sábado, 18 de maio de 2024

Discurso de ódio e política de cancelamento

A política de cancelamento e discurso de ódio que se praticam atualmente na sociedade, notadamente nas redes sociais, atinge sobretudo aos que expressam desejo de pertencimento ou visibilidade ou cujas atividades profissionais demandam interação com o público. Profissionais qualificados podem ser vitimados por cancelamento em razão de fato alheio à sua atividade laborativa. Vivenciamos a perda da função social da cidade, como espaço de socialização e convivência. A cidade tornou-se virtual.

Nem sempre quem promove discurso de ódio sabe o porquê o faz. Mais que o mal-estar da civilização para a qual a cultura nos socializa, vivenciamos o mal-estar nas interações difusas. O ponto de inflexão no Brasil foi registrado nas Jornadas de junho de 2013. Aquelas manifestações que, no Rio de Janeiro, perguntavam pelo corpo de Amarildo não podem ser interpretadas como um movimento organizado da direita, que efetivamente tomou as ruas em momento posterior. Desde quando a direita se ocuparia com o destino de um homem negro, favelado e pobre morto pela política de extermínio que se implantou neste Estado? As manifestações de junho de 2013 expressaram rejeição aos gastos com os grandes eventos nos quais o povo não poderia ingressar. A precariedade nas áreas da saúde, educação, saneamento, moradia e transporte coletivo foi o combustível que fez propagar aquele incêndio. O mal-estar difuso foi agregado a partir do surgimento das mídias sociais, que serviram para convocações de simultâneas ou sucessivas aglomerações durante um mesmo dia. Aqueles que se escondiam nos porões deixados pela ditadura empresarial-militar aproveitaram o momento e saíram de suas cavernas.

A política de cancelamento, discursos de ódio, mentiras, notícias falsas e fofocas preexistem ao atual momento. O que as difere das fake News é a larga e rápida difusão propiciada pelas redes sociais. A política do cancelamento está relacionada à destruição de reputações, tal como o discurso de ódio está relacionado ao linchamento físico, verbal ou noticioso outrora praticado, também, pelas mídias corporativas. As plataformas digitais dão eco ao discurso de ódio e aos cancelamentos e o mal-estar nas relações sociais são campo fértil para tais ocorrências. 

A formação de grupos sociais, física ou virtualmente, a partir de afinidades propicia a agregação, mas também a exclusão de quem não seja considerado apto a tal inserção. O ser humano nasce indivíduo e se torna pessoa. Com a aquisição de determinados atributos pessoais adquire status com os quais se relaciona socialmente. A cultura do cancelamento implica na destruição do status com o qual a pessoa se apresenta socialmente.

Vivemos em praças digitais que nos expõem a tribunais virtuais nas redes sociais, num processo de digitalização das relações e até em processo que se denomina metaverso. Metaverso expressa a confusão entre o real e o virtual, sem grande possibilidade de distinção entre um e outro. Mais que os cancelamentos com índices de rejeição, perdimento de seguidores em plataformas digitais, temos a transmudação da cultura do cancelamento em discursos de ódio com ameaças à integridade física ou à vida de pessoas,
extensivo a amigos e familiares.

O discurso de ódio e a cultura do cancelamento causam danos psicológicos e físicos, na medida em que impõem sofrimentos, dores, angústia e no plano econômico distratos de contratos e desfazimento de relações jurídicas estabelecidas. O cancelamento implica na ação de boicotar uma pessoa dentro de uma comunidade ou grupo social. Cancelar é negar o direito de uma pessoa ao pertencimento a um determinado grupo, deslegitimando-a; é conduta excludente. Busca-se negar o direito de pertencimento. O extremo do cancelamento é a política de extermínio de pretos e pobres na periferia, antes excluídos do conceito de pessoas humanas. O cancelamento virtual é uma forma de justiçamento, tal como o são os linchamentos e execuções sumárias.

Numa sociedade cada vez mais mediada pelas plataformas digitais e pelas redes nelas estabelecidas, os linchamentos morais podem – com facilidade – se transformar em violência física, com risco à própria vida dos cancelados. Um coach, famoso por suas mentiras, nesta semana, promoveu discurso contra jornalistas de uma emissora de televisão, tornando-os alvo de seus seguidores. Os jornalistas estão andando sob escolta. Não se pode confundir a liberdade de expressão com o incitamento a crime. Ainda que o famoso coach não tenha ordenado dano físico aos jornalistas, seu discurso de ódio propiciou tal efeito, pois seus seguidores passaram a ameaçar os jornalistas.

Os perigosos sentimentos coletivos da massa se expressam tal como os gritos do incentivador da barbárie. O discurso de ódio se traduz em excesso na liberdade de expressão, causador de danos e sujeita o incitador à responsabilização. O excesso na manifestação do pensamento é abuso de direito. A responsabilização, além da esfera civil, pode igualmente ser buscada na esfera penal, seja contra quem pratique o dano ou a quem o incitou. Afinal, quem de qualquer forma concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas.

 

Publicado originariamente em 18/04/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/05/6847754-joao-batista-damasceno-discurso-de-odio-e-politica-de-cancelamento.html

sábado, 4 de maio de 2024

Almirante Negro João Cândido e a luta pela dignidade da pessoa humana

 

A Constituição de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se num Estado Democrático de Direito que tem por fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Estes fundamentos da República estão em discussão em momento no qual o Congresso Nacional incluirá o nome do Marinheiro João Cândido Felisberto no Livro dos Heróis da Pátria. João Cândido liderou a Revolta da Chibata em 22 de novembro de 1910, reivindicando o fim dos açoites na marujada, mesmo após 22 anos da abolição da escravatura e 21 da Proclamação da República.

O mote para a revolta foram as 250 chibatadas no Marinheiro Marcelino. O Almirante José Carlos de Carvalho, única autoridade admitida subir a bordo, assim relatou: "Mandaram vir a minha presença, Sr. Presidente, uma praça que tinha sido castigada ante-hontem. Examinei essa praça e trouxe-a commigo para terra para ser recolhida ao Hospital da Marinha. Presidente, as costas desse companheiro assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada".

Proclamada a República em 15/11/1889, fora, no dia seguinte, editado o Decreto 03, extinguindo os castigos corporais na Marinha. O decreto não foi acolhido pela oficialidade. Em 12/04/1890, o Marechal Deodoro da Fonseca editou o Decreto 328, criando a "Companhia Correcional". Restabeleceu-se o retorno da chibatada aos marinheiros. Ainda em 1890, em 28 de junho, o presidente editou decreto de cunho racista proibindo a entrada de imigrantes africanos e asiáticos no Brasil.

Não se pode tratar João Cândido à luz da indisciplina e da quebra da hierarquia, quando fez prevalecer a sensatez em prol dos direitos humanos. No mesmo período, a oficialidade vivia em polvorosas revoltas e muitos dos oficiais que quebraram a hierarquia hoje são considerados heróis pela Marinha Brasileira. Em 23/11/1891, tivemos a Revolta da Armada, pró-monárquica. Em 13/12/1891 tivemos o Levante Deodorista na belonave 1º de Março. Em 05/09/1893, o couraçado Aquidabã iniciou a Revolta da Armada, também de índole monarquista.

Eu poderia citar dezenas de sublevações militares ao longo da República, comandadas por oficiais, que implicaram quebra da hierarquia e da disciplina. Da Primeira República basta lembrarmos do Movimento Tenentista de 1922 e da Revolução de 1932. Da metade do século XX para cá tivemos a tentativa de proibição da posse de Juscelino Kubistchek, os levantes durante seu mandado, a oposição à posse de João Goulart em 1960, o golpe de 01 de abril de 1964, a tentativa de deposição do general-presidente Ernesto Geisel pelo seu ministro do Exército Silvio Frota até o Caso Riocentro, além de muitos outros atos, como transformação de quartéis em centros de tortura, assassinatos, desaparecimentos etc.

O assassinato de Euclides da Cunha em agosto de 1909 inflamara os ânimos da campanha eleitoral de 1910. De um lado estava Rui Barbosa com sua campanha civilista e de outro o Marechal Hermes da Fonseca, sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca. Rui Barbosa falava de direitos civis, por isso sua campanha era civilista. A ela se contrapunha o discurso do uso da força, encampada por militares e pelas milícias da subsistente Guarda Nacional. As paixões eleitorais interpretavam as campanhas civilista e militarista como se fossem de civis contra militares.

Hermes da Fonseca tomou posse em 15 de novembro. Em 22 de novembro, enquanto recebia delegações estrangeiras num jantar na Tijuca, cerca de 2.400 marinheiros se rebelaram, chefiados por João Cândido. Não queriam mais ser açoitados. Para o pasmo da oficialidade racista, o Almirante Negro manobrava a frota com precisão e elegância. Foi o que escreveu o jurista Evaristo de Moraes em seu livro 'Reminiscências de um Rábula Criminalista':

"Quando, no começo do governo do Marechal Hermes, explodiu a revolta chefiada por João Cândido, admirei, como todas as pessoas libertas de preconceitos, a habilidade técnica do improvisado 'almirante', fazendo evoluir os navios, a sua capacidade disciplinadora, evitando a alcoolização dos companheiros, e a generosidade de que deu sobeja prova, não atirando cruelmente contra a capital da República".

