sábado, 29 de novembro de 2025

Escatologia política: o nome do fenômeno

Reagindo a vaias, enquanto discursava no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 2023, o ex-ministro do STF, Luís Roberto Barroso enfatizou o seguinte: "Saio daqui com as energias renovadas pela concordância e discordância porque essa é a democracia que nós conquistamos. Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas". A fala foi mal interpretada e não faltou quem acreditasse haver referência ao ex-presidente da República derrotado nas eleições de 2022 e, atualmente, cumprindo pena privativa de liberdade em regime fechado, em decorrência dos crimes tentados de Golpe de Estado e Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito.

O evento de 08 de janeiro de 2023, além de tentativa de golpe, foi o ápice de um processo degenerativo das relações sociais e institucionais que se acumulava desde a abertura política lenta, gradual e segura dirigida pelo general-presidente Ernesto Geisel e da anistia que impediu uma justiça de transição com responsabilização daqueles que transformaram os quartéis em centros de torturas, mortes e desaparecimentos dos opositores do regime empresarial-militar. Do trinômio memória-verdade-justiça temos apenas o esforço por memória e verdade, uma vez que a justiça foi sepultada pela autoanistia que os algozes das liberdades se concederam.

A transição para a democracia não compreendeu os quartéis. Nestes se mantem o adestrando das novas gerações para acreditarem na legitimidade da truculência da ditadura. Mas a degeneração institucional e social na qual estamos mergulhados não pode ser debitada exclusivamente ao ex-presidente golpista. Trata-se de fenômeno mais profundo do qual o presidiário foi apenas o porta-voz momentâneo. Mesmo com o ícone defenestrado, o fenômeno incivilizatório se mantém em certos setores da sociedade e, sobretudo, nas casernas. Falta muita gente na Papuda, notadamente da elite militar.

O nome do fenômeno que desagrega as pessoas, inimiza familiares, converte templos religiosos em centros de doutrinação totalitária despidos de teologia e fé, rejeita a cultura, ataca as instituições democráticas, desrespeita a justiça, viola o Estado de Direito, reivindica para as Forças Armadas o papel de Poder Moderador, pede intervenção estrangeira no país, produz narrativa diversa dos fatos, abomina livros, desqualifica professores, deslegitima universidades, ofende gays, discrimina mulheres e negros, nega a ciência, afirma o terraplanismo, duvida da eficácia das vacinas e não demonstra compaixão ante doenças pandêmicas ou mortes não é bolsonarismo. O personagem é menor que o fenômeno. O personagem passará, mas o fenômeno poderá persistir com novos atores, para o horror daqueles que desejam uma sociedade justa, humana e igualitária.

O fenômeno incivilizatório que nos remete à barbárie não pode ser substantivado como bolsonarismo, nem como fascismo. Embora fascismo tenha multiplicidade de definições, todas estão associadas à historicidade da política europeia de 1919 a 1945. Tanto o fascismo italiano quanto sua vertente alemã, o nazismo, tinham em comum serem um sistema autoritário de dominação caracterizado pelo monopólio da representação política por meio de um partido único, de massa, hierarquicamente organizado e com uma ideologia fundada no culto a um chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo pelos direitos e garantias individuais e fundamentais próprios do liberalismo, no ideal de colaboração entre as classes sociais e na organização corporativa da sociedade. No fascismo, em suas diversas expressões, era clara a tentativa de organização da sociedade visando a uma socialização política planificada, com expansão imperialista. O quadro no qual estamos inseridos não tem estas características. Não é bolsonarismo, porque o personagem é pífio diante do fenômeno. Não é fascismo, porque não tem suas características. Trata-se de ‘escatologia política’ ou ‘escatologismo político’.

Escatologia é termo teológico sobre o fim do mundo e sobre o que se acredita possa ser o triste destino de parte da humanidade. Mas também pode expressar, no campo da biologia, o estudo científico sobre excrementos. Num ou noutro sentido, o termo designa degenerescência.

Vivemos tempo escatológico de exposição pública do que é bizarro, estranho, incomum ou extravagante. A ignorância ou estultice, que antes envergonhava, hoje é exibida com orgulho. O desprezo pela civilidade, que antes era escamoteado, hoje é exposto como troféu. Além dos dois sentidos já conhecidos para escatologia, podemos dizer que os novos tempos nos permite um terceiro sentido: ‘escatologia política’.

Assim, ‘escatologia política’ designa o fenômeno no qual estamos inseridos, com similar natureza a tudo que expressa decomposição. Cabe-nos transformar o que se apresenta deteriorado em fertilizante para a construção de um mundo fraterno com padrões de sociabilidade, humanidade e institucionalidade, tal como o adubo que pode ser assimilado pelas plantas para a produção de matéria viva.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7171541-joao-batista-damasceno-escatologia-politica-o-nome-do-fenomeno.html


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