segunda-feira, 16 de setembro de 2024

BEIJO ROUBADO, IMPORTUNAÇÃO E ASSÉDIO SEXUAL

 

Eu tinha apenas seis anos quando me matriculei no pré-primário. Foi antes da edição da Lei 5692/71, editada pelo General-presidente Emílio Garrastazu Médici e seu ministro da Educação Jarbas Passarinho. Eu fora para a escola com algumas noções ensinadas por minha mãe. Já conhecia o alfabeto e distinguia algumas sílabas.


Fiquei apaixonado pela professora. Uma linda mulher que naquele ano de 1969 usava uns vestidos tubinho, sem mangas, com meio palmo acima do joelho. Lindos joelhos e começo de coxa. E os braços? Inácio, no conto “Uns braços”, de Machado de Assis, só os via de D. Severina.


Eu via braços e parte da perna. Machado escreveu no conto que “há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam”. Mas a falta de qualquer possibilidade de correspondência logo me levou ao desencanto com a professora. Afinal, eu tinha apenas seis anos e não quinze como o personagem machadiano.


No ano seguinte, primeiro ano do primário, havia na sala uma menina muito bonita e boa aluna, como eu também o era. Seu nome, Maria José. As carteiras eram duplas e eu me sentava na primeira carteira da fileira central, de frente para o quadro. No meio do ano o coleguinha que se sentava ao meu lado se mudou, pois seu pai morrera. Na falta do meu colega, Maria José passou a se sentar ao meu lado. Aquele semestre foi de encanto.


Eu estava apaixonado novamente. No penúltimo mês do ano fiz aniversário e ela me deu um lápis de presente. Um lápis que tinha borracha no topo. Maria José e  eu éramos um chamego só. No final do ano a professora pediu que escrevêssemos alguma coisa para um outro colega da sala. Aprendemos naquele exercício que podíamos nos comunicar pela língua escrita. Escrevi uma cartinha para a Maria José. Falei do quanto ela era especial e do quanto gostava dela.


A professora recolheu as cartas, levou para casa, as corrigiu e na aula seguinte, tal como se fosse funcionária dos Correios, entregou a carta a cada destinatário. Quando entregou minha carta à Maria José, a professora olhou para mim e esboçou um sorriso. Aquele “namoro” estava aprovado até pela professora! Pensei. Cada destinatário foi chamado a ler o que recebera e Maria José o fez, com muita timidez. Depois, sentada ao meu lado, me disse algo assim: “Você não deveria ter escrito isto. Agora todo mundo está sabendo”.


Ao mesmo tempo em que acolhia a repreensão pela indiscrição, estava em êxtase. Maria José assumira que estava namorando comigo. Nós nos falávamos baixinho, no ouvido do outro. Era delicioso sentir, no ouvido, o sopro com palavras que saíam da boca de Maria José. Eu também falava no ouvidinho dela. Um dia, depois de lhe falar alguma coisa, dei um passo em falso. Minha boca que deveria ter se limitado a se aproximar do ouvido de Maria José, lhe estalou um beijo no rosto. Ela ficou vermelha e fechou a cara. Uns colegas começaram a zombar de nós: “Estão namorando! Estão namorando!”. Hoje seria ‘bullying’. O beijo não fora consentido; fora roubado. Esta expressão era usada naquele tempo.


Depois da aula e de ir à sua casa, Maria José atravessou a praça, chegou à minha casa e contou para minha mãe o que eu fizera. E foi embora. Sentada numa máquina de costura da marca Singer minha mãe me chamou e pediu explicação. Além de ter exposto Maria José perante a turma numa carta contendo assunto que deveria ser íntimo e sigiloso, ter-nos exposto perante os colegas que faziam ‘bullying’, dizendo que estávamos namorando, ainda tive que expor, para minha mãe, meus sentimentos e a grosseria que cometera. Mas o fiz. A cara de minha mãe não era de aprovação. Mas também não continha censura. Se não havia orgulho pelo comportamento indevido havia respeito pelo sentimento que o filho expressava e demonstrava ser capaz, porque amar é uma aptidão que se adquire ao ser amado. Nem todo mundo aprendeu a fazê-lo e por isso o mundo está a cada dia mais violento.


Acho que minha mãe sabia o que era amor. Ela apenas me explicou que não se rouba beijo e que isto pode ser ofensivo às meninas. Minha mãe me disse que o corpo de uma pessoa é dela e que não pode ser invadido. Disse que eu era apenas uma criança e que ao crescer saberia quando as meninas querem o que os rapazes também querem. E só quando os dois adultos querem, este tipo de coisa pode acontecer. Meu desejo de ser adulto não era para dirigir ou poder viajar sozinho, mas vivenciar o querer recíproco. Minha mãe mandou-me pedir desculpas à Maria José, o que fiz na aula seguinte. Mas ela nunca mais quis intimidade comigo. Nunca mais cochichou no meu ouvido, nem eu no dela. Passei a ser tratado como um garoto abusado que a expôs por duas vezes. Eu avançara o sinal e ela se assustou comigo. E não me perdoou.


Carlos Drummond de Andrade no poema “Lira do amor romântico Ou a eterna repetição” escreveu “Atirei um limão n’água e caiu enviesado. Ouvi um peixe dizer: Melhor é o beijo roubado”. Somente mais tarde Drummond, em “Boca de Luar” escreveu: “E que gosto pode ter beijo roubado, se até o que não é roubado costuma ser insípido quando as duas partes não se movem pelo mesmo impulso de doação e devoração?” O pintor francês, Jean-Honoré Fragonard pintou “O beijo roubado”, por volta de 1790, que se encontra no Museu Hermitage de São Petersburgo, na Rússia. A personagem do quadro lembra Maria José.


Quem quiser sair do mundo da Literatura ou das Artes e entrar no mundo do Direito tem a disposição longa discussão se, hoje, o beijo roubado constitui crime de estupro, assédio sexual ou importunação sexual. Muito antes que lei fosse feita para tal repressão aprendi, com Maria José, que tal roubo não tem gosto. Porque gostoso é a reciprocidade dos desejos mútuos. Até uma criança de sete anos sabe o que é importunação. Por isso a desculpa de que ocorrem maus entendidos não são críveis.


Claro que beijo roubado não é estupro. Não há privação da liberdade da vítima, nem imposição de comportamento a ela. Mas há outros crimes definidos no Código Penal, dentre os quais assédio sexual e importunação sexual.


O assédio sexual é crime no Brasil, definido no artigo 216-A do Código Penal como “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.


A pena prevista é de detenção de um a dois anos. Portanto, sem a prevalência da condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função não há que se falar em assédio sexual.


Mas entre pessoas do mesmo nível hierárquico pode ocorrer abusos sexuais, dentre os quais importunação sexual definida legalmente no art. 215-A como “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. A pena é de reclusão, de um a 5 cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.


Assim, entre pessoas que não haja hierarquia ou ascendência por cargo, emprego ou função não há que se falar em assédio sexual, mas pode haver importunação sexual ou outros crimes contra a dignidade sexual. A ideia de que pode existir assédio sexual horizontal, ou seja, sem que haja hierarquia entre o autor do crime e a vítima é parte de discurso que se constrói à margem da lei. E, no Direito Penal não se admite interpretação extensiva, embora tal princípio não esteja sendo preservado na atual quadra da história jurídica do país.


O que me tem me espantado não é apenas a criatividade para o encarceramento, com acusação de um crime mais grave quando o que ocorre é crime de menor ofensividade. O que me tem impressionado atualmente não são as atitudes inapropriadas ou inadequadas, assédio moral, assédio sexual ou importunação sexual, mas o tempo que certas mulheres adultas, socializadas em bailes funk, empoderadas por ascensão social, levam para afastar o “ofensor” ou mesmo para denunciá-lo.


Maria José, com seus sete anos não só demonstrou sua insatisfação comigo como, no mesmo dia, procurou a autoridade própria para me estabelecer os limites: minha mãe. Nem precisava, ela já o havia feito e já havia deixado claro que não toleraria beijo roubado. Mas não deixou passar uma noite. E tinha sete anos! Igualmente não pediu a intervenção de mais ninguém. Não sei como a mãe dela soube e rindo me chamava de genro e até meu pai, conversando com o pai dela, riam, tal como os homens costumam fazer, sem entender o desastre que aquele desenlace provocado pela publicidade significava para mim.


Mais tarde aprendi que a comunicação, imprescindível para expressar o consentimento não precisa ser escrita ou verbal, e - também - se faz por outras linguagens. As expressões corporais também podem ser indicativas de desejo e consentimento.


Já escrevi, que o primeiro livro que li foi “A Moreninha” de Joaquim Manoel de Macedo e sempre me lembro do personagem Augusto, embaixo da cama, vendo os pés de D. Clementina. Também li a obra quase completa de Nelson Rodrigues e dela depreendi que há desejos diversos.


Chico Buarque escreveu uma letra que é só desejo, sem dizer o que é:


O que será que será

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças, anda nas bocas

Que andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos

Que gritam nos mercados que com certeza

Está na natureza, será que será

O que não tem certeza, nem nunca terá

O que não tem conserto, nem nunca terá

O que não tem tamanho

O que será que será

Que vive nas ideias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Que está na romaria dos mutilados

Que está na fantasia dos infelizes

Que está no dia a dia das meretrizes

No plano dos bandidos, dos desvalidos

Em todos os sentidos, será que será

O que não tem decência nem nunca terá

O que não tem censura nem nunca terá

O que não faz sentido

O que será que será

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno, vai abençoar

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo

O que será que será

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno, vai abençoar

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo”.


