sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Filhotes da ditadura, o fim do ciclo

 

O golpe militar proclamador da República propiciou que a classe fardada passasse a se arvorar tutora das instituições republicanas e nelas interviessem quando julgasse conveniente. Em todas as intervenções, tentadas ou consumadas, os militares atuaram no interesse das próprias corporações, na defesa da classe dominante ou de interesses estrangeiros, ainda que sob outras justificativas.

Pela Constituição de 1891 caberia ao STF dizer o direito com independência, mesmo quando os conflitos envolvessem matéria política. Muitas das vezes o STF abdicou do seu dever de dizer o direito sob o fundamento da “objeção do caso político”. Ao judiciário cabe dizer o Direito com base no que for alegado e provado, mesmo que envolva interesses políticos. João Mangabeira, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento de Rui Barbosa, disse que o Supremo foi quem mais falhou na República, pois não exerceu os poderes que lhe competiam, deixando o espaço ser ocupado por quem não deveria se imiscuir na ordem interna.

Os militares se pretenderam eminências pardas na República e já no seu nascedouro tentaram um golpe contra o terceiro presidente civil, Rodrigues Alves, em 1904. Os golpistas valeram-se da insuflada Revolta da Vacina. Todo golpe tem o anteparo de alguma inquietação popular provocada, incentivada ou espontânea. Dezenas de mortos e centenas de feridos foi o resultado da tentativa frustrada. A pretexto de pacificar a sociedade, os golpistas foram anistiados.

Em 1922 jovens tenentes atentaram contra o Estado no governo de Epitácio Pessoa. O evento dos 18 do Forte de Copacabana reuniu golpistas de diversas matizes que permaneceram unidos por décadas até a consumação do golpe de 1964. Arthur Bernardes, um presidente nacionalista, governou sob ameaça de golpe e com estado de sítio de 1922 a 1926. O Clube Militar estava ativo na atividade golpista, difundindo documentos falsos. O triunfo da Revolução de 30 implicou anistia a todos e promoção dos golpistas. Getúlio Vargas tomou posse em 03 de novembro de 1930, mas a deposição do presidente Washington Luís fora feita em 24 de outubro. O golpe de 1930 destituiu o presidente em exercício e impediu a posse do presidente eleito.

Em 1937 mais uma falsidade documental contribuiu para o golpe. O Capitão Olímpio Mourão Filho elaborou um documento falso e o levou ao comando das Forças Armadas. Com base nele foi instituído o Estado Novo. Quem apoiou o presidente Vargas no golpe de 1937 o destituiu em 1945. A partir de então o Estado estava sequestrado pelas corporações fardadas.

Em fevereiro de 1954 foi lançado o Manifesto dos Coronéis contra o aumento do salário-mínimo em 100%. Com isso derrubaram o Ministro do Trabalho João Goulart. Não foram punidos. Em agosto de 1954, militares da Aeronáutica a serviço da UDN e vinculados a interesses escusos, levaram o presidente Vargas ao suicídio. Vargas morreu, mas deixou a carta-testamento denunciando os interesses que o destituíram da presidência.

Em 1955, um coronel lotado na ESG discursou na presença do Ministro do Exército, Marechal Lott, dizendo-se contrário à posse de Juscelino Kubitscheck e do vice João Goulart. O presidente Café Filho se licenciou para suposto tratamento de saúde e o presidente da Câmara assumiu, ratificando o posicionamento do golpista coronel Mamede, demitindo o Marechal Lott do comando do Exército. Lott deu um contragolpe preventivo, destituiu o presidente interino, impediu o retorno de Café Filho, e deu posse a JK em 31 de janeiro de 1956. O golpe preventivo foi submetido ao STF e o ministro Nelson Hungria disse que não deferiria habeas corpus contra o Exército porque as espadas dos militares eram verdadeiras e a dele mero adereço de gesso no teto ou pinturas nas paredes. O voto do ministro está acessível no site do STF.

Durante seu mandato JK sofreu duas tentativas de golpe. Aragarças e Jacareacanga, além de ato de indisciplina de oficiais da Aeronáutica. A pretexto da pacificação todos foram anistiados. Manifesto chegou a ser divulgado pelos golpistas no sentido de que as feridas deveriam ser cicatrizadas e não mantidas expostas. Em 1961, ante a renúncia do presidente Jânio Quadros, a elite militar tentou impedir a posse do vice-presidente João Goulart. A posse foi garantida pela Campanha da Legalidade liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola.
Em 01 de abril de 1964 todos os que haviam sido anistiados estavam unidos no golpe-empresarial militar que infelicitou o povo brasileiro por 21 anos. Agora general, Olímpio Mourão Filho, golpista de 1937, foi quem partiu de Juiz de Fora em 31 de março dando início ao golpe, inaugurando um período sombrio de torturas, assassinatos, desaparecimentos, roubos, estupros e outras perversidades, além de cercear um projeto de soberania nacional e vender o futuro do país ao capital internacional.

Com a morte do general-presidente Costa e Silva, o vice Pedro Aleixo foi impedido de assumir. Um golpe interno afastou o general Albuquerque Lima da sucessão, levando o general Médici à presidência. Os gorilas da Linha Dura reinaram, escancarando a ditadura. Em 1977 o general Sylvio Frota, que tinha o então coronel Heleno, agora general condenado pelo STF, como ajudante de ordens, tentou um golpe no general-presidente Geisel. No início dos anos 80 militares colocavam bombas pelo país a fim de causar clamor popular e darem um golpe contra a redemocratização. Mas uma bomba explodiu no colo dos terroristas fardados, durante um show para jovens no Riocentro. Todos os militares que tentaram golpes e foram anistiados estiveram envolvidos em golpes, tentados ou consumados, posteriores. Isto porque os criminosos soltos costumam voltar aos locais dos seus crimes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/09/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/09/7132110-joao-batista-damasceno-filhotes-da-ditadura-o-fim-do-ciclo.html


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