À militarização
da vida politica brasileira, desde que um golpe militar instituiu a República
em 1889, seguiram a militarização das policias civis que já foram chamadas de
policia judiciária, das Guardas Municipais que se esparramam pelo país como se
fosse uma pandemia e, agora, chega às escolas que se chamam cívico-militares. O
fundamento ideológico é de que em tais espaços há hierarquia e disciplina. Mas,
estas palavras expressam conceitos e sem os compreender ficamos a lhes atribuir significados
diversos.
Hierarquia é palavra de origem religiosa que tornava o “hierarcos” incontestável, porque falava em nome de uma divindade. Em sentido contemporâneo é empregado nos cenários onde se estabelecem prioridades ou precedências de uns em relação a outros, em escalonamento. As organizações fundadas em escalonamentos estabelecem ordem de prioridade entre seus integrantes, bem como relações de subordinação de uns a outros, com graus sucessivos de privilégios, de prerrogativas, de poderes e de responsabilidades. Toda a administração pública, civil ou militar, é fundada na hierarquia. Disto decorre o poder de mandar e o direito de impor a obediência. Portanto, as hierarquias não são próprias das democracias ou das repúblicas.
A
militarização da vida tem levado a que praças, a quase todos subordinados na
hierarquia militar, subordinem os que consideram párias na ordem social, passíveis
de serem eliminados em chacinas, agora à luz do dia. Oitenta tiros num músico
negro, que passeava com sua família, na periferia da cidade do Rio de Janeiro, disparados
por praças do Exército durante a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, é apenas
o exemplo do que a militarização da vida é capaz. As políticas militares, que
deveriam ser apenas uniformizadas, ostensivas e preventivas das ocorrências
criminosas, se tornaram instituições em
guerra contra a sociedade. O mesmo passo seguiu parcela das polícias civis,
guardas municipais e empresas privadas de vigilância que adotam similar
comportamento bélico. A militarização da vida é o império do autoritarismo.
Se
hierarquia é o poder de mandar, com direito de exigir obediência, disciplina é
aceitação do conjunto de regras e normas estabelecidos
num determinado contexto ou grupo social. A disciplina é a conduta desejável de
um indivíduo nas interações que estabeleça na ordem social e para a qual tenha
sido socializado.
Disciplina
pode decorrer de educação e socialização. Mas, também de adestramento, termo
utilizado no disciplinamento animal e nas instituições militares. Adestramento significa
um conjunto sistemático e organizado de
comandos que permite o atendimento mecânico e condicionado de uma conduta
desejada. Somente uma pessoa adestrada para o desvalor da vida é capaz colocar
a sua em risco mediante comando de outra que acredita ser superior.
Mas, a falácia da hierarquia e disciplina nas
organizações militares vai até certo nível da escala funcional. No Brasil, não
houve instituição que mais desatendeu ao dever de hierarquia e disciplina que
as Forças Armadas. As constantes intervenções militares na ordem interna, desde
o Golpe Militar que destronou a monarquia, é prova constante da indisciplina.
Até impugnação de resultado eleitoral já se tentou, como em novembro de 1955, quando um coronel, vinculado à presidência da república, quis
confrontar as instituições. Naquele tempo estava em serviço o Marechal Lott que não permitiu a violação à disciplina militar, assim como hoje não permitiria que um general de três estrelas tivesse precedência sobre generais de quatro.
Os regulamentos militares são tratados como textos
sagrados quando a indisciplina é de praças ou baixa oficialidade. Mesmo esta,
quando atendendo a interesses dos seus “superiores” é relevada. Exemplos emblemáticos
são a manutenção em atividade do capitão terrorista que juntamente com um
sargento pretendia matar milhares de jovens num show de MPB no Riocentro em
1981, da promoção ao generalato do coronel que conduziu a farsa da apuração do Caso Riocentro e
do tenente processado porque revelou a jornalista seu plano de colocar bombas
em quarteis no final dos anos 80 do século XX. Promovido a capitão e reformado, o capitão teve amplo apoio da “hierarquia disciplinada”, que voltara
aos porões, para ingresso na vida politico-partidária.
Em 1964, a
pretexto de que a anistia a cabos e sargentos concedida pelo Presidente João
Goulart favorecia a quebra da hierarquia, os oficiais generais quebraram a hierarquia,
desrespeitaram a disciplina e protagonizaram um regime, a serviço do capital,
que mergulhou o país em trevas por 21 anos. Começaram atentando contra o
presidente da República e continuaram os atentados contra o Congresso Nacional,
a Constituição da República, o STF que teve ministros cassados, bancas de
jornais, igrejas e instituições da sociedade civil. Os quarteis foram
transformados em centros de torturas, mortes, estupros e desaparecimentos. A ‘Bomba
do Rioocentro’ desvelou do que eram capazes e tiveram que se recolher para as
sombras, de onde continuaram a tramar contra a democracia, o Estado de Direito
e suas instituições.
A quem serviram? A quem servem? Para que servem? “Há soldados armados, amados ou não. Quase
todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga
lição. De morrer pela pátria e viver sem razão”, disse um
poeta levado à insanidade decorrente de atrocidades.
Quem
consulte o Estatuto dos Militares (Lei 6880/80) verá o quão é preciso nas
definições dos termos utilizados. Verá também que se dizem ligados à pátria,
devem ter fidelidade à pátria, que atuam na defesa da pátria e que são
servidores especiais da pátria. Mas, não há definição do que seja pátria para
tais patriotas.
Diferentemente
de pátria, nação é o conjunto de pessoas unidas por um conjunto de valores, que
ocupam determinado território e no qual estabelecem instituições que expressam organização
política. A palavra ‘nação’ não consta do Estatuto dos Militares a não ser em
16 vezes para compor as palavras ‘destinação’ (uma vez), ‘ordenação’ (duas
vezes), ‘subordinação’ (duas vezes), ‘alienação’ (cinco vezes), ‘condenação’ (duas
vezes), ‘denominação’ (uma vez), ‘determinação’ (duas vezes) e ‘designação’ (uma vez).
As
instituições militares brasileiras se fundamentem na abstrata ideia de pátria
que sequer seus regulamentos definem e não inspiram temor em qualquer similar
instituição estrangeira. Seus métodos de recrutamento, seleção, adestramento e
até os uniformes militares são cópias dos estadunidenses. Mas,
são temidas pelo próprio povo e os 80 tiros no músico negro que passeava com
sua família na periferia foram apenas mais um recado para que continuemos a temê-las.
Somos reféns da sentinela que deveria tomar conta da nossa casa.
Mantemos e custeamos instituições militares para nos ameaçar permanentemente. Até o STF foi destinatário de ameaça, contemporaneamente, por um general que lembra o último discurso de Unamuno. Mas o que está estragado não é o vinho; é a garrafa. Sem profunda modificação da finalidade das Forças Armadas, o que teremos serão instituições que se acham no direito de intervir na ordem interna, determinar diretrizes para a sociedade e tutelar as instituições. E quando demandadas para cumprimento de sua finalidade institucional continuarão a alegar ausência de recursos para atender à ordem lhes dirigida. Mas sempre se dirão organizadas com base na hierarquia e disciplina, desde que não seja dos seus próprios dirigentes, que se pretendem acima da sociedade e das instituições por ela instituídas.
Não são servidores da sociedade. Não se consideram servidores públicos. São "servidores especiais da pátria". Na verdade, servem-se.
Mas a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem por fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Seus objetivos fundamentais são construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Não havemos de ser uma 'República das Bananas', da soja ou outras commodities, com instituições subordinadas a chefetes transitórios. Mas um país soberano, livre e justo, onde reine a soberania popular.
João Batista Damasceno, doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ.
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