sábado, 27 de janeiro de 2024

Autoritarismo patrimonialista-predatório e anarcocapitalismo

 

Nascemos indivíduos, seres singularizados, e pelo processo de socialização nos tornamos pessoas. Neste processo somos apresentados à linguagem, em suas diversas modalidades. Conhecemos as coisas com os nomes antes lhes atribuídos. O problema reside na necessidade de nominar, definir ou conceituar fenômenos novos. Aos fenômenos políticos se agregam as emoções e as expressões qualificadoras ou desqualificadoras. Eis a questão: como qualificar adequadamente o período no qual o Brasil mergulhou recentemente e que, ao lado do autoritarismo e desprezo à institucionalidade, cultuou a morte, desdenhou de um vírus letal, destruiu direitos sociais, agrediu as instituições judiciárias, ampliou a miséria e ameaçou o meio ambiente?

Um ministro do STF, numa reunião com estudantes, se referindo ao fenômeno autoritário, e não ao personagem, disse que a sociedade derrotou o bolsonarismo. O fenômeno reacionário no qual o Brasil andou mergulhado não pode ser qualificado pelo nome do personagem que foi a sua expressão. O fenômeno é maior que aquele que apenas foi colocado como marionete para expressar o que emergia das profundezas da nossa organização social e que reflete o que está acontecendo pelo mundo.

Há quem qualifique o fenômeno como fascismo. Mas tal vocábulo é pouco adequado para o que vivenciamos. Embora o fascismo tenha assumido feições diferentes nos distintos lugares onde aflorou, o que o Brasil viveu nos últimos anos não se ajusta às características daquele sistema político. O fascismo foi um modelo de organização social e política triunfante na Itália com Benito Mussolini em 1922. Caracterizava-se por uma ditadura baseada num partido único, concepção totalitária da sociedade, vedação do pluralismo político, organização da sociedade em corporações e forte viés nacionalista. O fascismo se opunha ao liberalismo e ao individualismo. Na Alemanha, o fascismo, com características próprias, foi qualificado como nazismo. Por injunções históricas ambos foram militaristas.

A direção do Estado brasileiro de 2018 a 2022 não foi compatível com as características do fascismo. Não pretendia organizar a sociedade. Ao contrário, parecia pretender a desorganização social, pois mais lucrativa aos garimpos, milícias, madeireiros e capital financeiro. Embora autoritária, não tinha uma doutrina que pudesse se impor como pensamento único. Não tinha bases organizacionais, tal como partido, associações ou sindicatos. Portanto, não era corporativista. Ainda que enrolados em bandeiras do Brasil e cantando o hino nacional não eram nacionalistas, pois na prática submetia a política brasileira à política dos EUA a ponto do presidente e seus filhos ostentarem vestes com as cores daquele país e baterem continência para a bandeira estrangeira. Diversamente do fascismo, que se opunha ao individualismo e liberalismo, e impunha uma visão única ou holística, o que vivenciamos foi a exaltação do individualismo predador das riquezas nacionais e socialmente produzidas, bem como destruidor dos direitos sociais.

Alguns elementos dos discursos fascistas e nazistas podem ser encontrados nas falas de alguns dos personagens que integraram o círculo do poder. Mas pouco tinham em comum com os objetivos daqueles regimes. Diversamente do que aqueles regimes almejaram, no Brasil tivemos apenas pretensões de destruir instituições, direitos e práticas sociais elevadas a valores constitucionais a partir de 1988. Peter Cohen, diretor do filme Arquitetura da Destruição, filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em 1938, para escapar da perseguição nazista, em seu documentário descreve os objetivos do regime que perseguiu seu pai e seu povo. Para fazer o filme, obra-prima do cinema mundial, ele estudou o nazismo durante sete anos. O documentário se inicia a partir de uma tese: o sonho nazista era criar, por meio da purificação étnica, um mundo mais harmonioso e belo. Esse desejo alemão vinha da concepção de que o mundo estava à beira do abismo e que era preciso destruir tudo o que o que fosse feio ou inadequado, inclusive pessoas. Os nazistas tomaram para si a responsabilidade por erradicar qualquer ameaça às suas pretensões. Era o discurso: "Purificada e preservada da decadência, uma nova Alemanha surgiria mais forte e muito mais bonita". O filme começa com uma frase: "O nazismo tinha o objetivo de embelezar o mundo!". Peter Cohen choca com suas primeiras declarações na abertura do filme, mas depois as explica. Ele começa falando sobre o objetivo dos nazistas e conclui demonstrando o quanto era intolerante e destrutivo com tudo e com todos que não se moldassem ao ideal daquele regime totalitário, razão pela qual se tornavam destinatários da eliminação, fosse arte, livros ou pessoas.

No Brasil não tivemos isto. Não podemos classificar como fascismo o que vivenciamos. Embora uma força destruidora tenha se apossado de algumas instituições, capaz de exterminar, aniquilar e destruir, não tinham os mesmos objetivos dos fascistas. O que emergiu das profundezas obscuras da sociedade brasileira foi o autoritarismo patrimonialista-predatório. Foi o anarcocapitalismo, desgarrado de qualquer regulamentação estatal, somente capaz de ampliar a riqueza de poucos e levar a maioria à miséria.



Nenhum comentário:

Postar um comentário