domingo, 24 de novembro de 2019

Juízes não julgam os fatos

A aplicação da Constituição da República, pelo STF, afastando execução provisória de sentença penal condenatória, causou comoção em quem quer fazer prevalecer suas opiniões ao arrepio das leis. Mas, quem criou a confusão foi o próprio STF quando, em casos anteriores, autorizara prisão antes do trânsito em julgado. Ouvindo a voz das ruas, que ecoava os julgamentos midiáticos, uma ministra declarou que condenava José Dirceu, apesar da falta de provas, porque a literatura jurídica lhe permitia condenar. Juízes que pensam assim são como O Juiz de Paz da Roça, da peça de Martins Pena, que mandara prender quem lhe exigia cumprimento do seu dever. Ante o argumento de que as leis não autorizavam tal prisão o personagem declarou revogadas as leis. E, ao argumento de que a Constituição não lhe atribuía poderes revocatórios de lei, declarou revogada a Constituição. Uma grave moléstia acomete alguns do judiciário: é a juizite. Os sintomas são a perda da ordem jurídica como referência para os julgamentos, a confusão entre o fato e a prova destinada a reconstituí-lo e a autorreferência, normalmente envolta em moralismo, que é a ética de quem não tem ética.

Um ministro do STF, que se pautava pela racionalidade da ordem jurídica e não pela voz das ruas, declarou num voto que “não posso tudo o que quero; somente o que a Constituição autoriza”. Mas, ao votar pela prisão sem o trânsito em julgado, o ministro abandonou tal posicionamento. A justificativa foi do excesso de recursos para os tribunais superiores, que não julgam situações fáticas, pois o STJ julga recursos especiais em caso de contrariedade de lei federal e o STF os recursos extraordinários em casos de contrariedade à Constituição.


Os “juristas de internet” disseram que se os tribunais superiores não analisam fatos, apenas Direito, não há inocente após condenação em segunda instância. Mas nenhum juiz analisa fato. Fato é ocorrência concreta no mundo natural. Dos fatos, os juízes não tomam ciência. Quando bem provados, formam juízo sobre suas ocorrências por meio das narrativas das testemunhas ou outros meios. O fato se esvai com sua própria ocorrência e não se repete. Apenas é possível sua reconstituição histórica, que não pode ser feita por testemunhas acuadas ou por delações premiadas, após torturas.


Juízes que sabem não analisar os fatos têm menos certezas e, portanto, estão menos sujeitos a erros. Julgar com honestidade intelectual é mais difícil. Os linchamentos são mais fáceis. O excesso de trabalho, as metas, as pressões diversas e o descompromisso com os direitos alheios facilitam adoção de comportamentos burocráticos e injustiças.


As questões levadas aos tribunais superiores podem não se referir à reapreciação de provas, mas de procedimentalidade para sua produção. Um réu que confesse crime após tortura pelo juiz da causa não poderá ter sua confissão analisada por um tribunal superior. Mas, este poderá analisar o meio ilícito da para obtenção da prova. No caso do tríplex do Guarujá o STF não poderá analisar se tinha uma cozinha gourmet, como noticiado pela mídia. Mas, poderá analisar o indeferimento do pedido de prova feito pela defesa, quando ainda não se sabia ser um cubículo guarnecido, exclusivamente, por um fogão de quatro bocas. O indeferimento implicou cerceamento, intencional, do direito de defesa. O devido processo legal pode ser tão relevante quanto a questão fática, sujeita a interpretação.




Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/11/2019, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/11/5829505-joao-batista-damasceno--juizes-nao-julgam-os-fatos.html#foto=1

sábado, 2 de novembro de 2019

Trem sem freio, ladeira abaixo


Depois do que o site The Intercept demonstrou ter acontecido no “Principado de Curitiba”, aqueles que se recusavam a acreditar nos abusos praticados pelo Ministério Público e pelo sistema de justiça já não mais podem dizer não saber do que são capazes as instituições contra as liberdades públicas. Claro que há aqueles que, mesmo diante das maiores ilegalidades, bizarrices e perversidades, acham pouco tudo o que se faz contra os que lhe são indesejáveis.

Com a acumulação de poderes conferidos ao Ministério Público na Constituição de 1988, acrescidos daqueles que se apropriou com a complacência de quem lhe deveria ter imposto limites, o MP se transformou num trem sem freio, ladeira abaixo, capaz de atropelar todo o sistema de direitos e garantias fundamentais. Foi a falta de limites em suas atuações que levou o ex-procurador Geral da República a confessar ter iniciado a preparação de crime contra a vida de um ministro do STF.

