A repercussão do caso do homem jogado de uma ponte por um
policial militar em São Paulo aguçou a discussão sobre a violência policial em
todo o país. Diversos policiais militares manifestaram preocupação em não serem
vistos pela sociedade como matadores fardados, notadamente por não fazerem
parte dos grupos premiados e condecorados por similares atuações. No Rio de
Janeiro, tivemos não apenas condecorações por “bravura”, mas premiação aos
policiais matadores. Foi a “Gratificação Faroeste”. Tratava-se de prêmio em
dinheiro aos policiais envolvidos em confronto do qual resultasse morte ou
ferimento de pessoas consideradas indesejáveis. Foi implantada no governo
Marcello Alencar, eleito em 1996, e tinha como secretário de segurança o
general Nilton Cerqueira e Chefe da Polícia Civil o delegado Hélio Luz. O
general que fora o Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro quando da
Bomba do Riocentro é, também, apontado como o matador de Carlos Lamarca.
O poder nem sempre fala. Por vezes emite sinais. Diante de
denúncias de abusos e mortes cometidas por policiais militares na “Operação
Escudo”, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, respondeu com ironia
às perguntas formalizadas pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas (ONU) dizendo: “Nossa intenção é proteger a sociedade. Nós
estamos fazendo o que é correto, com muita determinação e profissionalismo
(...). Sinceramente, eu tenho muita tranquilidade com relação ao que está sendo
feito. E aí o pessoal pode ir na (sic) ONU, na Liga da Justiça, no raio que o
parta que eu não estou nem aí”. Assim como a “Gratificação Faroeste” incentivou
o aumento da violência policial, as palavras do governador de São Paulo
serviram de incentivo aos matadores.
O “Tô nem aí!” do governador paulista para as mortes que se
sucediam foi visto por parte da tropa como autorização para as execuções, e
assim foi feito. Os casos considerados isolados de violência policial, mas
recorrentes, chamam a atenção para outro aspecto da questão. Nem todos os
policiais concordam com a política de segurança que coloca suas vidas e
integridade em risco. Mesmo as corporações militares, como nenhuma outra com
corporativismo acentuado, os policiais não são um bloco monolítico, constituído
de uma única peça, capazes de apoiar unissonamente e serem usados como
marionetes por políticos que tiram proveito do anseio de sangue de bases
eleitorais. Apesar da política de extermínio que se difunde pelo país e do gozo
com que alguns policiais a executam, parte da tropa não concorda em ser
transformada em executores de pretos e pretos, nem na instrumentalização da
corporação para fins espúrios. Dentre os policiais que não concordam em fazer o
‘serviço sujo’ estão os integrantes do Movimento Policiais Antifascismo, que
reúne policiais militares, policiais civis e dos Corpos de Bombeiro de todo o
país. Além desses policiais integrantes do movimento, muitos outros querem ser
tratados como trabalhadores, com os direitos e deveres de todos os agentes públicos,
sem que sejam compelidos à atuação contra a sociedade brasileira, notadamente
pretos e pobres das favelas e periferias das grandes cidades.
A sinalização dada pelo governador paulista de que não estava
nem aí para a truculência policial, é vista por muitas autoridades militares
como difusão da certeza de impunidade pelos crimes cometidos, capaz de minar a
própria autoridade dos comandantes que não concordam com a transformação de sua
instituição em grupo de extermínio. Alguns policiais paulistas manifestaram
contrariedade ao desmantelamento do programa de câmeras corporais, alegando que
tais câmaras serviam como prova da regularidade de suas atuações e que somente
aqueles que atuam à margem da legalidade desejam que suas atividades não sejam
registradas.
Estados como o de São Paulo e do Rio de Janeiro gastam mais
com segurança do que com educação e saúde juntos. As constantes
descontinuidades das políticas de segurança pública geram incertezas para os
próprios agentes das forças policiais. Enquanto alguns tentam sempre se adaptar
às novas diretrizes, outros sequer se importam com elas, consideradas
transitórias, e se mantêm nas velhas diretrizes do desrespeito à vida e à
dignidade da pessoa humana.
Muitos policiais estão apreensivos com a elevação do índice
de violência do Estado, cuja execução lhes compete, colocando-os contra a
própria sociedade. Não são poucos os casos de afastamento de atividade por
problemas psiquiátricos, assim como o suicídio de policiais. Parcela dos
policiais tem adoecido na medida em que são vistos pela sociedade, pelos
vizinhos e até por familiares como matadores fardados. Há uma demanda para que
sejam vistos como trabalhadores exercentes de suas atividades com profissionalismo,
a fim de que ao final de cada jornada possam voltar para suas casas vivos, sem
risco de vida e com o reconhecimento pelos serviços que tenham prestado à
sociedade. Mas isto só será possível se os que ordenam a política de confronto
forem responsabilizados. E o caminho não é a ONU. É o Tribunal Penal
Internacional que julga crimes contra a humanidade, que o governador paulista
não citou. Diante do TPI, o governador paulista não diria “Tô nem aí”.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/12/2024,
pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/12/6972737-joao-batista-damasceno-
casos-isolados-mas-recorrentes.html
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