Num prédio na Avenida Pasteur, em Botafogo, há mais de 30
anos, um porteiro foi além de suas funções e passou a aferir as despesas
realizadas pelo síndico. Detectada malversação contou para os moradores o que
sabia. Foi pior que atiçar um formigueiro. Os moradores ficaram em polvorosa. O
síndico, um militar reformado, era um homem sisudo, que mantinha fixada, desde
o Governo Médici, no lado interno do vidro frontal do apartamento, uma bandeira
do Brasil, com os dizeres: “Brasil! Ame-o ou deixe-o”. Soberbo e defensor
intransigente de valores como Deus, pátria e família sentiu-se humilhado e
acuado. O porteiro se tornou prestigiado e pensava ter adquirido estabilidade
vitalícia no emprego.
Destituído do cargo de síndico, cultivou o ressentimento
contra os vizinhos, mas sobretudo contra o porteiro. O ex-síndico se
transformara num capacho e o porteiro numa soberba ambulante. Inverteu-se a
hierarquia social. Sem aviso prévio, em certo dia, o ex-síndico descarregou o
revólver no porteiro. O homicida era locatário de um pequeno apartamento em
Copacabana, para onde fugiu.
Mas descoberto foi levado à delegacia – sem mandado ou prévia
intimação – e alguns policiais ficaram no apartamento para investigar
existência de outras ilicitudes. Não tendo sido preso em flagrante, prestou
depoimento e voltou ao apartamento de Copacabana, onde disse ter constatado a
subtração de relógios de luxo e outras joias. Para a imprensa não falou do
homicídio que praticara, mas não poupou palavras para denunciar o furto de suas
joias. Tampouco quis responder se o apartamento de Copacabana era uma “garçoniere”
mantida por tão ferrenho defensor de valores tradicionais. Qualificava a
subtração das joias como roubo, porque fora retirado do apartamento e levado
para a delegacia sob a mira de armas.
O homicídio deixou de ser o tema abordado pelos jornalistas.
Deste já se falara tudo ou quase tudo. O tema das matérias passou a ser o roubo
das joias praticado pelos policiais que ficaram no apartamento enquanto outros
levaram o homicida para depoimento. O delegado tomou o depoimento do homicida
sobre o roubo das joias e instaurou um inquérito policial. Decorridos dois
dias, sem que haja testemunha do fato, o homicida foi atropelado por um ônibus
e morreu. A morte extingue a punibilidade e portanto o inquérito do homicídio
foi arquivado. Outro não foi o destino do inquérito do suposto roubo das joias.
Tendo se comprometido a voltar à delegacia com documentos que comprovavam a
aquisição das joias, a suposta vítima do crime de roubo não teve tempo
suficiente para provar o que dissera e seus familiares nada sabiam da
existência delas, assim como também não sabiam da existência da “garçoniere”.
Casos encerrados!
Restou a dúvida sobre o “acidente” que vitimou o ex-síndico.
Não poucos atropelamentos durante a ditadura empresarial-militar disfarçaram
homicídios. Igualmente mortes súbitas de quem não ostentava doenças
pré-existentes que as pudesse justificar. A morte dos três líderes da Frente
Ampla de oposição ao regime empresarial-militar num lapso de 9 (nove) meses
deixa dúvidas sobre as causas das mortes. O ex-presidente Juscelino Kubitschek
morreu num suposto acidente automobilístico no dia 22 de agosto de 1976. O
ex-presidente João Goulart faleceu de suposto infarto em 06 de dezembro de
1976. Os militares não permitiram a abertura do caixão para que Jango fosse
velado pelos familiares, nem a necrópsia. Carlos Lacerda morreu em 21 de maio
de 1977 igualmente de suposto infarto. Em 20 de janeiro de 1977 tomara posse
nos EUA o presidente democrata Jimmy Carter. Este presidente estadunidense pôs
fim à colaboração dos EUA com os governos militares cujas ditaduras instituíram
a Operação Condor e se esforçou para conter abusos aos direitos humanos. Esta
mudança poupou a vida de Brizola que seria deportado do Uruguai para ser morto
no Brasil, mas foi, por ordem de Jimmy Carter, resgatado pela CIA no dia 20 de
setembro de 1977.
Levado para Buenos Aires onde passou a noite em um local
seguro da CIA, Brizola foi embarcado em um voo - sem escalas - para Nova
Iorque, onde chegou em 22 de setembro, recebeu visto de permanência por seis
meses e depois rumou para Portugal onde permaneceu até retornar ao Brasil em
1979. O salvamento da vida de Brizola naquele momento tinha a oposição do
subsecretário de Estado para os Assuntos do Hemisfério Ocidental, Terence
Todman. Mas a CIA obedeceu a quem tinha que obedecer: ao presidente Jimmy Carter.
Assim como se sabe que o acidente que vitimou “Zuzu Angel”
foi um atentado, a queda de Anísio Teixeira no fosso do elevador num prédio na
Praia de Botafogo, onde morava Aurélio Buarque de Hollanda, há 44 anos, no dia
11 de março de 1971, pode igualmente ter decorrido de sua forte preocupação com
o que se fazia com a educação nacional às vésperas da edição da Lei de
Diretrizes e Bases para o ensino de 1971.
Há muitos acidentes, mortes súbitas e desaparecimentos de
opositores do regime empresarial-militar a serem apurados para constituição da
memória de nossa história. Mas não basta verdade e memória. É preciso também
justiça. A formação da maioria no STF sobre o não abrangimento dos
desaparecimentos de pessoas pela Lei da Anistia é um começo. A destituição das
patentes dos sicários das liberdades e a subsequente anulação das pensões para
suas filhas “solteiras” ´pode ser a continuidade. O Estado pode anistiar os
cidadãos, mas não pode se perdoar ou perdoar seus agentes quando comete crimes.
Publicado originariamente no
jornal O DIA, em 22/03/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7025113-joao-batista-damasceno-homicidios-camuflados.html