Na divisão do mundo entre as potências no século XIX,
a França inventou o termo "América Latina", pretendendo estender sua
influência sobre os povos de língua latina. Os EUA, em 1823, já haviam
proclamado o lema de James Monroe "América para os Americanos". Em
1814, o Reino Unido "comprou", da Holanda, a Guiana, que passou a ser
inglesa. Mas o pacto não definia a fronteira oeste do território. Os britânicos
designaram, em 1840, o explorador Robert Schomburgk para determinar o limite e
este definiu a fronteira da Guiana Inglesa, incorporando território que não era
possuído pelos "vendedores". A pilhagem incorporou quase 80 mil
quilômetros quadrados da Venezuela, área equivalente a duas vezes à do Estado
do Rio de Janeiro. A Venezuela, na época de sua independência, estabelecera que
sua fronteira se estendia até o rio Essequibo. Reclamando dois terços da
colônia britânica, em 1841, o governo venezuelano denunciou a incursão
britânica e solicitou ajuda aos EUA. Em 1850, a Inglaterra e a Venezuela ajustaram
que a área não seria ocupada até arbitragem. O presidente Cleveland apoiou a
Venezuela. Em 1895, o Congresso dos Estados Unidos propôs a criação de uma
comissão para estudar os limites territoriais. O Reino Unido se ocupava de
outros conflitos pelo mundo, especialmente na África do Sul, e aceitou a
mediação dos EUA. Em 1897, EUA, representando a Venezuela, e o Reino Unido
firmaram um tratado em Washington para submeter a controvérsia à arbitragem
internacional. Um árbitro russo foi incluído na comissão. O resultado saiu em
1899 a favor do Reino Unido, estabelecendo a "Linha Schomburgk" como
fronteira. A decisão é conhecida hoje como "Laudo Arbitral de Paris".
A mediação mostrou a força dos Estados Unidos na
América Latina, a supremacia da Doutrina Monroe e foi um ponto de ajuste nas
relações entre Inglaterra e EUA sobre a zona de influência que caberia àquele.
Os EUA cuidaram dos próprios interesses, desprezando completamente os
interesses dos venezuelanos.
Venezuela, embora insatisfeita, não contestou o
resultado. Mas na década de 1950 do século XX, ficou provado o conluio entre os
delegados britânicos e o juiz russo no tribunal em Paris, cujo voto foi
decisivo contra a Venezuela. Assim, em 1962, ante as revelações trazidas à luz,
a Venezuela denunciou o acordo celebrado e declarou nula e sem efeito a decisão
arbitral e voltou a reivindicar o território de Essequibo perante a Organização
das Nações Unidas (ONU).
Em 1966, pelo Acordo de Genebra, foi firmado um
Tratado entre Reino Unido e Venezuela pelo qual ficou reconhecida a
legitimidade da reivindicação venezuelana sobre a Guiana Essequiba. A Guiana
Inglesa, hoje Guiana, fez parte do Acordo e se tornou independente meses
depois, ainda em 1966. Tal acordo está registrado na Secretaria Geral da ONU.
Não se discutiu a autoridade do governo da Guiana sobre a área, mas se
estabeleceu salva-guarda dos direitos de soberania venezuelana sobre a zona.
Pelo Acordo de Genebra, a Venezuela reconhece como nulo o Laudo Arbitral de
Paris de 1899 e a Guiana reconheceu a reivindicação e a inconformidade
venezuelana, sem que tal reconhecimento significasse imediata invalidade
daquela decisão.
No Acordo, estabeleceu-se a criação de uma Comissão
Mista de Limites que, num prazo de quatro anos, decidiria o problema limítrofe.
Mas, vencido este prazo, foi subscrito em 1970 o Protocolo de Porto Espanha,
entre Guiana e Venezuela, pelo qual se "congelou", por 12 anos, parte
do Acordo de Genebra. Em 1982, a Venezuela decidiu retomar a validade das
deliberações do Acordo de Genebra.
A Guiana e os EUA ignoram o Acordo de Genebra e a
gigante de energia estadunidense ExxonMobil iniciou a exploração de petróleo na
área, que deveria permanecer à espera da solução do conflito. Mas os interesses
petrolíferos dos EUA são contrários à soberania da Venezuela.
O plebiscito realizado na Venezuela é apenas
mobilização interna. Não tem efeito externo. O governo venezuelano não ocupará
militarmente o Essequibo, pois sabe do tratado de defesa da Guiana com o Reino
Unido, além da base militar estadunidense, a 1ª Brigada de Assistência e
Segurança / SFAB, que já se reuniu com a Força de Defesa da Guiana (FDG) em
novembro passado. A reunião foi um recado dos EUA para a Venezuela. Além disso,
os EUA têm as bases de Aruba e do Panamá. O desajuste diplomático que já se arrasta
por dois séculos se estenderá, mas não há risco de conflito militar. A
Constituição brasileira dispõe que um dos princípios que regem a República nas
suas relações internacionais é a solução pacífica dos conflitos. O Brasil não
deve se ocupar militarmente da questão, embora a direita militar pretenda sair
do bueiro, assumir protagonismo, reassumir papel político, ampliar o orçamento
para compras militares, mostrar seu "valor" e voltar ao poder, com
golpe ou manipulação de "patriotas inadvertidos". A questão do
Essequibo será resolvida com o tempo. Mas não agora. Enquanto a ExxonMobil não
esgotar a indevida exploração do petróleo da região, os EUA não retirarão o
apoio da Guiana. E Maduro não repetirá o que fez Saddam Hussein no Kuwait.
Publicado orginariamente no jornal O DIA, pag. 12, em 30/12/2023. Link https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/12/6766259-o-conflito-venezuela-guiana-por-essequibo-e-o-imperialismo.html
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