O Encouraçado Minas Gerais, comandado por João Cândido, era o maior navio de guerra do mundo. Ao chegar ao Rio de Janeiro, no início de abril de 1910, trazendo o corpo do embaixador brasileiro nos EUA, Joaquim Nabuco, não foi do nobre falecido que a imprensa falou. O embaixador Gilberto Amado se entusiasmou com a chegada do navio, mais que com o corpo do seu colega falecido. E a música adaptada em homenagem ao encouraçado é o hino do Estado de Minas Gerais, o único Estado da federação que não tem hino oficial. "Óh Minas Gerais! Óh Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais! Óh Minas Gerais!".

Tentou-se liquidar com João Cândido e sua memória. Em 05/12/2006, o jornal O DIA revelou que a fotografia estampada na capa do livro 'João Cândido, O Almirante Negro', publicado pelo Museu da Imagem e do Som, em 1999, era de outro marinheiro; de André Avelino. O erro era mantido em outras obras. João Cândido, descendente de pessoas que tinham sido escravizadas, é a parte do Brasil real que insiste em viver sem açoites. E viverá!

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/05/2024, pag. 12. Link:  https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/05/6839385-almirante-negro-joao-candido-e-a-luta-pela-dignidade-da-pessoa-humana.html




sábado, 20 de abril de 2024

Descobrimento do Brasil, Twitter (X) e Apartheid

 

Depois de amanhã comemoraremos 524 anos do desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, na Bahia. Mas as glórias da navegação, no país lusitano, ficaram para Vasco da Gama, que, em 1497, contornara o Cabo da Boa Esperança abrindo o caminho para os demais navegantes.

Os nomes dados por Vasco da Gama a duas regiões da atual África do Sul permanecem até hoje: Cabo e Natal. Portugal não colonizou aquela região, mas a mantinha como ponto de passagem e abastecimento. Os tronos português e espanhol foram reunidos sob a mesma Coroa de 1580 a 1640, período chamado de União Ibérica, e em 1630 os holandeses ocuparam o nordeste do Brasil. Com a restauração do Trono Português, em 1640, iniciou-se a expulsão dos holandeses, concluída em 1654. A região sul da África que era disputada por portugueses, ingleses e holandeses fora ocupada por estes, dois anos antes.

Os holandeses, em 1652, fundaram a Cidade do Cabo e lá se estabeleceram, levando a fé protestante e renovada dos calvinistas, admitindo a presença também de protestantes franceses. A mão de obra era obtida escravizando os "cafres", africanos não islamizados. A palavra pejorativa "cafre" vem do árabe "kafir" e significava "infiel", na concepção dos mulçumanos. Camões, que aclamou o contorno do Cabo da Boa Esperança, a emprega em seus versos. Em decorrência da Guerra dos Cafres os colonizadores holandeses passaram a escravizar e trazer pessoas da Indonésia, Madagascar e Índia.

Com o advento da Revolução Francesa de 1789 e das guerras napoleônicas, em 1795 os ingleses invadiram e conquistaram a Cidade do Cabo, levando a fé anglicana. Os ingleses, em 1835, aboliram a escravatura. Em 1837, os colonos de origem holandesa, chamados de bóeres ou africânderes, migraram para o interior da África e fundaram os Estados autônomos de Orange e Transvaal, mantendo a escravidão. Em 1852, os ingleses anexaram a Colônia de Natal à Colônia do Cabo, convivendo com aqueles Estados autônomos. Mas a descoberta de diamantes e ouro naqueles Estados aguçou a cobiça dos ingleses, que avançaram sobre a região.

Foram duas as guerras dos bóeres. Na primeira, foram vencedores. Mas na outra, de 1889 a 1902, os ingleses consolidaram a dominação e em 1910 criaram a União Sul-Africana. Sua Constituição de 1910 já impedia o direito de voto aos não-brancos. Em 1911, foi editada lei criminalizando o abandono do trabalho pelos povos nativos. Em 1913, foi editada uma lei de terras reservando 7% das terras para a população negra local e 93% para os brancos.

Em 1931, a África do Sul proclamou sua independência e, em 1948, numa eleição na qual apenas os brancos puderam votar, o Partido Nacionalista, tendo à frente o pastor calvinista Daniel Francis Malan, ganhou as eleições. Sua proposta era aprofundar a separação entre a população negra e branca, diferentemente das propostas integracionistas do primeiro-ministro Jan Smuts, que a perdera por cinco cadeiras no parlamento.

Formado o governo do pastor Malan, foram instituídos os bantustões, regiões onde os negros deveriam viver. Posteriormente tais regiões foram transformadas em territórios regionais autônomos, dificultando a locomoção dos moradores para os bairros, cidades ou áreas destinadas aos brancos.

O apartheid, instituído na África do Sul em 1948, que durou até 1994, não pode ser traduzido apenas como "racismo" ou "discriminação racial". Tratou-se de um sistema social, econômico e político-constitucional. Era uma estrutura econômica de classe fundada na cor e características raciais.

Tive a atenção chamada para o problema na África do Sul quando o Arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1984. A existência de uma autoridade religiosa negra na África do Sul, durante o apartheid, me deixou curioso. Mas ao buscar entender o que por lá se passava pude constatar que a religião do arcebispo não era a dos bóeres (descendentes dos holandeses). Ele era anglicano. Os descendentes dos bóeres eram calvinistas. Estes atuavam para o impedimento de acesso à terra pelos grupos tribais, exerciam controle forçado sobre a mão de obra, promoviam genocídio e sujeição dos povos nômades e promoviam guerra às populações Xhosa, Zulu e Sotho pela posse das terras produtivas.

Os trabalhadores negros somente podiam viver nos bantustões ou homelands e suas locomoções fora deles somente eram autorizadas se a economia precisasse dos seus serviços. Fora das áreas a eles destinadas não tinham direitos políticos ou civis. A pretexto de possibilitar o desenvolvimento separado, o governo da África do Sul passou a declarar os bantustões como Estados independentes, desnacionalizando a população em seu próprio país. A saída do homeland passava a demandar um passaporte ou salvo conduto. Mestiços e orientais não tinham homeland próprio e não tinham os privilégios da população branca.

Elon Musk nasceu em Pretoria, fundada em 1855 e que se tornou capital do Transvaal em 1860, região dos bóeres. Descende dos colonizadores holandeses que instituíram o apartheid na África do Sul. Em agosto do ano passado, Elon Musk se envolveu numa guerra verbal com Julius Malema, líder do partido Combatentes da Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês). Ele pretendia que uma música contra o Apartheid na África do Sul, cantada em reunião do EFF, fosse proibida. O passado insiste em permanecer presente.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA , em 18/04/2024, pag. 12.


sábado, 6 de abril de 2024

Garantias da magistratura, direito da cidadania

 

As garantias conferidas aos juízes para o exercício de suas funções com independência são tratadas, por vezes, pelo senso comum ou até mesmo pela mídia, como privilégios de uma categoria profissional. Dispõe a Constituição que os magistrados gozam das garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e da irredutibilidade de suas remunerações. A crise institucional que se abateu sobre o país em tempos recentes levou ao questionamento do que deveria ser um consenso da sociedade para que os juízes pudessem lhes assegurar os direitos livres de pressões externas ou internas.

Não fossem os juízes inamovíveis, diante de uma causa que envolvesse o interesse de grupo econômico em detrimento dos consumidores, bastaria remover o juiz e designar outro que atendesse aos interesses do poder econômico. As causas são distribuídas aos juízes por meio de sorteio. Assim, ninguém escolhe o juiz da sua causa.

Na Primeira República, período nefasto da história do Brasil encerrado com a Revolução de 1930, quando tais garantias não existiam, não raro as remunerações dos juízes eram cortadas, tornando-os reticentes diante do poder decorrente do coronelismo, quando tinham que tomar alguma decisão cujos interesses pudessem ser afetados. O Ministro do STF Victor Nunes Leal, cassado após a edição do AI-5, escreveu um livro clássico intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, onde analisa tal questão com profundidade.

Após a Revolução de 30, foi promulgada a Constituição de 1934. Mas durou pouco. Em novembro de 1937, foi instituído o Estado Novo e uma Constituição de feição autoritária foi outorgada. Mas mesmo diante daquela Constituição de feição autoritária houve quem defendesse as garantias dos magistrados como indispensável à segurança dos direitos dos cidadãos brasileiros.

