quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Nós cá e eles lá


“Se um policial é considerado violento por sua conduta individual, o que dizer da política de segurança militarizada que equipa ‘caveirões’ com alto-falantes por onde se ouve ‘eu sou a morte’ e ‘vim buscar sua alma’ quando entram nas favelas e bairros da periferia? O comportamento criminoso individual é apenas expressão da política de desrespeito aos direitos humanos em forma de política de segurança militarizada.”

 

A expulsão dos quatro policiais militares acusados de estupro em área da UPP do Jacarezinho ocorreu em tempo recorde, diferentemente de outros casos nos quais autoridades públicas — por inércia, omissão ou cumplicidade — permitem as violações aos direitos dos cidadãos.

 

Diz a denúncia oferecida pelo Ministério Público que um dos acusados demonstra “comportamento violento e personalidade distorcida”. Trata-se de fundamento para pedido de prisão preventiva. As vítimas descrevem um deles “como o mais violento e agressivo dos policiais. No momento do abuso sexual, ele teria dito ‘vocês hoje vão ver o capeta’.” É repugnante o crime cometido contra as moradoras. Mas não é o primeiro caso que se relata.

 

Na invasão do Complexo do Alemão se contaram várias queixas de estupro, roubos, invasões de domicílio e torturas. Numa das conversas interceptadas, um policial, em dia de folga, chamava outro para uma incursão pelo Alemão, dizendo tratar-se de um “garimpo”. O que se possibilita fazer nas comunidades ocupadas militarmente dá a dimensão da truculência do estado; não se trata de comportamento individual ou personalidade distorcida. Mas de política implementada pelo governo do estado.

 

Se um policial é considerado violento por sua conduta individual, o que dizer da política de segurança militarizada que equipa ‘caveirões’ com alto-falantes por onde se ouve ‘eu sou a morte’ e ‘vim buscar sua alma’ quando entram nas favelas e bairros da periferia? O comportamento criminoso individual é apenas expressão da política de desrespeito aos direitos humanos em forma de política de segurança militarizada.

 

Tal política somente se mantém porque acontece num lugar definido como ‘lá’, longe da vida da classe dominante, e subordina a vida de pessoas designadas pelo pronome ‘eles’, denotando que não fazem parte do universo de cartão-postal onde vivem aqueles que assim se expressam. Os advérbios ‘lá’ e ‘cá’ e os pronomes ‘nós’ e ‘eles’ designam a diferença entre os que elogiam a política de segurança militarizada e os que sofrem as suas consequências. A política de segurança militarizada tem garantido ganhos aos seus destinatários. A especulação imobiliária é a mais agradecida.

 

É louvável a expulsão dos policiais acusados de estupro no Jacarezinho, mas nem toda violência estatal tem sido tratada com o mesmo rigor. O acobertamento dos autores das torturas, da morte e do desaparecimento do Amarildo é emblemático. Foram as manifestações e a grandeza de um delegado que impediram a prevalência da versão oficial da área de segurança do estado. O mesmo se pode dizer dos assassinos da juíza Patrícia Acioli. Apesar de condenados, até hoje não foram desligados da polícia e continuam a receber seus salários regiamente, decorridos três anos do crime.
 
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 07/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-07/joao-batista-damasceno-nos-ca-e-eles-la.html

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