Em sentença que absolveu sumariamente o ex-presidente Michel Temer, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal, disse que o Ministério Público adulterou conversas entre Temer e Joesley. O juiz foi enfático ao dizer que o MPF editou a transcrição do diálogo, adulterando o seu sentido e disse: “A prova sobre a qual se fia a acusação é frágil e não suporta sequer o peso da justa causa para a inauguração da instrução criminal” e que “a denúncia transcreve o mesmo trecho do áudio sem considerar interrupções e ruídos, consignando termos diversos na conversa, dando interpretação própria à fala dos interlocutores (...)”.

Eu já ouvi de um delegado que não deveria acreditar nas transcrições feitas pelo Ministério Público ou pela polícia e que - sempre que necessário analisar uma conversa interceptada - eu ouvisse diretamente os áudios captados, na sua integralidade. Da decisão do juiz consta a razão da necessidade de tal diligência.

O juiz que absolveu o ex-presidente Temer comparou as versões do mesmo diálogo e distorções e disse: “No trecho subsequente das transcrições — principal argumento da acusação quanto ao crime de obstrução da justiça — a denúncia, uma vez mais, desconsidera as interrupções do áudio, suprime o que o Laudo registra como falas ininteligíveis e junta trechos de fala registrados separadamente pela perícia técnica que, a seu sentir, dão — ou dariam — sentido completo à conversa tida por criminosa".

Em 10/07/2013 escrevei neste espaço que: “O conflito que se estabeleceu em data recente entre Polícia Civil e Ministério Público, em razão da falsidade numa perícia elaborada por uma fonoaudióloga do Município do Rio cedida ao MP, que fizera montagem de gravação de voz para incriminar um acusado, é a ponta do iceberg do que teremos após a rejeição da PEC 37”. Ao invés de apurar o que publicizei, o então procurador geral de justiça, preferiu interpelar-me judicialmente.

A rejeição da PEC 37 ampliou os poderes do MP e a possibilidade de abusos, em conluio com a mídia. Se o Ministério Público é capaz de promover um grande escândalo na tentativa de atingir um Presidente da República, com distorção de conversa gravada, do que alguns agentes não são capazes contra aqueles que não dispõem dos mesmos recursos para defesa? O problema dos trens sem freios é que acabam descarrilando.


Hiena, raposa, leão, burro e tigrada


Um vídeo publicitário divulgado, nesta semana, pelo presidente da república mostrava um leão fragilizado sendo atacado por um conjunto de hienas. Uma legenda identificava o leão como o presidente e as hienas como sendo mídia, movimentos sociais, partidos políticos e instituições. Foram expressamente citados: STF, CNBB, OAB, ONU, Greenpeace, Lei Rouanet, Veja, Folha de S. Paulo, Globo, Jovem Pan, Estadão, PT, PCdoB, PSOL, PSDB, PDT, feministas, MST, Força Sindical, MBL que sempre apoiou o presidente e o seu próprio partido, o PSL. O leão atacado é apresentado como o “isentão”, salvo por outro leão, o “conservador patriota” e ao final o presidente exclama: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Diante da repercussão o presidente apagou a postagem e se desculpou.


Norbert Elias no livro A Sociedade de Corte analisa a corte de Luís XIV, o Rei-Sol, e sua rigorosa estrutura fundamentada sobre símbolos. Na obra ele estuda as relações sociais e suas interdependências e conclui: um louco que se acredita rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias. O presidente pretende governar acima das circunstâncias, desprezando as relações sociais das quais decorrem todo o exercício de poder. E isto pode ser perigoso para a democracia, pois pode ceder à tentação autoritária presente na formação do presidente e no círculo que o envolve.

Pretendendo governar acima das circunstâncias o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Luís Bonaparte, reeditou em 1851 o golpe que o tio dera em 1799. Analisando aquele golpe Karl Marx escreveu que “Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Nesta semana um dos filhos do presidente da República ameaçou com a repetição da tragédia de 1964.

A tigrada que aterrorizava a sociedade brasileira durante a ditadura empresarial-militar não foi domada com a redemocratização. Os mecanismos operados nos porões do regime não foram desativados. A morte de Marielle pode ter sido uma tentativa da tigrada de causar comoção e proporcionar acesso ao poder. Pode ter encomendado o crime para não envolver as próprias Forças Armadas, como no caso da bomba do Riocentro.

A notícia divulgada no Jornal Nacional de que um dos acusados de executar Marielle estivera no condomínio onde mora o presidente para se encontrar com outro acusado e que interfonara para a casa do presidente para ter entrada autorizada, é emblemática. O presidente estava em Brasília. A reportagem não fez alusão a qualquer filho do presidente. Mas, em seu pronunciamento, visivelmente transtornado, o presidente diz quererem prender seu filho. Qual filho? Algum é ligado a milicianos? Algum pode ter intermediado a encomenda da tigrada?

Maquiavel no XVIII capítulo de O Príncipe diz que convém a um governante fazer uma escolha entre ser raposa ou leão. O leão pode ter força, mas não sabe fugir das armadilhas. É necessário ser raposa para conhecer as armadilhas e delas escapar. E arremata: “Os que querem apenas ser leão demonstram não conhecer do assunto”. Ao trazer um filhote para o centro do debate o pretenso leão caiu numa armadilha.







Trem sem freio, ladeira abaixo


Depois do que o site The Intercept demonstrou ter acontecido no “Principado de Curitiba”, aqueles que se recusavam a acreditar nos abusos praticados pelo Ministério Público e pelo sistema de justiça já não mais podem dizer não saber do que são capazes as instituições contra as liberdades públicas. Claro que há aqueles que, mesmo diante das maiores ilegalidades, bizarrices e perversidades, acham pouco tudo o que se faz contra os que lhe são indesejáveis.

Com a acumulação de poderes conferidos ao Ministério Público na Constituição de 1988, acrescidos daqueles que se apropriou com a complacência de quem lhe deveria ter imposto limites, o MP se transformou num trem sem freio, ladeira abaixo, capaz de atropelar todo o sistema de direitos e garantias fundamentais. Foi a falta de limites em suas atuações que levou o ex-procurador Geral da República a confessar ter iniciado a preparação de crime contra a vida de um ministro do STF.


Em sentença que absolveu sumariamente o ex-presidente Michel Temer, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal, disse que o Ministério Público adulterou conversas entre Temer e Joesley. O juiz foi enfático ao dizer que o MPF editou a transcrição do diálogo, adulterando o seu sentido e disse: “A prova sobre a qual se fia a acusação é frágil e não suporta sequer o peso da justa causa para a inauguração da instrução criminal” e que “a denúncia transcreve o mesmo trecho do áudio sem considerar interrupções e ruídos, consignando termos diversos na conversa, dando interpretação própria à fala dos interlocutores (...)”.


Eu já ouvi de um delegado que não deveria acreditar nas transcrições feitas pelo Ministério Público ou pela polícia e que - sempre que necessário analisar uma conversa interceptada - eu ouvisse diretamente os áudios captados, na sua integralidade. Da decisão do juiz consta a razão da necessidade de tal diligência.


O juiz que absolveu o ex-presidente Temer comparou as versões do mesmo diálogo e distorções e disse: “No trecho subsequente das transcrições — principal argumento da acusação quanto ao crime de obstrução da justiça — a denúncia, uma vez mais, desconsidera as interrupções do áudio, suprime o que o Laudo registra como falas ininteligíveis e junta trechos de fala registrados separadamente pela perícia técnica que, a seu sentir, dão — ou dariam — sentido completo à conversa tida por criminosa".


Em 10/07/2013 escrevei neste espaço que: “O conflito que se estabeleceu em data recente entre Polícia Civil e Ministério Público, em razão da falsidade numa perícia elaborada por uma fonoaudióloga do Município do Rio cedida ao MP, que fizera montagem de gravação de voz para incriminar um acusado, é a ponta do iceberg do que teremos após a rejeição da PEC 37”. Ao invés de apurar o que publicizei, o então procurador geral de justiça, preferiu interpelar-me judicialmente.


A rejeição da PEC 37 ampliou os poderes do MP e a possibilidade de abusos, em conluio com a mídia. Se o Ministério Público é capaz de promover um grande escândalo na tentativa de atingir um Presidente da República, com distorção de conversa gravada, do que alguns agentes não são capazes contra aqueles que não dispõem dos mesmos recursos para defesa? O problema dos trens sem freios é que acabam descarrilando.