Em visita ao cineasta Silvio Tendler entabulamos uma conversa
sobre o período da transição da ditadura empresarial-militar para a
democratização do país, sobre a eleição a de 1982, que pela primeira vez elegia
governadores desde 1965, e sobre a eleição de 1986, que elegeu a Assembleia
Nacional Constituinte da qual decorreu a Constituição de 1988. Em 1984 Silvio
lançara o documentário ‘Jango’, sobre o Governo João Goulart, vice-presidente
do Brasil nos governos JK e Jânio Quadros e presidente de 1961 a 1964. O filme
‘Jango’ tinha o sugestivo slogan: "Como, quando e porque se derruba um
presidente" e levou mais de meio milhão de espectadores às salas de
cinema, tornando-se o sexto documentário de maior bilheteria da história do
cinema brasileiro. O quarto filme de maior bilheteria também foi dirigido pelo
Sílvio e foi ‘Anos JK”, que levou 800 mil pessoas aos cinemas.
Rememorando o período da ditadura empresarial-militar,
falamos da censura, das atrocidades praticadas contra os que ousavam pensar um
Brasil soberano, sobre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro. Inadvertidamente falei do
discurso de Darcy Ribeiro, que conheci, mas com quem não convivi, diante do
caixão do emblemático cineasta Glauber Rocha, em agosto de 1981. Trata-se de um
dos discursos mais impactantes que já ouvi. Darcy, chorando, se despediu assim
do amigo:
“...sua breve vida, sem pele, com a carne exposta, capaz de
gozo é certo, não é Glauber? Mas mais capaz de dor, da nossa dor. Uma vez, eu
não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando,
chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender. Ninguém entendia que
Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O
Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava este país que não deu
certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a
mediocridade, a tortura que ele não suportava... Chorava, chorava, chorava! Os
símbolos de Glauber são isso. É um lamento, é um grito, é um berro. Essa é a
herança que fica de Glauber, fica de Glauber pra nós a herança de sua
indignação. Ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo tal qual é,
assim. Indignado, porque mais que nós, também Glauber podia ver o mundo que
podia ser! Que vai ser Glauber! Que há de ser! Glauber viveu entre a esperança
e o desespero, como um pêndulo louco”.
Silvio se voltou para mim e exclamou: “Fui eu quem filmou
isso!” Claro que foi. Está no seu documentário ‘Glauber, o filme: Labirinto do
Brasil’, que faz parte de um conjunto denominado ‘Quatro Baianos Porretas’,
sobre Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha e Milton Santos. Todos –
tal como Sílvio Tendler - preocupados com o Brasil, com o povo brasileiro, com
as liberdades e com a fome que sempre ameaçou os lares dos mais pobres.
O último filme que o Silvio Tendler produziu e dirigiu foi o
documentário exibido durante a mostra de cinema do Rio de Janeiro, no mês
passado, sobre a trajetória de Leonel Brizola. O documentário não esgota as
facetas daquele líder popular e de seus projetos. Cada assunto abordado talvez
merecesse um filme, suficiente para transformar os muitos feitos de Brizola
numa série.
O documentário intitulado ‘Brizola, Anotações Para Uma
História’ é uma narrativa do seu nascimento, em 1922, até sua morte, em 2004,
com suas muitas causas abraçadas e lutas enfrentadas. Nas anotações para a
história consta a fábrica de escolas, denominadas ‘brizoletas’, custeadas por
bônus adquiridos pela população. De origem pobre e órfão, Brizola sabia a
importância da educação para interromper o ciclo de pobreza ou empobrecimento.
De tudo o que o Brizola fez tem um pouco no documentário. Um momento épico é
aquele no qual os ‘gorilas fardados’ tentaram impedir a posse de Jango em 1961.
Brizola empunhou uma metralhadora, formou a Rede da Legalidade conclamando o
povo à resistência, venceu e empossou Jango na presidência. Assim, impediu que
os militares entreguistas consumassem o golpe que tramavam desde quando levaram
Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954 e o adiou para 1º de abril de
1964. Sílvio tudo documentou.
Inexiste “se” na história, pois esta é o que efetivamente
ocorreu. Mas se os militares que levaram Vargas ao suicídio, que tentaram
impedir a posse de JK, que por duas vezes tentaram golpe contra este e que
tentaram impedir a posse de Jango tivessem sido punidos e excluídos das Forças
Armadas e não anistiados, teríamos história diferente. O golpe
empresarial-militar naturalizou a tortura nos quartéis, a violência e a
criminalidade organizada em forma de esquadrões da morte, grupos de extermínio
e justiceiros, legando-nos as atuais milícias. Patrícia Acioli e Marielle
Franco são parte do que faz o terrorismo de Estado. Os que se opõem à barbárie
correm risco de eliminação física ou eliminação política, tal como o risco que
corre o outro Glauber indignado: o deputado Glauber Braga, sujeito à cassação
por seus pares que com ele se incompatibilizam. A democracia é o poder do povo;
é a razão da maioria, com respeito à minoria. Quando a maioria circunstancial
tenta eliminar a minoria que dela diverge não é democracia; é fascismo.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/11/2024,
pag. 12. Disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/11/6945474-joao-batista-damasceno-de-glauber-a-silvio-tendler-arte-e-resistencia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário