No ano 399 a.C. o
filósofo grego Sócrates foi acusado de não crer nos deuses da cidade,
introduzir culto a novas divindades e de corromper a juventude ateniense,
incentivando-a a questionar as tradições e autoridades. Foi acusado de ameaça à
ordem política e social. A nova divindade sobre a qual Sócrates falava aos
jovens seria uma voz ou sinal interior que os proibia de fazer certas coisas,
mas não lhes dizia o que fazer, tal como a consciência ética que nos impede de
certos comportamentos. A condenação à morte foi uma forma política de silenciar
sua filosofia crítica, que desafiava as crenças e estruturas de poder.
Do julgamento de Sócrates
podemos tirar ao menos duas conclusões: quando o destino da minoria fica
entregue à sanha da maioria instala-se a tirania e aqueles desafiam as
estruturas consolidadas correm o risco de linchamento. Platão, discípulo de
Sócrates, dedicou sua vida a pensar a questão da justiça, diante da injustiça
que presenciara.
O pensador alemão Hans
Kelsen disse que, dentre os que se ocuparam da questão da justiça, duas cabeças
alçam-se muito acima de todas as demais: Platão e Cristo. Este dedicou sua vida
à justiça e aquele dedicou sua obra. Quatro anos antes da condenação de Cristo,
seu primo, João Batista, fora decapitado porque denunciava as iniquidades do
rei da Judeia.
Tanto no julgamento de
Sócrates quando no de Cristo a maioria não se importou com a inocência dos
acusados. Dentre os 500 juízes que compunham o Conselho de Sentença de Atenas,
poucos foram os que votaram pela absolvição do filósofo. No julgamento de Cristo
não se tem notícia de voto em seu favor. A literatura religiosa registra que o
povo clamava por Barrabás, incentivado por um sacerdote, Caifás, que chegou a
rasgar as próprias vestes para incentivar a multidão a condenar o inocente. Há
sempre um líder religioso na defesa das injustiças sociais.
Assisti aos julgamentos
de cassação dos deputados Glauber Braga e Carla Zambelli. Os julgamentos podem
se realizar sob o rito e tipo ideal, com honesta narrativa dos fatos, sua
reconstituição e aplicação racional da lei prevista para o caso concreto. Mas
também podem ser enviesados para atender a interesses escusos. Nestes,
narrativas substituem a reconstituição dos fatos e o Direito pode merecer
“piruetas interpretativas” para distorcer o resultado. Mas há julgamentos em
que sequer há o requinte de substituição dos fatos por versões ou de
“interpretação conforme do Direito” para prejudicar o acusado. São os
julgamentos orientados pela cólera. Não são julgamentos. São vinganças por quem
detenha o poder momentaneamente. Foi o que assisti no julgamento do deputado
Glauber Braga.
O deputado Glauber Braga
vem se notabilizando por denunciar a apropriação do orçamento público em forma
de emendas parlamentares. Cerca de 50 bilhões de reais do orçamento público vem
sendo apropriado anualmente por parlamentares com destinação a prefeituras de
suas bases eleitorais, onde são convertidos, também, em espetáculos sertanejos
superfaturados ou outros gastos dos quais lhes possam resultar financiamentos
de campanhas, compra de voto, pagamentos a cabos eleitorais e ao próprio
enriquecimento. Para se ter uma ideia do montante do orçamento consumido em
emendas parlamentares, imaginemos alguém que gaste R$ 1,00 por segundo. Tal
pessoa consumiria um salário-mínimo em 25 minutos. Mas levaria 12 dias para
consumir um milhão e 32 anos para consumir um bilhão. Para consumir 50 bilhões
seriam precisos 1.600 anos. A verba destinada aos banqueiros e ao agronegócio
ainda é maior. Por denunciar isto é que o deputado Glauber Braga irritou seus
pares.
A acusação que lhe
fizeram, capaz de anular os mais de 70.000 votos de cidadãos fluminenses, não
poderia ser mais espúria. Acusaram-lhe de dar um chute na bunda de um
provocador que injuriava sua mãe, que se encontrava no CTI e que morreu dias
após o evento. Não tendo improbidade para fundamentar uma acusação idônea
arranjaram-lhe um pretexto. E o presidente da Câmara marcou a data da cassação
para o mesmo dia em que deveria ser cassada a deputada Carla Zambelli, presa na
Itália.
O julgamento caminhava
para a cassação do deputado Glauber Braga. Sua esposa, a deputada Sâmia Bomfim,
o expressou de forma a emocionar até quem assistia à sessão. O próprio acusado
não se defendeu. Ao contrário. Manteve a altivez e repetiu que sua participação
no parlamento não seria para se acomodar aos vícios. Mas, aproximando-se o
final da sessão, alguém que usa o cérebro para pensar e não o fígado, sugeriu a
substituição da pena de cassação pela pena de suspensão pelo prazo de seis
meses, o que foi acolhido até pelos seus companheiros. O Parlamento estaria por
demais exposto se consumasse a iniquidade. A Bancada BBB (boi, bala e Bíblia)
manteve a proposta de linchamento. Mas perdeu. Pelo exercício de legítima
defesa da honra da mãe, o deputado Glauber Braga foi condenado à suspensão do
mandato por seis meses. Na mesma noite foi votada a cassação da deputada Carla
Zambelli. O número mínimo de votos pela cassação não foi atingido. O resultado
dos julgamentos foi: um deputado popular a quem não se pode acusar de ato de
improbidade foi suspenso por seis meses e uma deputada condenada criminalmente
por decisão transitada em julgado, presa no exterior, inelegível, com os
direitos políticos suspensos em razão da condenação, permanece detentora de
mandato parlamentar.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/12/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/12/7178908-joao-batista-damasceno-os-julgamentos-de-socrates-de-cristo-e-de-glauber-braga.html
