anos 70, no período escancarado da ditadura empresarial-militar, a música Cálice, dizendo: "Esse silêncio todo me atordoa; atordoado eu permaneço atento na arquibancada pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa". O monstro que emergiu do lodaçal e dos porões ameaça a democracia, as instituições e os agentes públicos comprometidos com o Estado de Direito e com os valores republicanos. Até padre reconhecido por seu compromisso com os excluídos pode ser destinatário de lawfare.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/01/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/01/6782329-cpis-lawfare-e-golpe-de-estado.html


Autoritarismo patrimonialista-predatório e anarcocapitalismo

 

Nascemos indivíduos, seres singularizados, e pelo processo de socialização nos tornamos pessoas. Neste processo somos apresentados à linguagem, em suas diversas modalidades. Conhecemos as coisas com os nomes antes lhes atribuídos. O problema reside na necessidade de nominar, definir ou conceituar fenômenos novos. Aos fenômenos políticos se agregam as emoções e as expressões qualificadoras ou desqualificadoras. Eis a questão: como qualificar adequadamente o período no qual o Brasil mergulhou recentemente e que, ao lado do autoritarismo e desprezo à institucionalidade, cultuou a morte, desdenhou de um vírus letal, destruiu direitos sociais, agrediu as instituições judiciárias, ampliou a miséria e ameaçou o meio ambiente?

Um ministro do STF, numa reunião com estudantes, se referindo ao fenômeno autoritário, e não ao personagem, disse que a sociedade derrotou o bolsonarismo. O fenômeno reacionário no qual o Brasil andou mergulhado não pode ser qualificado pelo nome do personagem que foi a sua expressão. O fenômeno é maior que aquele que apenas foi colocado como marionete para expressar o que emergia das profundezas da nossa organização social e que reflete o que está acontecendo pelo mundo.

Há quem qualifique o fenômeno como fascismo. Mas tal vocábulo é pouco adequado para o que vivenciamos. Embora o fascismo tenha assumido feições diferentes nos distintos lugares onde aflorou, o que o Brasil viveu nos últimos anos não se ajusta às características daquele sistema político. O fascismo foi um modelo de organização social e política triunfante na Itália com Benito Mussolini em 1922. Caracterizava-se por uma ditadura baseada num partido único, concepção totalitária da sociedade, vedação do pluralismo político, organização da sociedade em corporações e forte viés nacionalista. O fascismo se opunha ao liberalismo e ao individualismo. Na Alemanha, o fascismo, com características próprias, foi qualificado como nazismo. Por injunções históricas ambos foram militaristas.

A direção do Estado brasileiro de 2018 a 2022 não foi compatível com as características do fascismo. Não pretendia organizar a sociedade. Ao contrário, parecia pretender a desorganização social, pois mais lucrativa aos garimpos, milícias, madeireiros e capital financeiro. Embora autoritária, não tinha uma doutrina que pudesse se impor como pensamento único. Não tinha bases organizacionais, tal como partido, associações ou sindicatos. Portanto, não era corporativista. Ainda que enrolados em bandeiras do Brasil e cantando o hino nacional não eram nacionalistas, pois na prática submetia a política brasileira à política dos EUA a ponto do presidente e seus filhos ostentarem vestes com as cores daquele país e baterem continência para a bandeira estrangeira. Diversamente do fascismo, que se opunha ao individualismo e liberalismo, e impunha uma visão única ou holística, o que vivenciamos foi a exaltação do individualismo predador das riquezas nacionais e socialmente produzidas, bem como destruidor dos direitos sociais.

Alguns elementos dos discursos fascistas e nazistas podem ser encontrados nas falas de alguns dos personagens que integraram o círculo do poder. Mas pouco tinham em comum com os objetivos daqueles regimes. Diversamente do que aqueles regimes almejaram, no Brasil tivemos apenas pretensões de destruir instituições, direitos e práticas sociais elevadas a valores constitucionais a partir de 1988. Peter Cohen, diretor do filme Arquitetura da Destruição, filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em 1938, para escapar da perseguição nazista, em seu documentário descreve os objetivos do regime que perseguiu seu pai e seu povo. Para fazer o filme, obra-prima do cinema mundial, ele estudou o nazismo durante sete anos. O documentário se inicia a partir de uma tese: o sonho nazista era criar, por meio da purificação étnica, um mundo mais harmonioso e belo. Esse desejo alemão vinha da concepção de que o mundo estava à beira do abismo e que era preciso destruir tudo o que o que fosse feio ou inadequado, inclusive pessoas. Os nazistas tomaram para si a responsabilidade por erradicar qualquer ameaça às suas pretensões. Era o discurso: "Purificada e preservada da decadência, uma nova Alemanha surgiria mais forte e muito mais bonita". O filme começa com uma frase: "O nazismo tinha o objetivo de embelezar o mundo!". Peter Cohen choca com suas primeiras declarações na abertura do filme, mas depois as explica. Ele começa falando sobre o objetivo dos nazistas e conclui demonstrando o quanto era intolerante e destrutivo com tudo e com todos que não se moldassem ao ideal daquele regime totalitário, razão pela qual se tornavam destinatários da eliminação, fosse arte, livros ou pessoas.

No Brasil não tivemos isto. Não podemos classificar como fascismo o que vivenciamos. Embora uma força destruidora tenha se apossado de algumas instituições, capaz de exterminar, aniquilar e destruir, não tinham os mesmos objetivos dos fascistas. O que emergiu das profundezas obscuras da sociedade brasileira foi o autoritarismo patrimonialista-predatório. Foi o anarcocapitalismo, desgarrado de qualquer regulamentação estatal, somente capaz de ampliar a riqueza de poucos e levar a maioria à miséria.