domingo, 23 de outubro de 2022

Eu conheci Tenório Cavalcanti, o ex-deputado que atirava em polícia

 

Eu conheci Tenório Cavalcanti em 1982. Eu tinha 19 anos. Ele morava no Parque São José em Duque de Caxias, embora em tempos pretéritos tivesse construído na cidade uma casa projetada pelo arquiteto Sérgio Bernardes, ainda existente e chamada ‘Fortaleza’.

Tenório Cavalcanti fazia campanha para o candidato Moreira Franco do PDS (ex-ARENA), partido que apoiava a ditadura empresarial-militar.

Quando se aproximou de nós, um grupo de garotos, educadamente nos cumprimentou e logo perguntou em quem votaríamos naquela eleição. Um colega disse que votaria em Darcy Ribeiro. Ele retrucou que Darcy não era candidato. Mas meu colega insistiu: - É sim. É o candidato a vice do Brizola. Tenório fez cara de desgosto. Um outro colega que não tirava a mesma calça jeans e a camiseta branca (quase amarela de tão encardida), óculos de aro, barba rala e cabelo encaracolado e empoeirado disse que votaria em Lysâneas Maciel. Tenório fez um movimento com a sobrancelha e indagou; - Quem é? Claro que sabia quem era, mas quis retirar a importância do candidato. Enfim se virou para nós, que éramos a maioria que lotava uma Kombi. Respondemos que votaríamos em Miro Teixeira, candidato apoiado pelos partidos comunistas. Ele antevendo nossos posicionamentos ideológicos retrucou: - Não sei como os comunistas apoiam o candidato do Chagas Freitas!

Ele explicou as razões pelas quais apoiava Moreira Franco. Minha língua coçou para dizer a ele que não entendia como ele apoiava o genro do arqui-inimigo Amaral Peixoto, candidato do partido do regime que lhe cassara os direitos políticos. Na toca da onça prevaleceu o bom senso que me faltou muitas vezes e daquela vez fiquei calado.

Tenório Cavalcanti tinha 76 anos naquela oportunidade. Estava muito envelhecido, mas intelectualmente muito vivo. Perguntou se estudávamos e eu disse que faria vestibular para Direito. Ele abriu o semblante aprovando. Disse que é o melhor curso.

Eu sabia alguma das razões pelas quais ele apoiava o candidato da ditadura e da rivalidade com Chagas Freitas, dono dos jornais O DIA e A NOTÍCIA. Tenório também era dono de jornal, A LUTA DEMOCRÁTICA. E o então general-presidente Figueiredo o havia visitado em Duque de Caxias e nomeado seu genro Hydekel de Freitas prefeito da cidade. Os prefeitos das capitais, estâncias hidrominerais e áreas de segurança eram nomeados e não eleitos.

A visita do Presidente da República a um chefe político foi considerada uma revisitação do coronelismo, que vigeu durante a Primeira República. Outras ações semelhantes reacenderam o tema e em 1980 o autor do livro ‘Coronelismo, Enxada e Voto’, ex-ministro do STF Victor Nunes Leal, cassado após a edição do AI-5, escrevera um artigo lido na abertura dos cursos de doutorado do IUPERJ em 1980 intitulado ‘O Coronelismo e o Coronelismo de cada um’. O artigo foi publicado na Revista Dados daquele instituto no volume 23, páginas 11 a 14.

Para o ex-ministro Victor Nunes Leal o pacto que se estabelecia entre o presidente da República e os poderes locais visando às eleições de 1982, depois do adiamento das eleições de 1980, não se confundia com o fenômeno chamado Coronelismo, pacto de compromisso entre os poderes central e locais vigente somente na Primeira República.

Tenório Cavalcanti fez história na Baixada Fluminense. Chegou ao Rio de Janeiro aos 20 anos, em 1926, e logo ganhou fama de bom pistoleiro e se agregou a um político iguaçuano, originário de Itaguaí, chamado Getúlio Moura. Quando Duque de Caxias se emancipou em 1943 o território virou ‘Terra de Tenório’. Getúlio Moura foi o chefe de gabinete do Presidente da República Ranieri Mazzilli, depois do golpe empresarial-militar de 1964, no período de 02 a 15 de abril.

Em 1947 Tenório Cavalcanti fora eleito deputado estadual pela UDN com 2/3 dos votos de Duque de Caxias. Em várias ocasiões esteve envolvido em denúncias de assassinatos. Na década de 30, pelo assassinato num trem, do Delegado Joaquim Façanha (Peçanha) chegou a ser preso, mas solto refugou-se em Alagoas e somente voltou a Duque de Caxias quando já não mais corria o risco de prisão.

Em 1979 assumiu, por meio do jornal A Luta Democrática, a defesa de Mariel Mariscot, um dos ‘Homens de Ouro da Polícia’, assassinado em 1981 num tempo em que policiais e ex-policiais, bem como membros das Forças Armadas, descobriram que poderiam lucrar muito mais em negócios ilícitos.

Em 1953 fora acusado da morte do Delegado Albino Martins de Souza Imparato, o que lhe rendeu a ameaça de prisão em sua ‘Fortaleza’, tendo o apoio da cúpula da UDN. Apesar da prisão decretada em várias comarcas permaneceu livre. Desde que entrara para vida político-partidária, as aspirações e os planos políticos de Tenório Cavalcanti chocavam-se violentamente com os de Amaral Peixoto, genro do Presidente Getúlio Vargas e sogro de ex-governador Moreira Franco. Convocado para atuar em Duque de Caxias, por interveniência do Presidente Getúlio Vargas, logo o delegado paulista Albino Imparato se tornaria desafeto de Tenório Cavalcanti. Com a chegada de Albino Imparato, O Homem da Capa Preta e seus aliados foram perseguidos de forma implacável. Albino e sua família foram alvo de ameaças por parte de Tenório Cavalcanti. O delegado reagiu, a casa de Tenório Cavalcanti foi metralhada, seus familiares ameaçados e alguns de seus capangas assassinados.

No dia 28 de agosto de 1953, o delegado Imparato foi metralhado em frente a sua residência, no Centro de Duque de Caxias, na presença de sua mãe. O crime despertou a atenção nacional. As investigações comprovaram a participação direta de Tenório Cavalcanti no crime. Um mandado de busca e apreensão foi expedido. As duas residências dO Homem da Capa Preta – a Fortaleza de Duque de Caxias e o apartamento de Copacabana – foram cercadas por policiais fortemente armados.

Tenório Cavalcanti não reagiu violentamente à chegada da polícia. Apesar do despotismo e truculência com que atuava não disparou um tiro. Ao contrário, negociou para que apenas um homem entrasse visando à revista, na Fortaleza, determinada pela ordem judicial. Quando um único delegado entrou, Tenório Cavalcanti o tomou como refém. A partir daí ameaçava matar o policial se tentassem entrar em sua casa. Políticos de peso do cenário nacional, dentre os quais a direção da UDN, rumaram para Duque de Caxias a fim de proteger a vida do delegado e do deputado pistoleiro. Com a intervenção deles, o cerco foi desfeito e a casa não foi revistada. Intervieram Nereu Ramos, presidente da Câmara, Osvaldo Aranha, ex-ministro da Fazenda e primeiro presidente da ONU e Afonso Arinos, então deputado e futuro senador.

A aliança de Afonso Arinos com Tenório Cavalcanti se manteve ao longo dos anos. Em 1986 Afonso Arinos foi eleito Senador Constituinte. Seu primeiro suplente era Hydekel de Freitas. Tenório faleceu no ano seguinte, em 1987. Afonso Arinos faleceu em 1990. Hydekel de Freitas, foi senador por quatro anos, de 1990 a 1994 e morreu no ano passado, em 11/06/2021.

A história do Brasil é uma história com violência. Mas a sociedade brasileira mudou muito. Embora assegure a legítima defesa, porque ninguém tem o dever de morrer sem opor resistência, não mais legitima a força como meio para exercício do poder político. Autoridade tem quem convence e não quem vence pelo uso da força.


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