O desejo pode não ter juízo, mas tem que ser exercitado com limite. O parâmetro apropriado é o consentimento mútuo. E isto é civilidade. Não vivemos no Estado de Natureza. É a cultura que nos ensina o limite para nossas condutas, mesmo que o desejo não o tenha. Nossa cultura sempre foi farta em reconhecer os limites da adequação, chegando muitas vezes ao moralismo, excessivamente ‘pudorento’.


Em suas cartas aos coríntios, São Paulo nos mostra que era um santo que amava. A quem não sabemos. Talvez nas cartas a São Timóteo, de Éfeso, haja uma pista. Mas amava. Ele escreveu: “O amor é paciente. O amor não é ciumento, não exalta a si mesmo, não é orgulhoso. O amor não é malcriado, não procura seus interesses, não se irrita facilmente, não guarda mágoas. O amor não se alegra com o mal, mas se alegra com a verdade. O amor tem sempre confiança e esperança e se mantém firme”. E conclui: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino”. Menino com mãe aprende mais cedo.


Nada do que li foi tão relevante quanto à pequena conversa com minha mãe. Ela me ensinou, sem censura, a respeitar as mulheres e a esperar que elas me dessem o beijo ou me ofertassem a face ou a boca para serem beijadas. Aprendi que não se rouba beijo. E que qualquer comportamento ou abordagem indevida não era expressão de amor, mas de violência sobre o corpo alheio.


Não é verdade que os assédios nas relações de trabalho, sejam sexuais ou morais, são geracionais. Até uma criança de sete anos compreende quando foi indelicada ou abusiva, ainda que não se possa cobrar dela a ética da responsabilidade pela falta de compreensão das consequências da conduta.


Assédio, em suas distintas modalidades, é relação de poder. O assédio sexual não é tema a ser tratado no campo da sexualidade. Assim como, também, o assédio moral, tais práticas estão no campo da consciência conservadora do Brasil e no autoritarismo. Não só o autoritarismo do patriarcado propicia assédio moral ou sexual, pois mulheres alçadas a situação de poder também podem cometê-los. Assédio é relação imprópria de exercício de poder e pode ser praticado por pessoa de qualquer raça, gênero ou orientação sexual.


A ideia de que os homens precisam ser reeducados para conviver com as mulheres é coisa de quem está querendo vender curso e ganhar algum “capilé” com conversa fiada. Todos sabemos que colocar as mãos entre as pernas de uma mulher ou “patolar” um homem, como fazia uma treinadora desportiva carioca com seus atletas, é abusivo. O juízo sobre a ilicitude destas práticas é universal. Um homem ou uma mulher até podem cochichar no ouvido de outra pessoa, se ela admitir ou retribuir. Mas se a pessoa não admite não se pode reiterar. A insistência, notadamente com frases de conotação sexual, sempre foi inadmitida e desde 2018 é crime de importunação sexual.


Os homens, quando o fazem e dizem não verem maldade na importunação estão mentindo para si mesmos. E as mulheres também. E com as mulheres tem um agravante. Quando assediam e o homem as rejeita partem para a injúria homofóbica, tal como se o homem hétero cis, por ser hétero, tivesse que sexuar com qualquer mulher que o deseje. E muitos caem nesta armadilha, em razão do machismo que permeia as relações sociais e não lhes permite dizer não. Não é raro ouvir em conversas masculinas que, para um homem, “todas merecem uma vez, algumas duas vezes e poucas três vezes”.


O mundo não mudou. Tais comportamentos sempre foram considerados inadequados. Talvez tenha havido alguma mudança em três campos: 1) as mulheres passaram a denunciar; 2) os homens descobriram que não têm que “dar umazinha” com qualquer mulher que lhes queiram; 3) alguns comportamentos antes apenas inadequados ou antissociais, hoje, configuram crime.


Mostrar-se interessado é diferente de intrometer-se no corpo de uma pessoa ou insistir quando a abordagem já foi negativa. O respeito à falta de reciprocidade há de ser um parâmetro de civilidade. Cantou, a outra pessoa não aceitou, contabiliza no perdido e siga!


O assédio sexual ou moral não é sexo. É prática de poder por quem não reconhece os limites para seu exercício, seja em razão da hereditariedade aristocrática, não raro da aristocracia rural que vigeu no Brasil até o advento do século XX, ou por nunca o ter exercido.


Quem não foi socializado para o exercício do poder ou para comer melado, quando pode exercer ou comer se lambuza.

Publicado originariamente em https://www.criativos.blog.br/ no dia 16/09/2024.