Celso
Viáfora compôs a música ‘A cara do Brasil’ retratando um país dividido. Não é
atual a polarização e a tensão decorrentes dos conflitos das classes cujos
interesses se contrapõem. No presente momento ouvem-se os alaridos dos
excluídos, clamando por direitos. A voz do povo tira o sono da classe
dominante. Mas “cala a boca já morreu!” e se não há pão para o povo que não
haja sono para os poderosos que promovem as injustiças.
A história
da sociedade brasileira é a história da divisão social em estamentos similares
às castas indianas. Tivemos as casas grandes e as senzalas; os mausoléus e as
covas rasas; as camisas de linho e os descamisados; os sapatos de cromo alemão
e os pés descalços, além dos literatos com suas más letras e os analfabetos.
Enfim, uma sociedade excludente. Não é de agora a polarização. Hoje temos o
despertar da cidadania e o clamor por igualdade, alimentação, Justiça,
Educação, Saúde e tudo mais que pertence a quem trabalha, pois, resultado de
seu esforço.
Em nossa
formação social desumanizadora, primeiramente se tentou escravizar os nativos e
depois pessoas foram trazidas da África e tratadas como objetos. À escravidão
sucederam outras formas de exploração. O bisavô de um mito do futebol
brasileiro, Garrincha, foi apanhado numa dessas armadilhas. Garrincha era
descendente do povo Fulniô, que até hoje habita a região de Águas Belas,
situada entre Bom Conselho e Garanhuns, em Pernambuco, e Quebrangulo, onde
nasceu o escritor Graciliano Ramos, e Palmeira dos Índios, em Alagoas.
Garrincha
tinha a cara e jeito do povo brasileiro. Sua vida igualmente expressa o que
fazem com o povo, usado como se usa lenha, e depois descartado como se joga
fora a cinza que entope a fornalha. Os cuidados que recebeu ao final da vida
foi da companheira Elza Soares, a mais exuberante voz negra da música
brasileira.
Neste
momento em que a sociedade brasileira se polariza é preciso lembrar que todos
têm as suas razões. Um ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Um número
pintado no chão pode ser 6 ou 9, dependendo do lado em que se coloca o
observador. Para entender o interlocutor, precisamos indagar de onde ele olha o
mundo, quais são seus interesses concretos e o que é para ele o Brasil, tal
como fez o compositor.
“O Brasil é
o homem que tem sede ou quem vive da seca do sertão? Ou será que o Brasil dos
dois é o mesmo: o que vai é o que vem na contramão? O Brasil é um caboclo sem
dinheiro procurando um doutor nalgum lugar ou será o professor Darcy Ribeiro
que fugiu do hospital pra se tratar? O Brasil é o que tem talher de prata ou
aquele que só come com a mão? Ou será que o Brasil é o que não come: o Brasil
gordo da contradição? O Brasil é o que bate tambor de lata ou o que bate
carteira na estação? O Brasil é o lixo que consome ou tem nele o maná da
criação? Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho, que é o Brasil zero a zero e
campeão, ou o Brasil que parou pelo caminho: Zico, Sócrates, Júnior e Falcão? O
Brasil é uma foto do Betinho ou um vídeo da Favela Naval? São os Trens da
Alegria de Brasília ou os trens de subúrbio da Central? É o Brasil-globo de
Roberto Marinho ou o Brasil-bairro: Carlinhos-Candeal? É quem vê, do Vidigal, o
mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal? É o Brasil encharcado, palafita:
seco açude sangrado, chapadão? Ou será que é uma Avenida Paulista?” O que é o
Brasil e para quem?
Os
colonizadores europeus saíram pelo mundo roubando, mutilando, matando e
saqueando as riquezas que encontravam. Tudo era objeto de apropriação:
especiarias da Índia, pau-brasil, metais e pedras preciosas da África e do
continente americano, além das mulheres nativas tratadas como objeto passível
de apossamento. E tudo era feito a pretexto de difundir civilização para os
povos dos novos territórios encontrados. Sem a presença dos colonizadores e da
dita civilização trazida por eles, o povo Fulniô, que vivia nos arredores de
Garanhuns, não teria sido disperso, nem migrado em busca da sobrevivência, como
fez o pai de Garrincha.
A música de
Celso Viáfora conclui que “a gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho;
ninguém precisa consertar”. Tal como eles, temos as virtudes e valores que
espantam os que usam talher de prata. O professor Darcy Ribeiro dizia que a
crise da Educação no Brasil era um projeto da classe dominante. Sem Educação o
povo não olhará no espelho para se reconhecer, nem verá os seus iguais com os
quais pode se unir e transformar a realidade.
Mas isto
está mudando. O povo brasileiro, depois da promulgação da Constituição Cidadã
de 1988, sepultante do regime empresarial-militar que torturou, matou, roubou e
impediu - por meio da censura ou sigilos decretados – o conhecimento sobre o
que faziam, assumiu o papel de titular do seu destino e tal como Garrincha,
haverá sempre de driblar os que lhe querem retirar a qualidade de pessoa
humana, titular de múltiplos direitos: os direitos humanos em toda sua
extensão.
Publicado
originariamente no jornal O DIA, em 08/10/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/10/6501249-joao-batista-damasceno-a-cara-do-brasil.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário