O filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe,
Professor de Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo,
África do Sul, é autor do livro “Necropolítica”, onde diz que “a expressão
máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar
quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver
constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. O soberano ou
quem age em seu nome pode matar de várias formas, inclusive “mirando na
cabecinha”.
Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, das mais competentes e coerentes, perguntou-me porque eu acreditava
que policiais atiravam a esmo para dentro das favelas. A pergunta me estagnou.
Não adiantaria relatar conversas com policiais que me disseram já terem se
protegido atrás de uma pilastra de concreto, apoiado o fuzil no ombro e
“sentado o dedo” na direção que poderiam estar os que pretendiam atingir. Já
ouvi a expressão “com certeza acertei gente”, sem demonstração de preocupação
se acertara quem desejava, um pai de família, uma dona de casa ou uma criança.
Para a resposta à amiga, de quem divirjo quase
sempre, precisava de uma reflexão e resposta que não se limitasse à minha
limitada experiência, apesar de 26 anos de contínuo exercício como juiz, sendo
18 na Baixada Fluminense, além das relações que me possibilitam juízo sobre
tais ocorrências.
A resposta do porquê policiais atiram a esmo para
dentro das favelas está no exercício do poder e na necessidade de afirmarem o
senso de autoridade que acreditam ter. Além do desmedido senso de autoridade,
quando policiais não o são, pois se reduzem a meros agentes de autoridade, acresce-se
a desumanização daqueles que são tratados como indignos de viver, porque não
rentáveis. As empresas de comunicação dão a sua colherada de contribuição
promovendo a espetacularização das ocorrências.
Num país que desumanizou pretos durante 300 anos e
os tratou como objetos não é de se estranhar a permanência do sentimento que
possibilita a exclusão, que é capaz de abominar o princípio constitucional da
inocência e de negar o direito à vida. Por isso, há instituições capazes de
julgar um praça que seja pego para bode expiatório. Mas, inexistem instituições
nacionais capazes do controle da politica de extermínio e submissão da cadeia
de comando ao banco dos réus. Talvez o único apelo seja para o Tribunal Penal
Internacional que julga autores de crimes contra a humanidade.
Quem exercita poder costuma rotineiramente impor
alguma sanção ou promover alguma premiação a fim de relembrar quem exerce a
autoridade e manter a legitimidade conquistada. Por vezes, a violência que é
própria do exercício do poder é exercida tão somente para reafirmar o senso de
autoridade. Na medida em que os cidadãos não mais legitimam a autoridade e seus
agentes, há uma tendência a instituir o mando pela força, instalando-se o
autoritarismo. Policiais, sem efetivo poder de mando, descrentes da própria
hierarquia a que estão subordinados, tentam estabelecer sobre moradores na
periferia e favelas um comando desmedido não amparado pela lei; por meio da
violência tentam obter uma obediência incondicional que não conseguem com base
na crença da legitimidade de suas ações, porque as mazelas de alguns são
testemunhadas por quem não vive em gabinetes. É neste contexto que autoridades
se tornam autoritárias e agentes de autoridades em agentes do extermínio,
arregimentando-se em milícias. A situação adquire maior gravidade quando
avançando sobre o poder político, as milícias chegam ao poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário