"Mais tarde ou mais cedo o
Brasil tem de decidir-se de que lado está no novo horizonte geopolítico e
geoestratégico mundial em curso"
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um
evento perto de uma imagem do falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez em
Caracas, Venezuela, 4 de fevereiro de 2024.
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um
evento perto de uma imagem do falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez em
Caracas, Venezuela, 4 de fevereiro de 2024 (Foto: REUTERS/Leonardo Fernandez
Viloria/File Phot).
Não sou, nem nunca fui, um chavista ferrenho. Hugo Chavez foi
um benévolo meteorito político que abalou o sub-continente latino-americano e o
mundo na primeira década do século XXI. Em 2013, logo após a morte de Hugo
Chavez, escrevi um texto intitulado “Hugo Chavez: o legado e os desafios”.
Identificava alguns sinais de autoritarismo e de burocratização e terminava o
texto com a seguinte frase: “Sem ingerência externa, estou seguro de que a
Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática.
Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os pobres
contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os que mais
beneficiaram com ela. E, concomitantemente com isso, provocar uma ruptura nas
Forças Armadas e um consequente golpe militar que deponha Maduro. A política
externa da Europa (se de tal se pode falar) podia ser uma força moderadora se,
entretanto, não tivesse perdido a alma”. Tenho de reconhecer que o meu temor
não se concretizou até hoje, embora não tenham faltado tentativas para que ele
se concretizasse. Penso que o momento actual configura mais uma dessas
tentativas. Daí a importância de reflectir sobre o clamor nos media ocidentais
sobre a possibilidade de fraude nas recentes eleições na Venezuela e o consenso
à direita e à esquerda sobre a necessidade de auditar os resultados. É grande a
minha perplexidade e obriga-me a uma reflexão.
1. O sistema eleitoral venezuelano tem sido unanimemente
considerado um dos mais seguros e protegidos contra a fraude. Exige quatro
momentos de identificação: inscrição nos cadernos eleitorais, voto electrónico,
extracção de voto de papel, impressão digital do votante. Os números têm de
coincidir. Claro que nenhum sistema eleitoral é totalmente imune à fraude, mas
quando comparamos com os sistemas eleitorais de outros países (nomeadamente o
dos EUA ou o português), o sistema venezuelano é mais seguro. Porque é tão
evidente para tanta gente que pode ter havido fraude?
2. A oposição vinha anunciando que só reconheceria os
resultados se ganhasse as eleições. Neste domínio, estava a seguir uma prática
que se vai generalizando entre as forças de extrema-direita que concorrem a
eleições (casos de Trump em 2020, Bolsonaro em 2022, Milei em 2023). Isto devia
exigir alguma precaução por parte das forças democráticas, não vá a sua
insistência na auditoria servir de muleta a forças políticas que, supostamente
em nome da democracia, a querem destruir.
3. Fora da Venezuela, as forças mais vociferantes na defesa
da democracia venezuelana são forças políticas de extrema-direita que nos seus
próprios países advogaram ou praticaram golpes de Estado e fraudes eleitorais.
No Brasil, com a colaboração activa dos EUA, Jair Bolsonaro, e as forças
político-militares que o apoiavam, foram os protagonistas da mais clamorosa
fraude eleitoral da última década. Conseguiram inabilitar e meter na prisão
durante mais de 500 dias o candidato que certamente ganharia as eleições, Lula
da Silva; manipularam facilmente os media e os tribunais; e a eleição de 2018
foi dada como válida internacionalmente sem nenhuma reserva. Isto mostra que o
clamor mediático-político sobre a possibilidade de fraude e a necessidade de
verificação dos resultados não assenta, ao contrário do que parece, num
entranhado amor à democracia, mas antes noutras razões, que aponto adiante.
4. A dualidade de critérios vai muito para além das forças de
extrema-direita e do primitivismo das suas considerações. Os países europeus,
que se orgulham de ser impecáveis democracias, foram quase unânimes em
reconhecer como presidente legítimo da Venezuela um senhor que se tinha
proclamado presidente numa praça de Caracas. Refiro-me a Juan Guaidó, em 23 de
Janeiro de 2019. Como se explica que, neste caso, não tenha havido qualquer
precaução em verificar os processos democráticos? É sobretudo chocante quando
comparamos esta aparente negligência com o zelo de agora, a respeito de uma
eleição que contou com mais de novecentos observadores vindos de quase cem
países? Aliás, num aparte que aumenta a perplexidade, dá que pensar que só
nalguns países seja tão crucialmente importante recorrer a observadores
externos para credibilizar processos eleitorais. Se a possibilidade de fraude
existe sempre, a exigência de observadores devia ser universal e tutelada pela
ONU.
5. Não discuto as razões que levaram à inabilitação da Maria
Corina Machado (é sabido que participou em várias tentativas de golpe contra o
governo bolivariano e que chegou a pedir a intervenção militar estrangeira),
mas não deixa de causar perplexidade o modo como foi escolhido o seu
substituto, o ex-diplomata Edmundo Gonzalez Urrutia. Há algo de
inquietantemente caricatural na oposição venezuelana. Primeiro, foi Juan
Guaidó; agora foi um senhor que parecia ter saído de um lar de idosos para uma
actividade tempo livre que, por acaso, era uma candidatura presidencial. Se
refiro isto, é apenas porque as mãos de Edmundo Gonzalez podem estar
eventualmente manchadas de sangue. Entre 1981 e 1983 Edmundo Gonzalez era o
primeiro secretário da Embaixada da Venezuela em El Salvador, cujo embaixador
era Leopoldo Castillo, conhecido como Matacuras (mata padres). Realizava-se
nessa altura o Plano Condor de contra-insurgência impulsionado por Ronald
Reagan que naquele país visava impedir o avanço das forças revolucionárias da
Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Este plano incluiu a
execução da Operação Centauro que envolveu o exército e esquadrões da morte e
visava assassinar revolucionários e, nomeadamente, os membros das comunidades
religiosas congregadas à volta da teologia da libertação. Foram assassinadas
13194 pessoas, entre as quais Don Oscar Romero, hoje Santo da Igreja Católica,
quatro freiras Maryknoll, e cinco padres. Segundo dados da CIA desclassificados
em 2009, Leopoldo Castillo surge como corresponsável da coordenação e execução
da Operação Centauro. Edmundo Gonzalez era o primeiro secretário da Embaixada
da Venezuela. Os crimes cometidos são crimes de lesa humanidade e como tais
imprescritíveis.
Porquê todo o clamor sobre a possível fraude eleitoral?
A resposta breve a esta questão é a seguinte: a Venezuela é o
único país da América Latina onde dois recursos fundamentais não são
controlados pelos EUA: as Forças Armadas e os recursos naturais (a maior
reserva de petróleo, terras raras, ouro, ferro, etc.). Ao longo do século XX,
os EUA intervieram repetidamente nas eleições da Venezuela com o objectivo de
garantir o seu acesso aos recursos naturais. Sempre o fizeram com a ajuda de um
número muito pequeno de famílias oligárquicas, algumas das quais controlam a
riqueza do país desde o século XVI e dos tempos das encomiendas. Maria Corina
Machado pertence a uma dessas famílias. O seu programa eleitoral é muito
semelhante ao de Javier Milei e já se comprometeu em entrevista que, se fosse
presidente, mudaria a Embaixada da Venezuela de Tel Aviv para Jerusalém. É um
programa de extrema-direita que tem sido apoiado pelos EUA e, ultimamente, pelo
oligarca dos oligarcas, Elon Musk.
Por não controlar os dois recursos que referi, os EUA têm
usado as duas estratégias ao seu dispor (para além das interferências
eleitorais e apoio à oposição): participação em golpes de Estado, que podem ou
não incluir tentativas de assassinato dos líderes a abater; e sanções
económicas. Neste momento, a Venezuela está a ser punida com 930 sanções que
têm vindo a ser impostas há quase duas décadas. As sanções causaram o
empobrecimento abrupto da Venezuela e foram responsáveis por milhares de mortos
devido à falta de medicamentos essenciais para salvar a vida (por exemplo,
durante um período, a insulina). Este empobrecimento abrupto levou à suspensão
de muitas das políticas redistributivas do Governo e, em última instância, à
emigração. Mais de sete milhões de pessoas.
Sem dúvida que um país com tantos milhões de cidadãos
obrigados a emigrar não pode estar bem. E compreende-se que muitos desses
emigrantes vejam na derrota de Nicolas Maduro o fim das sanções e a esperança
de voltar. Neste contexto, duas reflexões se impõem. A primeira é que Maduro
liberalizou a economia nos últimos anos, adoptando algumas medidas que
dificilmente se podem considerar socialistas ou sequer de esquerda. Muitos
negócios estão a ser celebrados com grandes empresas norte-americanas e europeias,
na área petrolífera e não só. Hoje a economia venezuelana é uma das que mais
cresce na América Latina, mas obviamente isto ocorre depois de um
empobrecimento brutal. Até onde este novo modelo económico (de inspiração
chinesa?) pode ter êxito é uma questão em aberto.
A segunda reflexão é que, se olharmos para o panorama
internacional das migrações e refugiados, a Venezuela é o único caso em que a
atenção midiática se centra no país donde saem os deslocados. Em todos os
outros casos a atenção é centrada nos países de “acolhimento” (que inclui
muitas vezes a deportação). Mais uma vez, a razão parece ser esta: a política
de desestabilização e de demonização do governo bolivariano e a criação de um
consenso para fazer accionar a terceira arma dos EUA: o infame regime change
(mudança de regime). Penso, aliás, que a perturbação social actualmente em
curso visa criar uma Revolução Maidan dez anos depois. Refiro-me à agitação
social na Ucrânia em 2014 que levou à fuga do presidente eleito
democraticamente, Victor Yanukovych, e, pouco tempo depois, à eleição de
Volodymyr Zelensky. A razão pela qual uma “revolução colorida” dificilmente
terá lugar na Venezuela é o facto de os EUA não contarem com militares
venezuelanos treinados na Escola das Américas, onde tantos golpes de Estado foram
forjados. As Forças Armadas venezuelanas já reconheceram os resultados
eleitorais.
Mas certamente haverá mais tentativas no futuro, tanto mais
que a Venezuela conta com três aliados de peso: China, Rússia e Irão, três
inimigos dos EUA. Os dois primeiros são membros originais dos BRICS e o
terceiro juntar-se-lhes-á proximamente. Isto significa que, embora a fachada
discursiva seja sobre fraude eleitoral e democracia, o que está em causa é a
turbulência geopolítica que a vitória de Maduro provoca. Isto devia fazer
pensar os líderes dos países latino-americanos e muito especialmente o Brasil.
Mais tarde ou mais cedo o Brasil tem de decidir-se de que lado está no novo
horizonte geopolítico e geoestratégico mundial em curso. Compreendo as
cautelas, pois, afinal, ainda há pouco, os EUA interferiram de maneira brutal
na política interna do Brasil. Mas, por outro lado, só defendendo a soberania
dos outros países é que o Brasil, ou qualquer outro país, poderá defender
eficazmente a sua própria soberania quando a tempestade imperial chegar. Em
todo o caso, é melhor actuar coletivamente do que individualmente. Faz falta um
maior ativismo da Comunidade de Estados Latino-Americanos y Caribenhos (CELAC),
agora que a União de Nações Latino-Americanas (UNASUR) desapareceu.
31 de JULHO de 2024.
Boaventura de Sousa Santos GOSE (Coimbra, 15 de novembro de 1940) é um Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É também diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Foi fundador e diretor do Centro de documentação 25 de Abril entre 1985 e 2011.
Excelente reflexão. Me obriguei há mais de dois anos a estudar textos de estudiosos sobre a Venezuela. Com o conteúdo que acumulei, considero que em poucas palavras, Boa Ventura esclarece o jogo dos Estados Unidos , aliados europeus e lacaios latino-americanos contra a democracia venezuelana e a legítima eleição de Maduro. Vou compartilhar muito.
ResponderExcluirA oposição está fazendo na Venezuela a mesma coisa que os eleitores de Bolsonaro fizeram no Brasil quando perderam as eleições de 2022. Só que a oposição liderada por Maria Corina Machado tem apoio de Washington e países de seu domínio. Cabe ressaltar que os dois movimentos são liderados por representantes da extrema-direita com intenções golpistas. Corina Machado foi impedida de se candidatar por ter atuado de forma inconstitucional, de modo equivalente ao que motivou a inelegibilidade de Bolsonaro. É contraditória a atitude de brasileiros que não veem a semelhança entre os dois casos e apoiam de forma açodada e distorcida um movimento de feição golpista.
ResponderExcluirAnálise muito bem feita e que deve auxiliar muito na reflexão que se deve fazer do momento histórico venezuelano. Ainda mais quando sabemos que todos os grandes críticos estrangeiros de Maduro não estão preocupados com a democracia naquele país, mas com o petróleo.
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