No século XVIII eclodiu um
movimento intelectual e político na Europa marcado pela valorização da razão e
pela crítica ao absolutismo monárquico, O Iluminismo. O iluminismo defendeu a
valorização da razão em detrimento da fé como forma de entender o mundo e os
fenômenos da natureza. Era decorrência do racionalismo, corrente filosófica que
trazia como argumento a noção de que a razão é a única forma que o ser humano
tem de alcançar o conhecimento.
Tais transformações no modo de
pensar e agir colocaram a pessoa humana no centro das existências e
estabeleceu-se a crença de que o ser humano era o senhor da natureza. O
iluminismo alterou completamente a forma com a qual as pessoas entendiam as
relações estabelecidas no mundo em que viviam, influindo nas crenças, formas
políticas, artes e todas as demais atividades humanas. Mesmo a forma com que se
faziam os jardins foi alterada por aquele movimento.
Até o renascimento os jardins
eram, em regra, cultivados pelos monges que plantavam ervas medicinais,
verduras e algumas flores nos monastérios. O florescer do capitalismo,
enriquecido com o ouro que ia das Minas Gerais para a Inglaterra, alterou o
modo de vida da burguesia e da aristocracia. As casas ganharam feições
suntuosas enfeitadas com jardins extravagantes. Um dos primeiros estilos de
jardins foram os desenhados com plantas divididas em canteiros em forma de
figuras ou em cercas vivas. Os jardins desenhados tornaram-se elaborados e
geométricos, tendo aumentado a quantidade de plantas levadas da América, da
África ou da Ásia, após os “grandes descobrimentos”. Não tardou para que as
plantas também fossem objeto de intervenção em suas formas e as árvores e
arbustos passaram a ser podados para que tivessem expressões geométricas ou
formas de animais.
Na França o exemplo clássico de
plantas podadas em formas geométricas é o Jardin Des Tuileries ou Jardim das
Tulherias. No início do século XX, em decorrência do primeiro aterro feito nas
praias que iam do Centro até onde hoje é a Urca foi construída uma praça no
estilo do jardim francês. É a Praça Paris, na Glória, no Rio de Janeiro, com
seus arbustos recortados em formas geométricas ou em forma de animais. Tal
estilo representava a pretensão de domínio do homem sobre a natureza.
O progresso técnico e científico
deu às sucessivas gerações a pretensão de domínio sobre a natureza, desprezando
os danos ao meio ambiente e as consequências que tais intervenções poderiam
ter.
A catástrofe que se abateu sobre
a cidade de Porto Alegre precisa ser debitada ao desleixo das políticas
governamentais que não cuidaram das barragens e comportas para evitar tamanhos
danos, mas está, também, relacionada com as intervenções que se fizeram na
região ao longo dos últimos séculos. A cidade de Porto Alegre cresceu avançando
sobre o Rio Guaíba. Do fim do século 19 até a década de 1970, a cidade se
expandiu sobre o manancial, apropriando-se de parte da enseada.
Eu estive em Porto Alegre depois
da revitalização da orla, onde a arquitetura do espetáculo transformou os
antigos galpões do porto em polo gastronômico e de diversão, com derrubada do
muro que fazia a contenção das enchentes. De aterro em aterro, a cidade
cresceu, diminuindo o leito original do rio para o escoamento das águas nas
grandes chuvas.
As cidades hoje são
administradas tomando como referência o interesse do mercado. A urbanização do
já urbanizado, comum nas cidades brasileiras, atende ao interesse do marketing
político, bem como das empreiteiras, enquanto áreas na periferia demandam os
mais elementares serviços de saneamento. A ausência de políticas públicas
habitacionais subordina o direito de moradia à possibilidade de acesso à casa
própria por meio do mercado imobiliário. Quem não dispõe de meios para
aquisição de moradia, pelo mercado, improvisa a construção da própria casa
própria em seus momentos de lazer, em loteamentos nem sempre regulares ou em
áreas, não edificantes, não apropriadas pelo mercado imobiliário. Esta é a
origem das favelas. Se tais áreas fossem edificantes a especulação imobiliária
delas já teria se apropriado, tornando-as inacessíveis para os componentes do
mundo do trabalho.
Em 2011 tivemos um desastre
ambiental de grande proporção nas cidades serranas do Rio de Janeiro. Em 2020
idêntico fenômeno se abateu sobre o sudeste de Minas Gerais. Agora foi em Porto
Alegre. É momento de solidariedade aos atingidos pela catástrofe no sul. Mas
igualmente é preciso entender que tais eventos têm causas e que estas podem ser
evitadas ou minoradas por adequadas políticas públicas e cuidado adequado como
meio ambiente. Embora não seja hora de apontar o dedo para os culpados é
preciso termos em mente quem são os responsáveis. Na mitologia grega, quando
Édipo descobriu que a desgraça que se abatia sobre Tebas se devia ao fato de
ter casado com a própria mãe, não se desculpou dizendo não saber do parentesco,
nem disse que não era hora de buscar o culpado. Furou os próprios olhos e
partiu da cidade.
Publicado originariamente no jornal O
DIA, em 01/06/2024, pag. 12.
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