Desconsiderando a institucionalidade própria do Estado de Direito
setores inconformados com a derrota eleitoral da última eleição presidencial
acampam em frente aos quarteis pedindo intervenção federal. A exemplo de
dezenas de outras intervenções na ordem interna, promovidas pelos militares
desde a Proclamação da República, o que setores antidemocráticos desejam é um
golpe de estado, de impossível ocorrência no presente momento.
Em 11 de novembro de 1955, o Marechal Henrique Lott promoveu um
inusitado golpe para evitar um golpe contra o presidente eleito Juscelino
Kubistchek e o vice João Goulart. O imbróglio da Novembrada é surreal. O golpe
evitado pelo Marechal Lott, insuflado pelas “vivandeiras de quarteis”, foi
adiado para 1964. Mas não eram as vivandeiras caminhoneiros ou filhas
“solteiras” de militares preocupadas com suas pensões vitalícias transmissíveis
às filhas e netas. Dentre elas estava o ignóbil coronel Mamede, orador de
velório.
Legalista e conhecedor do seu papel no tabuleiro da democracia e da
República, o Marechal Lott entregou o cargo ao senador Nereu Ramos, que
decretou estado de sítio “para impedir o rompimento com a legalidade e
instauração de uma ditadura, bem como para a manutenção dos quadros
constitucionais vigentes”. Foi um golpe para manter a legalidade. Mas o
marechal legalista pagou por isso. Quando faleceu em 1984, no estertor da
ditadura empresarial-militar, negaram-lhe as honras militares devidas.
Em nenhum momento de nossa história republicana encontraremos na ordem
legal a possibilidade de intervenção militar, salvo na vigência do AI-5, o que
não impediu dezenas de intervenções militares.
A Constituição, em seu Art. 34, prevê a possibilidade de intervenção
federal. A regra é da não intervenção, mas excepcionalmente pode a União
intervir nos estados, nos seguintes casos: manter a integridade nacional;
repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; pôr termo
a grave comprometimento da ordem pública; garantir o livre exercício de
qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; reorganizar as finanças da
unidade da Federação que suspender o pagamento da dívida fundada por mais de
dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior ou deixar de entregar aos
Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos
estabelecidos em lei; prover a execução de lei federal, ordem ou decisão
judicial; assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da
pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração
pública, direta e indireta, bem como aplicação do mínimo exigido da receita
resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências,
na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de
Saúde.
A única possiblidade de intervenção federal é nos estados, nos casos
acima, e nos municípios dos territórios caso voltem a existir. Inexiste a
possibilidade de intervenção federal em órgão federal. Seria um contrassenso.
Só um aloprado em surto psicótico poderia conceber a intervenção de uma esfera
federativa nela mesma. Tampouco existe a possibilidade de intervenção de um
Poder em outro. A Constituição dispõe que os Poderes são harmônicos e
independentes. A harmonia decorre do desempenho de cada qual das suas
respectivas competências e a independência decorre da desnecessidade de
autorização de outro Poder para o funcionamento de qualquer deles.
O Art. 142 da Constituição, tão aclamado pelos golpistas, dispõe que as
Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente
da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A
requisição das Forças Armadas somente pode ocorrer por requisição de quaisquer
dos Poderes da República para os fins previstos na Constituição.
As guardas municipais podem atuar nos limites determinados pelas leis municipais
que lhe confiram e delimitem as atribuições. Os agentes patrimoniais municipais
não podem intervir nos poderes locais. As polícias estaduais idem em relação
aos governadores. Os agentes do sistema de segurança são funcionários
submetidos à chefia dos respectivos poderes constitucionais a que estejam
subordinados. De outro modo teríamos situação similar a do rabo que abana o
cachorro.
Se os chefes de poder cometerem crime de responsabilidade podem
responder por eles. Mas, perante os órgãos institucionais que a Constituição
outorga poderes para o processamento e julgamento. Até os ministros do STF
podem responder por crime de responsabilidade, se o cometerem. Mas perante o
Senado Federal. Nunca por uma sentinela com arroubos de autoridade.
O que se conclama na porta dos quarteis são crimes contra o Estado
Democrático de Direito e contra as instituições democráticas, assim definidos
em lei.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/11/2022, pag 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/11/6525302-joao-batista-damasceno-intervencao-federal-intervencao-militar-e-golpe.html
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