Oliveira Vianna, que atuou como consultor da Presidência da República e foi o responsável pela instituição da Justiça do Trabalho no Brasil, posteriormente nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, teve a oportunidade de emitir parecer onde afirmava a necessidade de garantias da magistratura, mesmo naquele regime totalitário. Oliveira Vianna não qualificava o Estado Novo como uma ditadura ou um regime totalitário. Ao contrário, dizia que se tratava de uma democracia autoritária, onde o Chefe da Nação interpretava e representava a Vontade Geral. Portanto, toda decisão dos órgãos e poderes do Estado, mesmo as decisões judiciais, deveria estar em conformidade com a vontade do chefe do Estado.

Mas Oliveira Vianna ressalvava o perigo que poderia ser um regime no qual os juízes se sentissem inseguros de desagradar ao ditador. E para que não fossem tomados de tal sentimento, em prejuízo da realização dos direitos da sociedade, haveriam de ser imunes a qualquer tipo de retaliação. Embora de concepção autoritária e conservadora, as ideias de Oliveira Vianna precisam ser revisitadas no presente momento, a fim de assegurar as garantias à magistratura em proveito da sociedade.

Estudando os regimes totalitários europeus dos anos 30, Oliveira Vianna afirma que em nenhum deles os magistrados estavam sujeitos à hierarquia administrativa; em nenhum estariam subordinados ou subalternos aos chefes dos Estados totalitários. Disse que a restrição ao "livre movimento dos magistrados no campo das suas atribuições" e sem independência funcional da magistratura é impossível qualquer sistema funcionar.

Na vigência dos regimes totalitários, onde os poderes estavam enfeixados nas mãos do chefe do Poder Executivo, o Presidente da República podia suspender, aposentar ou demitir quaisquer funcionários cujo comportamento não lhe parecesse adequado. O Estado num regime totalitário não é Estado de Direito, onde há de viger a vontade impessoal da lei e não a vontade pessoal dos agentes públicos. Mas, interpretando a Constituição outorgada de 1937, Oliveira Vianna dizia que a "obediência pessoal do Chefe do Governo não pode atingir os órgãos da magistratura". E concluía que mesmo a aposentadoria autorizada naquela Carta autoritária somente se poderia fazer para os funcionários administrativos "quando, pelas suas ideias e doutrinas, estivessem em desacordo com os princípios do próprio regime". "Mas não poderia fazer o mesmo em relação aos magistrados, pois que estes não podem estar obrigados, órgãos de um poder político que são, ao mesmo dever de obediência; obediência eles só devem à lei e à Constituição", disse.

O parecer emitido pelo então ministro do Tribunal de Contas da União, publicado em Ensaios Inéditos pela Editora da Unicamp, nos coloca a questão de necessidade de independência funcional dos juízes em prol da realização dos direitos e garantias da sociedade. Num Estado Democrático de Direito, tal como assegurado no art. 1º da Constituição da República, tais garantias não comportam dúvida. Menos ainda por posicionamentos doutrinários dos julgadores. Afinal, um dos princípios consagrados na Constituição é o da pluralidade, sem o que não há que se falar em democracia.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/04/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/04/6822685-garantias-da-magistratura-direito-da-cidadania.html

sábado, 23 de março de 2024

Forças Armadas e Poder Moderador: uma usurpação

 

Proclamada a independência do Brasil, em 1822, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte. O projeto de Constituição de 1823 estabelecia limitações ao poder do Imperador. D. Pedro I mobilizou tropas do Exército, cercou a Assembleia e a dissolveu. Em 25 de março de 1824, outorgou uma constituição na qual dispunha sobre os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. A "Pessoa do Imperador" recebeu a qualidade de inviolável e sagrada, não sujeito a responsabilidade alguma. Reservou-se, o Imperador, o exercício dos poderes Executivo e Poder Moderador, pelo qual podia intervir nos demais poderes.

Proclamada a República em 1889, por um golpe militar, foi elaborada a Constituição de 1891. Quando Rui Barbosa apresentou o projeto de Constituição em elaboração ao Marechal Deodoro da Fonseca, este perguntou onde estavam seus poderes para dissolver o Parlamento. Foi com muita dificuldade que Rui Barbosa tentou fazer-se entender dizendo que o regime mudara e que num regime de separação de poderes um poder não pode interferir no funcionamento do outro. Mesmo o Judiciário não concebia seus poderes para declarar uma lei inconstitucional quando contrariava a Constituição. Isto porque durante o Império a sanção da lei pelo Imperador removia a contradição que pudesse existir. Assim, no Império, uma lei contrária à Constituição, depois da sanção do Imperador, se sobrepunha a esta. No regime constitucional republicano, a Constituição se sobrepõe à lei e, se esta for incompatível com aquela, prevalece a Constituição e a lei deve ser declarada inconstitucional.

Quanto ao Poder Moderador, este deixou de existir no sistema de separação de poderes, harmônicos e independentes. A harmonia decorre do exercício limitado às suas atribuições exclusivas. São independentes, pois cada qual não precisa da autorização do outro para seu funcionamento.

Proclamada a República e instituído um regime constitucional de divisão de poderes, os conflitos políticos e jurídicos se resolvem pelo exercício das respectivas competências pelos poderes do Estado e pelo Sistema de Freios e Contrapesos. Este se caracteriza pelo equilíbrio entre os três poderes do Estado buscando a harmonia determinada constitucionalmente.

Tendo retornado aos quartéis após a ditadura empresarial-militar instituída em 1964, os militares continuaram a atuar nos bastidores e, durante a Assembleia Nacional Constituinte, tiveram grande atuação visando a resguardar poder político. O que emergiu com o golpe que destituiu a Presidenta Dilma foi a ativação do desejo de poder que se mantinha latente na caserna. Desde o golpe que proclamou a República nenhuma crise política deixou de ter a presença militar, notadamente do Exército. Por vezes, as Forças Armadas eram o ator principal das crises, tal como a crise que levou ao suicídio do Presidente Getúlio Vargas ou a tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitscheck. Mas as Forças Armadas não têm qualquer papel constitucional a ser exercido na esfera política. Seu papel institucional é outro.

Como sempre acontece, em momentos de crise, aparecem os conselheiros prometendo tirar leite de pedra. Assim não faltam os que afirmam existir papel político a ser desempenhado pelas Forças Armadas, numa interpretação enviesada do art. 142 da Constituição. Neste momento, um dos bacharéis em Direito badalados por golpistas afirma que "as Forças Armadas são um poder de estabilização da nação". Chega-se a falar de "regime constitucional das crises", que teria amparo no título V da Constituição e que trata do Estado de Defesa, Estado de Sítio, Forças Armadas e Segurança Pública. O art. 142 da Constituição, inserido em tal capítulo, quando trata da possibilidade de emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, não autoriza intervenção nos outros poderes do Estado. As Forças Armadas não exercem poder moderador. E isto decorre da redação originária da Constituição.

A redação original do art. 42 da Constituição dispunha que os militares das Forças Armadas são servidores públicos militares. Servidor público é agente da Administração. Não é exercente de poder do Estado. Não hão de ter poder político numa sociedade civil, salvo quando usando a força usurpam o poder, executando as próprias razões e rompendo com o primado da civilidade. Mesmo que a Emenda à Constituição nº 18 de 1998 tenha dado redação diversa ao art. 42, não foram as Forças Armadas convertidas em Poder Moderador. Isto porque a Constituição, ao dispor sobre emendas à Constituição, foi expressa ao dizer que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a separação dos Poderes".

Pode-se alterar a Constituição por outros fundamentos, inclusive pela força dos golpes de Estado, como ocorreu com a Emenda Constitucional nº 01 de 1969, após a edição do AI-5. Mas o nome a se atribuir à modificação é golpe, usurpação de poder ou outro fundado na força. A Constituição de 1988 não foi alterada para atribuir poder moderador às Forças Armadas. E não poderia sê-lo por expressa proibição nela contida.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/03/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/03/6814505-forcas-armadas-e-poder-moderador-uma-usurpacao.html


sábado, 9 de março de 2024

Dia Internacional da Mulher, história de luta

 

Ontem, dia 08, comemoramos o Dia Internacional da Mulher. A história da data vem sendo apropriada comercialmente e sobre ela se tem criado fantasias, suprimindo a história de luta das mulheres componentes do Mundo do Trabalho por melhores condições de vida e existência. A data é marco da luta das mulheres operárias no início século XX, cuja atuação já se acentuava anteriormente nos movimentos sindicais. Muito se fala sobre o motivo de 8 de março ter sido escolhido o Dia Internacional da Mulher, relacionando-o a um incêndio que matou 129 mulheres em uma fábrica têxtil, em Nova York, em 1911. Mas a data foi motivada pela luta operária e pelos movimentos políticos e torná-la um dia de festa é uma maneira de apagar o protagonismo das mulheres na história. O mesmo acontece com o Dia do Trabalhador, 01 de maio, que ao longo da história foi dia de protesto em razão do enforcamento de quatro operários grevistas em Chicago, em 1887. O 1º de maio se transformara em dia de protesto e greve por todo o mundo e para esvaziar as manifestações foi instituído feriado e se tem tentado transformar em dia festivo dos trabalhadores.

