segunda-feira, 26 de maio de 2014

Liberdade religiosa


“Disse o juiz que "ambas as manifestações religiosas não continham traços necessários de uma religião, a saber, um texto base (Corão, Bíblia etc), ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado". Neste sentido, o xintoísmo, o hinduísmo e o budismo também não seriam, para ele, religiões. A fé precede o texto e o dispensa; no budismo não há deidade, no hinduísmo há pluralidade de deuses, e no xintoísmo não há hierarquia. A decisão que se refere aos cultos afro-brasileiros como "reuniões de macumba" confunde a prática religiosa com o instrumento de percussão nela utilizada, a exemplo dos bairros periféricos, onde popularmente se nominavam os pentecostais tradicionais de ‘os bíblias’."
 
Jean Bodin, ao conceber a teoria do poder divino dos reis, pretendeu justificar a escolha da religião pelo soberano e evitar que as sociedades mergulhassem em guerra civil. Se o rei era escolhido por Deus, deveria saber qual a verdadeira religião. Tal concepção evitou guerras civis, mas possibilitou a matança daqueles que não adotaram a religião oficial. A tirania se apossou do discurso religioso e com ele justificou perseguições e extermínios, como ocorre sempre quando o Estado seleciona um grupo para justificar sua atuação punitiva. A fundação da cidade do Rio, em 1565, ocorreu neste contexto de guerras religiosas. Fugindo de perseguições religiosas, protestantes e calvinistas franceses ocuparam a Ilha de Villegagnon em 1555. Contra eles, combateram Mem de Sá e Estácio de Sá, que os exterminaram. A separação da igreja e Estado, princípio adotado por nós com o advento da República em 1889, tenta evitar a preferência estatal por qualquer religião.

No presente momento, o Rio é tomado por discussão sobre liberdade e tolerância religiosa. Não apenas em decorrência de desrespeitos que se praticam contra crenças populares, mas em razão de fundamento não jurídico de decisão judicial.
 
Ao analisar pedido de retirada de vídeo postado na internet, no qual uma religião se afirma em contraposição a outra de natureza popular, um juiz aproveitou para expor concepção pessoal do que seja religião e das características que um sistema de crenças deve conter para ser considerado tal. Disse o juiz que "ambas as manifestações religiosas não continham traços necessários de uma religião, a saber, um texto base (Corão, Bíblia etc), ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado". Neste sentido, o xintoísmo, o hinduísmo e o budismo também não seriam, para ele, religiões. A fé precede o texto e o dispensa; no budismo não há deidade, no hinduísmo há pluralidade de deuses, e no xintoísmo não há hierarquia. A decisão que se refere aos cultos afro-brasileiros como "reuniões de macumba" confunde a prática religiosa com o instrumento de percussão nela utilizada, a exemplo dos bairros periféricos, onde popularmente se nominavam os pentecostais tradicionais de "os bíblias".
 
Diante da reação da sociedade, o juiz buscou se retratar, dizendo que "a crença no culto de tais religiões, daí por que faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto-base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea". Não houve retratação ou esclarecimento. Manteve-se a ideia de que uma religião há de ter texto-base e deidade. Em matéria de fé, nenhum juiz tem competência, e o Estado somente deve intervir para garantir a liberdade religiosa.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/06/2014.

domingo, 18 de maio de 2014

Os porões dos tribunais

“Quando da aprovação da ‘Comissão da Verdade’, militares reformados, dentre os quais o coronel do Exército — acusado de tortura durante a ditadura —Carlos Alberto Brilhante Ustra, lançaram manifesto intitulado ‘Alerta à nação’, dizendo que a ‘Comissão da Verdade’ era um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia”. Subscreveram-no de soldados a generais e um único magistrado: um desembargador do Tribunal de Justiça.

“A separação de poderes foi concebida para evitar a junção de interesses que devem se controlar reciprocamente. As parcerias que se estabelecem entre órgãos que devem funcionar autonomamente podem implicar prejuízos para a ordem institucional. A notícia de que o oficial acusado de chefiar uma quadrilha no 6º Batalhão da PM ocupava cargo comissionado no âmbito do tribunal presidido por membro do Poder Judiciário que subscrevera o manifesto contra a ‘Comissão da Verdade’ é preocupante. Evidencia possibilidade da perda do distanciamento necessário ao Poder Judiciário para realização da justiça.”

A desorganização dos serviços públicos pelos coronéis na 1ª República visou a reforçar o mando pessoal e afastar as objeções da institucionalidade. A Revolução de 30 reorganizou o Estado e deu nova feição à realidade brasileira. Ainda nos restam traços daquele período de construção das instituições e da identidade nacional. Mas do Estado Novo herdamos também a polícia especial, reforçada pelo general Riograndino Kruel em 1958, que pode ser considerada a avó dos atuais grupos paramilitares chamados de milicianos.

Cada sistema político instaurado deixa suas marcas depois de revogado. É o passado que insiste em se fazer presente. A ditadura empresarial-militar teve um efeito deletério sobre os órgãos públicos, que foi o inchaço das repartições civis e empresas estatais com militares, em cargos e empregos, por deslavado nepotismo ou protecionismo, mas também visando à coleta de informações sobre demais agentes públicos e cidadãos.

A desmilitarização da estrutura do Estado foi penosa, e a ela reagiu a linha-dura do regime, que detonava bombas pela cidade para demonstrar sua imprescindibilidade, até o dia no qual uma explodiu no colo de um deles no Riocentro, em 1981. A reforma administrativa realizada no governo Collor extinguiu o Serviço Nacional de Informação, o SNI, promoveu disponibilidades e demissões de servidores; atingiu injustamente muitos funcionários públicos, mas foi a pá de cal no empreguismo e aparelhamento militarista das repartições civis e empresas estatais.

No Rio, atualmente vivencia-se o processo de militarização das instituições civis, com verdadeiros batalhões alocados em órgãos públicos, nem sempre em atividades típicas. Quando da aprovação da ‘Comissão da Verdade’, militares reformados, dentre os quais o coronel do Exército — acusado de tortura durante a ditadura —Carlos Alberto Brilhante Ustra, lançaram manifesto intitulado ‘Alerta à nação’, dizendo que a ‘Comissão da Verdade’ era um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia”. Subscreveram-no de soldados a generais e um único magistrado: um desembargador do Tribunal de Justiça.
A separação de poderes foi concebida para evitar a junção de interesses que devem se controlar reciprocamente. As parcerias que se estabelecem entre órgãos que devem funcionar autonomamente podem implicar prejuízos para a ordem institucional. A notícia de que o oficial acusado de chefiar uma quadrilha no 6º Batalhão da PM ocupava cargo comissionado no âmbito do tribunal presidido por membro do Poder Judiciário que subscrevera o manifesto contra a ‘Comissão da Verdade’ é preocupante. Evidencia possibilidade da perda do distanciamento necessário ao Poder Judiciário para realização da justiça.




Publicado originariamente no jornal O DIA, de 18/05/2014, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-05-18/joao-batista-damasceno-os-poroes-dos-tribunais.html

domingo, 11 de maio de 2014

Marcha da Maconha

“Uma criança ou adolescente pode ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na maioria dos estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado, mas nada a impede de adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com o comércio ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a manutenção do proibicionismo e a guerra às drogas. Legalização já!”

Realizou-se no Rio a Marcha da Maconha, ou melhor, marcha pela legalização das drogas. Havia gente de correntes diversas de opinião na defesa da regulamentação da produção, comércio e consumo, que o Estado finge poder controlar exclusivamente por meio de seu aparato repressivo. Aqueles que usam drogas não tinham motivo para estar lá. Afinal, têm fornecimento garantido. Mas os que não usam e são contra o tráfico tinham motivos de sobra para se manifestar. Ser a favor da legalização das drogas não implica ser a favor do seu consumo. O que se pretende é reduzir os efeitos danosos do proibicionismo. 

É o proibicionismo e a guerra às drogas que geram a violência contra crianças, idosos, trabalhadores e outras pessoas que jamais tiveram contato com drogas ilícitas, que pavimentam o caminho para a corrupção e que matam policiais mandados irresponsavelmente para o confronto. Morre-se e mata-se em razão da proibição em número assustador, quando os casos de morte por overdose são raros. A vida e a saúde pública não são defendidas com o proibicionismo, pois apenas serve para justificar o aparato repressivo e o controle da sociedade. 

A Lei Seca nos Estados Unidos incentivou o desenvolvimento da máfia, da qual Al Capone foi o ícone. Regulamentado o comércio de bebida alcoólica, a máfia estadunidense teve que buscar novos negócios. Pessoas que cultivavam videiras e proprietários de pequenos alambiques clandestinos puderam produzir para consumo familiar sem necessidade de se armar ante o risco da violência para roubo do produto proibido. 

A Leap (Law Enforcement Against Prohibition), que pode ser traduzida por Agentes da Lei Contra o Probicionismo, é uma entidade mundial composta por juízes, promotores e policiais que tem a missão de reduzir os efeitos danosos resultantes da guerra às drogas e diminuir a incidência de mortes, crimes e dependência decorrentes da proibição.

A Leap-Brasil advoga a eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e regulação, com medidas restritivas à venda e uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem outras restrições para aquisição ou consumo de álcool, de tabaco, para direção de veículos e operação de equipamentos pesados.

Uma criança ou adolescente pode ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na maioria dos estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado, mas nada a impede de adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com o comércio ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a manutenção do proibicionismo e a guerra às drogas. Legalização já!


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/05/2014, pag. 18. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-05-11/joao-batista-damasceno-marcha-da-maconha.html

domingo, 4 de maio de 2014

ESTADO, JUSTIÇA E FÉ

“Remoções são realizadas à margem da lei, pois a ordem jurídica não as autoriza, aproveitando-se da cegueira ou miopia dos órgãos encarregados de garantir o império da justiça. Ainda que realocações sejam autorizadas legalmente em casos necessários, não devem afastar a pessoa de suas referências, da possibilidade de convívio com seus familiares e dos grupos com os quais se relacione. Mas ao povo, toca-se. Nem gado, hoje, é tocado. Quando necessário, é transportado com maior cuidado que o dispensado a trabalhadores. Gado se guarda e se protege, pois tem valor econômico.

“Se há dinheiro para a Copa do Mundo, para obras faraônicas e para empréstimos a fundo perdido a certos empresários, há de ter também para assegurar direitos constitucionais, dentre os quais o de moradia.”

A ocupação da Catedral Metropolitana pelos despejados da Favela da Telerj, em decorrência de liminar deferida pelo Judiciário, expõe o calcanhar de Aquiles da política habitacional em nosso estado. O desalijo sem prévio cadastramento dificulta a implementação de política assistencial ou social. Despejados com truculência foram para a porta da prefeitura, onde permaneceram aguardando providências em seu proveito. Ao contrário de ajuda e solidariedade, receberam ameaças. Mães foram ameaçadas de perder a guarda dos filhos porque estavam em convívio familiar fora dos lares que não mais têm; sofreram a perturbação do sono noturno por sirenes da Guarda Municipal; crianças e mulheres grávidas foram retiradas da passarela do metrô, onde se protegiam da chuva durante a madrugada. Ao fim, foram de novo expulsos da porta da prefeitura com violência conjunta da Guarda Municipal e da Polícia Militar. Desrespeitou-se o preceito de que locais públicos são próprios para ir, vir e ficar. Abrigando-se da truculência estatal, foram para o único lugar onde, dizem, não sofreram violência: o pátio privado da Catedral; impróprio refúgio, mas necessário diante do que vivenciavam.

Os governantes estão tranquilos com a atual situação. Tratam-na como se fosse uma questão de fé a ser resolvida pela Arquidiocese. A questão é político-social e compete ao poder público, que apenas oferece a truculência do seu aparato repressivo, felizmente recusada pelo cardeal-arcebispo Dom Orani. Não é de hoje que governantes despidos de concepção adequada de suas funções consideram que problema social é caso de polícia.

Monteiro Lobato, no artigo ‘Velha Praga’, em 1914, escreveu se referindo ao povo: “Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é ‘tocá-lo’. Curioso este preceito: ‘ao caboclo, toca-se.’ Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala.” 

Remoções são realizadas à margem da lei, pois a ordem jurídica não as autoriza, aproveitando-se da cegueira ou miopia dos órgãos encarregados de garantir o império da justiça. Ainda que realocações sejam autorizadas legalmente em casos necessários, não devem afastar a pessoa de suas referências, da possibilidade de convívio com seus familiares e dos grupos com os quais se relacione. Mas ao povo, toca-se. Nem gado, hoje, é tocado. Quando necessário, é transportado com maior cuidado que o dispensado a trabalhadores. Gado se guarda e se protege, pois tem valor econômico. 
Se há dinheiro para a Copa do Mundo, para obras faraônicas e para empréstimos a fundo perdido a certos empresários, há de ter também para assegurar direitos constitucionais, dentre os quais o de moradia.



Publicaado originariamente no jornal O DIA, em 04/05/2014, pag. 14. 
Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-05-03/joao-batista-damasceno.html