Nascemos indivíduos e nos tornamos cidadãos no processo de
socialização, adquirindo a cultura do meio no qual vivemos. Sociedade é um
grupo de pessoas que convive com participação econômico-político-social por
meio dos valores e sentimentos comuns, denominados cultura. A compreensão da
importância dos valores que nos unem é um diferencial em nossa existência. Mas
isto nem sempre é percebido por parcela da burocracia do Estado e por aqueles a
quem se ordenam a execução do poder de polícia.
Na crônica passada sugeri o nome do cantor Roberto Carlos
para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Terminei dizendo que “A ABL
contribui para a difusão da língua portuguesa na sua forma escrita. Roberto
Carlos também o faz. Muitos leem suas letras visando a decorar para cantar.
Mais que a ABL e Roberto Carlos somente faz mais pela língua escrita o Livreiro
Olivar, o Vavá, que vende livros a R$ 2,00 na entrada do Metrô da Carioca
durante a semana e na Praça XV aos sábados”. Para que fui elogiar? Durante a
semana fiscais da prefeitura apareceram na barraca do Olivar e ele estava
ausente. Tinha atendido ao telefonema de um porteiro de um prédio que o chamara
para buscar livros que um escritório jogara no lixo. Deixara uma pessoa tomando
conta da banca. Ao voltar, foi informado de que os fiscais da prefeitura
passarão de 3 a 5 vezes por dia na banca e que se o titular estiver ausente
perderá o direito de mantê-la.
Um livreiro de rua não é um camelô que compra mercadoria
fabricada na China ou vinda do Paraguai e que pode permanecer durante todo o
dia no mesmo lugar à frente da mercadoria. Um livreiro de rua é um garimpeiro
que visita apartamentos de quem esteja vendendo uma biblioteca ou vai a
portaria de prédios, por chamada de porteiros, apanhar livros jogados fora. Por
vezes raridades são desprezadas por familiares que não comungavam com o
sucedido o gosto por livro
Olivar atende a centenas de porteiros no Centro, que lhe
ajudam na preservação de raridades postas no lixo. Há 40 anos desempenha tal
atividade de relevância cultural para a cidade. Não só o Olivar. Do Leblon a
Campo Grande temos mais de 200 livreiros de rua, que vendem milhares de livros
por mês a preço acessível a qualquer pessoa. Na banca do Olivar já dividi
garimpagem com morador de rua interessado na aquisição de um livro, com
ex-governadores de estados diferentes, com embaixadores e não raro com alguns
colegas desembargadores do tribunal que componho. Uma banca de livro de rua é
um espaço de convivência social. Morador da Zona Sul - e frequentador de alguns
espaços privilegiados -, conheço toda a cidade do Rio de Janeiro e a Baixada
Fluminense - do Km 32, em Nova Iguaçu, a Magé -, locais onde atuei como juiz
por 18 anos, com frequentes inspeções pessoais. Nenhum lugar é socialmente tão
plural quanto uma banca de livro de rua.
Monteiro Lobato dizia que “um país se faz com pessoas e
livros”. A difusão da cultura por meio da língua escrita tem sido a
contribuição destes heróis do livro, sob chuva ou sol. A Bienal do Livro deste
ano foi a maior de todos os anos e o stand da Estante Virtual estampou uma
fotografia do Olivar e sua banca, como reconhecimento pelo relevante serviço
que presta à cultura do livro. Na comemoração dos 450 anos da Cidade do Rio de
Janeiro tanto a Globo quanto a Jovem Pan transmitiram imagens do Olivar e sua banca,
como expressão do cenário da cidade.
Foi a partir de livros apanhados numa calçada e levados para
que crianças pobres pudessem ler na varanda de sua casa, na Vila da Penha, que
Evando dos Santos, o pedreiro que nunca frequentou escola e aprendeu a ler
sozinho, montou a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, instalada num prédio
projetado para ele por Oscar Niemeyer. Evando já virou personagem de romance
publicado na Itália, tema de tese de doutorado e enredo de Escola de Samba no
Rio de Janeiro. Assim como Evando salva do lixo preciosidades inexistentes até
na Biblioteca Nacional, os livreiros de rua prestam relevante serviço à
cultura, preservando obras que de outro modo teriam como destino os lixões ou
aterros sanitários.
Há alguns anos o Olivar deixou na Barraca 37, do Gaúcho, na
Praia do Leme uns livros para doação aos banhistas. A SEOP encrencou pois o
alvará não incluía a doação de livro. Daquela proibição resultou a Universidade
Livre do Leme e o projeto Filosofia na Praia, tendo à frente o embaixador e
ex-ministro da Cultura Jerônimo Moscardo. Aos sábados, de 11h00 ao meio-dia,
intelectuais, estudantes e moradores se encontram para abordagem de temas
específicos no quiosque da Maria Alice, em frente ao número 974 da Av.
Atlântica, e doam livros a quem interessar. Graças ao Olivar, já foram doados
mais de 50 mil livros. Em se tratando de livro, a SEOP e outros órgãos com
poder de polícia do município deveriam ouvir antes a Secretaria de Cultura ou o
Prefeito, sensível à questão cultural na Cidade do Rio de Janeiro.
Impedir que um livreiro de rua saia de sua banca para avaliar
bibliotecas disponibilizadas por familiares de falecidos, ou recolher livros em
portarias quando refugados por seus proprietários, seria um desserviço à
cultura do livro e incentivo ao descarte de obras raras, muitas das quais já
adquiri em tais mãos.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/08/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/08/6905206-joao-batista-damasceno-livreiros-de-rua-cultura-do-livro-e-burocracia-estatal.html
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