‘A Esquerda Não é Woke’:
Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo
No centro do argumento de Susan
Neiman está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em
pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por
ela; conheça o movimento woke ou identitário
Por Eduardo Wolf
26/03/2024
O que une um personagem da República de
Platão, o pensador pós-moderno francês Michel Foucault e o teórico nazista
alemão Carl Schmitt? Pouca gente dirá que a resposta seja a esquerda
woke ou identitária. Pois é isso – e muito mais – que o leitor encontrará
de surpreendente no livro da filósofa americana Susan Neiman.
Em A Esquerda Não é Woke,
que a Editora Âyiné publica agora no Brasil, a autora não ouviu os muitos
alertas de amigos (de esquerda, como ela) para que não mexesse nesse vespeiro e
decidiu pegar a fera pelos chifres: reivindicar para a esquerda a herança da
tradição Iluminista, erguer mais uma vez a bandeira do universalismo e rechaçar
as tendências da esquerda contemporânea que atendem pelo nome de woke. Ao
fazê-lo, Neiman produziu um livro acessível, de leitura fluente e não
acadêmico, ainda que sem abrir mão de sua palpável erudição e aguda capacidade
analítica
No coração de seu argumento está
a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores
alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela.
A
filósofa americana Susan Neiman, autora de 'A Esquerda Não é Wonke' Foto: James
Starrt/EditoraÂyiné
É nesta genealogia que, para a
surpresa de muitos bons leitores, a figura de Trasímaco, o jovem amoralista que
na República afirma que a justiça é simplesmente uma conversa-fiada para
enganar os tolos, aparece lado a lado de Michel Foucault – que, na visão da
autora, é apenas uma versão renovada e academicamente mais brilhante do mesmo
amoralismo sofístico antigo.
Para que possamos compreender
melhor como a explicação de Susan Neiman está estruturada, vale a pena recuar
um pouco e reconhecer terreno em que se está pisando ao falar de woke ou identitarismo.
Ao longo dos anos 2010,
tornou-se gradativamente dominante no cenário político americano um tipo de
discurso à esquerda no espectro político que mais e mais centrava-se nas
identidades (raças e gêneros sobretudo, mas não apenas), relegando a segundo
plano velhas e costumeiras questões de classe social, situação econômica e
cidadania política – tradicionais pautas da esquerda, que as lia pelas lentes
da inclusão e do igualitarismo.
Ora, qual o problema desse
protagonismo das identidades? Em si mesmo, nenhum, responde Neiman. Pelo
contrário, todos reconhecem na linguagem das emoções que o chamado movimento
woke ou identitário emprega aquela mesma linguagem das emoções que
tradicionalmente definia a esquerda – a saber, “empatia pelos marginalizados,
indignação com a situação dos oprimidos, determinação na busca de que os erros
históricos sejam corrigidos”.
Ocorre que, a despeito das
genuínas boas emoções que estão na origem do woke; apesar da bondade e correção
de suas intenções, seus defensores, na verdade, aderiram a conceitos, teorias e
visões de mundo abrangentes que, na verdade, são a antítese de tudo aquilo que
a esquerda deveria buscar. Em suma, têm a teoria errada para os propósitos
certos.
Neiman dedica o primeiro
capítulo a mostrar que a esquerda deveria se manter fiel à tradição do
universalismo, a tudo aquilo que temos de comum e que pode unificar lutas,
reivindicações e realizações humanas. Com isso, afirma que se deve rechaçar o
tribalismo que caracteriza a atual política identitária encontrada em nomes tão
diversos como Judith Butler e Ibram X. Kendi, um tribalismo que “não apenas
reduz os múltiplos componentes de nossas identidades a um só: ela essencializa
o componente sobre o qual temos menos controle”, o gênero ou a raça.
No segundo capítulo, autora
sustenta que a esquerda deveria se manter fiel à crença na justiça, que apesar
de todas as falhas, não deveria ser percebida como mero exercício hipócrita do
poder, pois se não há justiça de fato, pouco nos resta além do amoralismo
aterrorizante de Foucault, para quem só o que há é o poder em estado bélico
permanente, que ocasionalmente, “assume a forma de paz e de Estado”, fazendo da
“paz uma forma de guerra, e do Estado um meio de travá-la”.
Que esse raciocínio ecoe teses
do nazismo de Carl Shmitt e tenha sido encampado como retórica de parte da
esquerda para afirmar que toda a história humana nunca foi mais do que um
amontoado de casos de puro poder cinicamente travestido de justiça, direitos,
democracia ou paz, é algo assustador.
Capa
do livro A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman Foto: Editora
Âyiné
À defesa do universalismo e da
distinção real entre justiça e poder Neiman acrescenta, no terceiro capítulo, a
convicção no progresso que sempre animou os ideias iluministas, bem como um
amplo espectro ideológico no século 19, com destaque para o pensamento de Karl
Marx. Contra a aposta iluminista, é novamente Foucault quem se destaca
como guru da esquerda woke, resumindo a história da humanidade a
uma mera substituição de violências, “prosseguindo, assim, de dominação em
dominação”.
Universalismo, justiça,
progresso: todos esses princípios, argumenta Neiman, podem ser compartilhados
pelos liberais e pela esquerda de matriz iluminista a que se filia a autora.
Nenhum deles define a esquerda woke. E a razão apresentada pela filósofa é que
as fontes intelectuais da política identitária não são iluministas, muito menos
de esquerda.
O pós-moderno Foucault
comparece, na leitura de Neiman, até mesmo como possível porta-voz do
neoliberalismo, e o escândalo da autora com o interesse da esquerda nas
posições tribalistas reacionárias de Carl Shmitt transparece a cada linha. Como
explicar, então, que tenham enfeitiçado a esquerda? A resposta de Neiman é
simples: as críticas de ambos ao liberalismo serviram como uma luva a certas
parcelas da esquerda.
É possível que esse diagnóstico
de Neiman não seja tão convincente: o problema da esquerda woke seria
precisamente não ser de esquerda. O woke repousaria sobre uma teoria
“de direita”. Isso não diminui o interesse do livro, que apresenta um caso
forte para a recusa do identitarismo como forma de fazer política.
Se o que deverá ser feito em seu
lugar há de se nortear pelos ideais socialistas de Neiman, ou, quem sabe, pelas
convicções de justiça da tradição do liberalismo político de seu orientador em
Harvard, John Rawls – bem, essa é já outra questão.
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