Depois
do que o site The Intercept demonstrou ter acontecido no “Principado de
Curitiba”, aqueles que se recusavam a acreditar nos abusos praticados pelo
Ministério Público e pelo sistema de justiça já não mais podem dizer não saber
do que são capazes as instituições contra as liberdades públicas. Claro que há
aqueles que, mesmo diante das maiores ilegalidades, bizarrices e perversidades,
acham pouco tudo o que se faz contra os que lhe são indesejáveis.
Com a acumulação de poderes conferidos ao Ministério Público
na Constituição de 1988, acrescidos daqueles que se apropriou com a
complacência de quem lhe deveria ter imposto limites, o MP se transformou num
trem sem freio, ladeira abaixo, capaz de atropelar todo o sistema de direitos e
garantias fundamentais. Foi a falta de limites em suas atuações que levou o
ex-procurador Geral da República a confessar ter iniciado a preparação de crime
contra a vida de um ministro do STF.
Em sentença que absolveu sumariamente o ex-presidente Michel
Temer, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal do
Distrito Federal, disse que o Ministério Público adulterou conversas entre
Temer e Joesley. O juiz foi enfático ao dizer que o MPF editou a transcrição do
diálogo, adulterando o seu sentido e disse: “A prova sobre a qual se fia a
acusação é frágil e não suporta sequer o peso da justa causa para a inauguração
da instrução criminal” e que “a denúncia transcreve o mesmo trecho do áudio sem
considerar interrupções e ruídos, consignando termos diversos na conversa,
dando interpretação própria à fala dos interlocutores (...)”.
Eu já ouvi de um delegado que não deveria acreditar nas
transcrições feitas pelo Ministério Público ou pela polícia e que - sempre que necessário
analisar uma conversa interceptada - eu ouvisse diretamente os áudios captados,
na sua integralidade. Da decisão do juiz consta a razão da necessidade de tal
diligência.
O juiz que absolveu o ex-presidente Temer comparou as versões
do mesmo diálogo e distorções e disse: “No trecho subsequente das transcrições
— principal argumento da acusação quanto ao crime de obstrução da justiça — a
denúncia, uma vez mais, desconsidera as interrupções do áudio, suprime o que o
Laudo registra como falas ininteligíveis e junta trechos de fala registrados
separadamente pela perícia técnica que, a seu sentir, dão — ou dariam — sentido
completo à conversa tida por criminosa".
Em 10/07/2013 escrevei neste espaço que: “O conflito que se
estabeleceu em data recente entre Polícia Civil e Ministério Público, em razão
da falsidade numa perícia elaborada por uma fonoaudióloga do Município do Rio
cedida ao MP, que fizera montagem de gravação de voz para incriminar um
acusado, é a ponta do iceberg do que teremos após a rejeição da PEC 37”. Ao
invés de apurar o que publicizei, o então procurador geral de justiça, preferiu
interpelar-me judicialmente.
A rejeição da PEC 37 ampliou os poderes do MP e a
possibilidade de abusos, em conluio com a mídia. Se o Ministério Público é capaz
de promover um grande escândalo na tentativa de atingir um Presidente da
República, com distorção de conversa gravada, do que alguns agentes não são
capazes contra aqueles que não dispõem dos mesmos recursos para defesa? O
problema dos trens sem freios é que acabam descarrilando.
Publicado
originamente no jornal O DIA, em 28/10/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/10/5816515-joao-batista-damasceno--trem-sem-freio--ladeira-abaixo.html#foto=1
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