As versões sobre fatos ou mitos sempre privilegiam os interesses majoritários. Eduardo Galeano disse que "se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano? Eva teria esclarecido que não nasceu da costela de Adão, nem conheceu nenhuma serpente, nem ofereceu maçã a ninguém e que Deus nunca lhe dissera para parir com dor e nem que haveria de ser dominada pelo marido". Eduardo Galeano conclui seu texto dizendo que "todas essas histórias são mentiras que Adão contou para a imprensa".

Há uma tentativa de transformar o dia 8 de março apenas numa data de homenagens às mulheres, apropriada pelo comércio. Mas se trata de data com raízes históricas mais profundas.

Embora oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) apenas em 1975, o Dia Internacional da Mulher é comemorado desde o início do século XX pelas organizações de mulheres trabalhadoras. Hoje, em momento de desindustrialização e crise no mundo trabalho, a data é cada vez mais lembrada como um dia para a reivindicação de igualdade de gênero e manifestações ao redor do mundo, aproximando-a de sua origem na luta das mulheres que trabalhavam em fábricas desde o florescer da Revolução Industrial.

Na metade do século XIX, as trabalhadoras e trabalhadores demonstraram ter tomado consciência de sua posição de classe na sociedade e compreendido que toda riqueza é produzida pelo trabalho e que, portanto, quem trabalha tem direito ao resultado do que é produzido. A ideia de que somente o trabalho produz riqueza não é de nenhum daqueles que escreveram o Manifesto Comunista de 1848. Mas de Adam Smith, economista liberal, que publicou, em 1776, o livro Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecido como A Riqueza das Nações. Daí é que os trabalhadores passaram a reivindicar que a riqueza, produto do trabalho, fosse entregue a quem trabalha e não aos detentores de capital.

A luta das mulheres por igualdade de gênero desde o século XIX estava no contexto do movimento operário para exigir a distribuição da riqueza socialmente produzida e por melhores condições de trabalho, que para as mulheres eram ainda piores que as condições dos homens.

Embora o incêndio em Nova York, no dia 25 de março de 1911, na Triangle Shirtwaist Company, que matou 129 mulheres, tenha efetivamente ocorrido e trazido à tona as más condições enfrentadas por mulheres desde a Revolução Industrial, a data não rememora aquele evento. Há registros anteriores a esse episódio que trazem referências a reivindicações das mulheres para que suas causas fossem incluídas nos movimentos de luta de todos os trabalhadores. Se hoje a desigualdade de gênero ainda é acentuada, a situação da mulher era muito pior que a dos homens nas relações de trabalho no século XIX e início do século XX. Uma grande passeata realizada por mulheres socialistas em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York, reivindicava melhores condições de trabalho para as mulheres. Em 1910, a alemã Clara Zetkin propusera, em reunião da Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, a criação de um dia internacional de manifestações das mulheres operárias por igualdade de direitos. O primeiro dia oficial da mulher foi celebrado em 19 de março de 1911. Em 1913, as mulheres operárias nos EUA protestavam pela igualdade de direitos trabalhistas, mas também pelo direito de votar. Na Rússia, em 1917, milhares de mulheres foram às ruas contra a fome e a guerra. Foi a greve das mulheres operárias russas o pontapé inicial para a Revolução de 1917, que deu origem ao Dia Internacional da Mulher.

No início do século XX, na Europa, crescia cada vez mais o movimento das mulheres nas fábricas. Mas o 8 de março prevaleceu graças à onda de protestos das mulheres russas. Após a revolução bolchevique, a data foi oficializada entre os soviéticos como celebração da "mulher heroica e trabalhadora" e foi difundida pelo mundo. 8 de março é o marco da luta pela igualdade de gênero. Não é data de festa, mas de luta de quem compõe o mundo do trabalho.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/03/24, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/03/6806486-dia-internacional-da-mulher-historia-de-luta.html

 


sábado, 24 de fevereiro de 2024

A fuga do presídio de segurança máxima

 

Ao longo da história, quando os sistemas têm as suas bases abaladas e se tornam insustentáveis com os valores que os legitimam, o apelo à violência para a manutenção do status quo é prática comum. Mas uma ordem somente pode ser mantida com justiça. Sem justiça somente se pode tentar manter a ordem com violência. A manutenção de uma ordem iníqua com violência dura pouco; cedo ou tarde desaba.

Na África do Sul, país ocupado e colonizado por ingleses e holandeses, quanto mais o apartheid se mostrava insustentável maior era violência do Estado contra a população nativa e negra. O apartheid foi sustentado por meio da violência, com as forças policiais sul-africanas constantemente promovendo massacres. A resistência da população sul-africana foi intensa e aconteceu por meio de grupos como o Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, que esteve preso por 27 anos.

No Haiti, governado por décadas por François Duvalier, "Papa Doc", e posteriormente por seu filho Jean-Claude Duvalier, "Baby Doc", o poder somente se pode exercer por meio da violência da Milícia de Voluntários da Segurança Nacional, conhecidos como Tonton Macoutes, que significa na língua crioula haitiana "Tio do Saco".

Os Tontons Macoutes foram responsáveis por centenas de milhares de torturas, assassinatos e desaparecimentos de pessoas. Tonton Macoute ou "Tio do Saco" era expressa referência ao "homem do saco" ou "bicho-papão", personagem imaginário capaz de promover desaparecimento ou eliminação de pessoas.

O Brasil vive o dilema de tentar resolver a crise que assola o sistema socioeconômico por meio de medidas repressivas. Em data recente,  o presidente Lula pediu perdão a Leonel Brizola e a Darcy Ribeiro pela obstrução que seus partidários fizeram aos CIEPs nos anos 90 do século passado. Darcy Ribeiro dizia, em 1982, que, "se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios". E Brizola dizia que o Brasil somente se estabeleceria como nação para todos os seus filhos por meio de uma soberana política nacional de desenvolvimento. Os CIEPs foram boicotados, sob o fundamento de que escola não é restaurante, e ao invés de se investir em educação, o país foi entregue à especulação dos banqueiros. A conta chegou. Nada que não tivesse sido previsto.

Sem projeto nacional de desenvolvimento e sem educação integral, pública e laica, tal como preconizado por Anísio Teixeira desde 1932 em manifesto publicado naquele ano, os rumos que a história tomou nos trouxe ao caos no qual estamos inseridos. Ampliam-se as vagas nos presídios, constroem-se presídios de segurança máxima, aumentam-se as penas, prendem-se e promovem-se conduções coercitivas de jovens pretos, pobres e periféricos para delegacias, sem mandado judicial ou situação de flagrante, e nada se apresenta como solução para o problema da violência e da criminalidade. Isto porque a solução não está no aparato repressivo.

A existência dos presídios de segurança máxima de onde teriam fugido dois presos em Mossoró surgiu nos EUA, nos anos 80, e é a expressão da falência do sistema prisional. Não bastasse o sistema prisional que coloca o Brasil na terceira posição mundial em número absoluto de presos, bem como proporcionalmente à sua população, criamos por aqui, copiando aquele país, sua especialização: os presídios federais de segurança máxima.

O sistema prisional é o destino para os indesejáveis. Imprestáveis para produzir ou incapazes de consumir, precisam ser acomodados em local no qual não perturbem os negócios. Assim, o Estado do Bem-Estar Social, previsto na Constituição Cidadã de 1988, vai sendo substituído pelo Estado Penal. O Direito Penal inicialmente tratado como medida de contenção do poder punitivo do Estado transforma-se em meio de contenção dos indesejáveis. Neste contexto, os presídios de segurança máxima não são criados para dar solução a problemas da chamada criminalidade no seio social. Mas tão somente visam a buscar solução para os problemas existentes no interior do sistema prisional.

O Brasil registra o aprisionamento de cerca de oitocentas mil pessoas. Significativo número desses presos cumpre pena por acusação de tráfico de substâncias que a lei considera ilícitas e foram pegas sem que estivessem portando arma. Portanto, não são pessoas a quem se possa atribuir a qualidade de violentas ou perigosas. Pobres, pretos e periféricos superlotam o sistema prisional, propiciando um ambiente de violência e degradação da qualidade de pessoas humanas. Mas o sistema não reconhece que ele próprio é o problema e desconsidera o que gera ao promover o encarceramento em massa. As prisões no Brasil têm condições piores que as masmorras medievais. Não são poucos os casos de mortes no interior do sistema prisional, muitas delas por doenças nele adquiridas, dentre as quais tuberculose, além de homicídios praticados por outros presos ou por agentes do Estado. Aliás, não se pode afastar a hipótese de que muitos presos tidos como foragidos foram na verdade assassinados no interior do sistema prisional e o registro de fuga encobre o homicídio. O Caso Rubens Paiva é exemplo desta ocorrência.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/02/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/02/6798525-a-fuga-do-presidio-de-seguranca-maxima.html