A morte do
adolescente Thiago Menezes na Cidade de Deus não pode ser interpretada
como decorrente de conduta de maus policiais, pois executaram uma política
que lhes foi ordenada e incentivada, qual seja, tratar pretos e pobres como
inimigos. Numa guerra, não são maus os soldados que alvejam aqueles que
lhes são apontados como matáveis. Quanto maior a perversidade praticada
contra os que se ordenam ser perversos mais reconhecimento e prestígio
angariam por quem comanda e por quem formula a estratégia de eliminação.
A política de extermínio de pretos pobres é uma política de Estado; não é apenas de governo, nem está restrita à corporação que a implementa. Praças que promovem sua execução também têm responsabilidade, pois todos fazemos opções e quem aperta o gatilho também as faz e ninguém pode, impunemente, cumprir ordem ilegal.
Uma obra recente propiciou discussão sobre o racismo estrutural no
Brasil. O meio acadêmico se dividiu em discursos sobre a natureza do
racismo: se estrutural, institucional ou intersubjetivo. Enquanto os
termos eram discutidos e conceitos elaborados, os jovens pobres das
favelas e periferia continuaram a ser mortos.
Diversamente do
Apartheid, regime que vigeu na África do Sul, as leis brasileiras não
estabeleciam diferenças raciais. Mas temos o jeitinho brasileiro. Desde a
colonização até 1850, as terras brasileiras eram públicas e os
particulares autorizados podiam se apropriar da porção necessária
para suas sobrevivências e atividades. Abandonada a atividade, a terra
voltava ao poder público para cessão a outro. Tal como o ar que respiramos
ou a água do mar na qual nos banhamos, não haveria legitimidade na
apropriação do que não fosse necessário, nem manutenção do que não mais
era útil.
A edição da Lei
601 de 18 de setembro de 1850 foi o jeitinho brasileiro para excluir os
negros livres da possibilidade de ter terra para viver. No processo de
substituição da mão de obra escravizada pela mão de obra de pobres
europeus, dispensados pelo avanço tecnológico decorrente da invenção da
energia elétrica, os libertos foram segregados. Em 4 de setembro de 1850,
fora promulgada a Lei 581, Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico
de pessoas da África para o Brasil. A Lei de Terras dispunha que a terra
não mais era bem de uso, mas mercadoria e, portanto, somente se podia ser
proprietário quem a comprasse. Apesar da abundância de terras, tal como
ainda hoje, os negros livres e os brancos pobres não podiam ser
proprietários por falta de recursos financeiros para a aquisição. Para
comer, tinham que trabalhar para os proprietários.
A aporofobia,
ou seja, o desprezo pelos pobres e o racismo no Brasil não estão nas leis.
Se estivessem, bastaria revogá-las. É muito pior. Está entranhado nas
relações sociais e na estrutura social. Não na estrutura formal, mas na
estrutura que vale, ou seja, na relacional. Afinal, as normas de conduta
sociais são o que se fazem na prática. O Direito escrito é apenas uma
formalidade, tal como a Lei Feijó, que abolira o tráfico de pessoas africanas
em 1831, "para inglês ver", sem pretensão de eficácia.
No caso do
menino Thiago Menezes, não adianta punir apenas quem apertou o gatilho.
Outros muitos meninos são e serão executados diariamente. Um caso
emblemático foi o menino Juan, em junho de 2011, na Favela Danon, em Nova
Iguaçu. Depois de matarem o menino em situação similar à do Thiago
Menezes, confundido com quem estavam autorizados a matar, os policiais
levaram o corpo e o jogaram na lixeira de um município vizinho.
É preciso parar
a matança. Não há pena de morte no Brasil. Quem mata é criminoso. Mas quem
ordena, autoriza ou consente o é igualmente. Afinal, quem de qualquer modo
concorre para o crime há de incidir nas penas a ele cominadas. Em discurso
anteontem, no Rio de Janeiro, o presidente Lula disse que "a polícia
tem que saber diferenciar 'bandido' de 'pobre’". Em 2007, depois de
uma chacina no Alemão, o presidente disse, no Canecão, na Zona Sul, ao
lado do então governador Sérgio Cabral, para uma plateia de classe média,
ser contra o pensamento de quem acredita que criminosos "devem ser
enfrentados com pétalas de rosas". Ninguém defende a atuação
do sistema de justiça contra os que se encontrem em conflito com a lei
usando pétalas de rosas. O que se pretende é o império da lei. A
civilidade nos impõe respeito à Constituição e ao Estado de Direito.
Somente a barbárie autoriza execuções, chacinas, milícias, prisões ilegais
e tentativas de golpes de Estado.
Grupos de
extermínio e milícias são formados por quem um dia teve autorização para
matar e gostou da tarefa. A autorização para matar pretos e pobres nos
assombra e reforça a incivilidade. Enquanto cinicamente debatemos em mesas
plurais e identitárias, entre cafezinhos, canapés e rapapés, a realidade
dura elimina a juventude pobre. Inexistem instituições nacionais capazes
do controle da política de extermínio e submissão da cadeia de comando ao
banco dos réus, porque a política é do próprio Estado. Punem-se apenas
praças que apertam o gatilho. É necessário levar a cadeia de comando ao
banco dos réus do Tribunal Penal Internacional (TPI) em razão dos crimes
contra a humanidade.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, em 12/08/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/08/6689153-joao-batista-damasceno-thiago-menezes-politica-de-exterminio-e-cadeia-de-comando.html
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