Nascemos indivíduos, seres singularizados, e pelo processo de
socialização nos tornamos pessoas. Neste processo somos apresentados à
linguagem, em suas diversas modalidades. Conhecemos as coisas com os nomes
antes lhes atribuídos. O problema reside na necessidade de nominar, definir ou
conceituar fenômenos novos. Aos fenômenos políticos se agregam as emoções e as
expressões qualificadoras ou desqualificadoras. Eis a questão: como qualificar
adequadamente o período no qual o Brasil mergulhou recentemente e que, ao lado
do autoritarismo e desprezo à institucionalidade, cultuou a morte, desdenhou de
um vírus letal, destruiu direitos sociais, agrediu as instituições judiciárias,
ampliou a miséria e ameaçou o meio ambiente?
Um ministro do STF, numa reunião com estudantes, se referindo ao
fenômeno autoritário, e não ao personagem, disse que a sociedade derrotou o
bolsonarismo. O fenômeno reacionário no qual o Brasil andou mergulhado não pode
ser qualificado pelo nome do personagem que foi a sua expressão. O fenômeno é
maior que aquele que apenas foi colocado como marionete para expressar o que
emergia das profundezas da nossa organização social e que reflete o que está
acontecendo pelo mundo.
Há quem qualifique o fenômeno como fascismo. Mas tal vocábulo é pouco
adequado para o que vivenciamos. Embora o fascismo tenha assumido feições
diferentes nos distintos lugares onde aflorou, o que o Brasil viveu nos últimos
anos não se ajusta às características daquele sistema político. O fascismo foi
um modelo de organização social e política triunfante na Itália com Benito
Mussolini em 1922. Caracterizava-se por uma ditadura baseada num partido único,
concepção totalitária da sociedade, vedação do pluralismo político, organização
da sociedade em corporações e forte viés nacionalista. O fascismo se opunha ao
liberalismo e ao individualismo. Na Alemanha, o fascismo, com características
próprias, foi qualificado como nazismo. Por injunções históricas ambos foram
militaristas.
A direção do Estado brasileiro de 2018 a 2022 não foi compatível com as
características do fascismo. Não pretendia organizar a sociedade. Ao contrário,
parecia pretender a desorganização social, pois mais lucrativa aos garimpos,
milícias, madeireiros e capital financeiro. Embora autoritária, não tinha uma
doutrina que pudesse se impor como pensamento único. Não tinha bases
organizacionais, tal como partido, associações ou sindicatos. Portanto, não era
corporativista. Ainda que enrolados em bandeiras do Brasil e cantando o hino
nacional não eram nacionalistas, pois na prática submetia a política brasileira
à política dos EUA a ponto do presidente e seus filhos ostentarem vestes com as
cores daquele país e baterem continência para a bandeira estrangeira. Diversamente
do fascismo, que se opunha ao individualismo e liberalismo, e impunha uma visão
única ou holística, o que vivenciamos foi a exaltação do individualismo
predador das riquezas nacionais e socialmente produzidas, bem como destruidor
dos direitos sociais.
Alguns elementos dos discursos fascistas e nazistas podem ser
encontrados nas falas de alguns dos personagens que integraram o círculo do
poder. Mas pouco tinham em comum com os objetivos daqueles regimes.
Diversamente do que aqueles regimes almejaram, no Brasil tivemos apenas
pretensões de destruir instituições, direitos e práticas sociais elevadas a
valores constitucionais a partir de 1988. Peter Cohen, diretor do filme
Arquitetura da Destruição, filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em
1938, para escapar da perseguição nazista, em seu documentário descreve os
objetivos do regime que perseguiu seu pai e seu povo. Para fazer o filme,
obra-prima do cinema mundial, ele estudou o nazismo durante sete anos. O
documentário se inicia a partir de uma tese: o sonho nazista era criar, por
meio da purificação étnica, um mundo mais harmonioso e belo. Esse desejo alemão
vinha da concepção de que o mundo estava à beira do abismo e que era preciso
destruir tudo o que o que fosse feio ou inadequado, inclusive pessoas. Os
nazistas tomaram para si a responsabilidade por erradicar qualquer ameaça às
suas pretensões. Era o discurso: "Purificada e preservada da decadência,
uma nova Alemanha surgiria mais forte e muito mais bonita". O filme começa
com uma frase: "O nazismo tinha o objetivo de embelezar o mundo!".
Peter Cohen choca com suas primeiras declarações na abertura do filme, mas
depois as explica. Ele começa falando sobre o objetivo dos nazistas e conclui
demonstrando o quanto era intolerante e destrutivo com tudo e com todos que não
se moldassem ao ideal daquele regime totalitário, razão pela qual se tornavam
destinatários da eliminação, fosse arte, livros ou pessoas.
No Brasil não tivemos isto. Não podemos classificar como fascismo o que
vivenciamos. Embora uma força destruidora tenha se apossado de algumas
instituições, capaz de exterminar, aniquilar e destruir, não tinham os mesmos
objetivos dos fascistas. O que emergiu das profundezas obscuras da sociedade
brasileira foi o autoritarismo patrimonialista-predatório. Foi o
anarcocapitalismo, desgarrado de qualquer regulamentação estatal, somente capaz
de ampliar a riqueza de poucos e levar a maioria à miséria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário