domingo, 8 de junho de 2014

Entre os Alpes suíços e os Andes

“Sobre as manifestações contra a política de criminalização da periferia, contra as remoções para obras da Copa e contra as ocupações militares das favelas, um querido amigo escreveu que as entidades que as convocaram julgam “que o tráfico era menos danoso”. Quando jornalistas, intelectuais e governantes tomam como referência a violência do tráfico, e não a ordem jurídica e social justa, para analisar a ação do Estado, acabam por justificar as atrocidades praticadas por este.”

Sobre as manifestações contra a política de criminalização da periferia, contra as remoções para obras da Copa e contra as ocupações militares das favelas, um querido amigo escreveu que as entidades que as convocaram julgam “que o tráfico era menos danoso”. Quando jornalistas, intelectuais e governantes tomam como referência a violência do tráfico, e não a ordem jurídica e social justa, para analisar a ação do Estado, acabam por justificar as atrocidades praticadas por este. 

Durante o período escravagista no Brasil havia uma discussão entre aqueles que pugnavam por uma “escravidão mais humana”. Discursos e sermões foram proferidos contra os maus-tratos que alguns senhores dispensavam às pessoas reduzidas à escravidão. Outros falavam sobre a alimentação adequada para o escravo. Mas havia aqueles para quem não existe tratamento digno à pessoa escravizada, pois não há dignidade humana compatível com a escravidão. Destes se diziam viverem nas nuvens, tal como o condor, maior ave voadora do mundo, que vive nos Andes.

Castro Alves — integrante da geração ‘condoreira’ — sintetizou a grandeza de olhar o mundo de cima ou para as coisas que realmente têm importância: “Eu sou pequeno, mas só fito os Andes”. Dela também fez parte Gonçalves Dias, que influenciou a formação do conceito de brasilidade, repercutiu na formação do pensamento social latino-americano e tem no poeta Pablo Neruda um dos seus notáveis herdeiros. O que melhor temos no Brasil, formado a partir da Revolução de 1930, se reporta a esta corrente de pensamento, passando pela Semana de Arte Moderna de 1922. 

O Brasil que deu certo não se fez entre a opção de como tratar o escravo ou como humanizar o coronel em seu mando local. O Brasil que deu certo repudiou a existência da escravidão, a truculência do coronel e as exterioridades de uma elite aparentemente ilustrada que, em belos discursos, e em várias línguas, fingia estar preocupada com os problemas sociais. 

Neste momento há juristas, jornalistas, apresentadores de TV, religiosos, prefeitos, governadores, ministros e até a Presidência da República em concordância quanto à necessidade de repressão a manifestantes no exercício de direito constitucional, na apologia das atuações policiais, na autorização da ocupação de bairros pobres e favelas pelo Exército. O repúdio ao que se faz no presente não é desejo de retornar ao passado igualmente danoso aos excluídos.

Neste momento, ser um ‘condoreiro’ é olhar a grandeza dos Andes, representado pelos princípios humanitários que hão de nos orientar na formação de uma sociedade justa, humana e igualitária. Mas há quem prefira olhar para os Alpes da Suíça, país das contas numeradas e sede da Fifa.



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/06/2014, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-06-08/joao-batista-damasceno-entre-os-alpes-suicos-e-os-andes.html

Cheiro de pólvora no ar

“No dia 13 de junho eclodiu a primeira grande manifestação no Rio de Janeiro, que inicialmente questionava o aumento das tarifas de transporte público sem planilha de custo que o justificasse. Seguiram-se outras manifestações, dentre as quais, a de 20 de junho onde mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas. A princípio autoridades e instituições estatais ficaram aturdidas. Mas, logo se recompuseram, articularam-se contra o povo, promoveram repressão violenta, prisão em massa e criminalização até de advogados que defendiam a liberdade. A sociedade, que soube se manifestar contra a falta de políticas públicas adequadas, tem o poder de realizar seus desejos sem passos atrás em sua caminhada.”

Artigo publicado neste espaço no dia 04 de junho de 2013, intitulado ‘Brasil x Itália’ afirmava que a Constituição determina deva a ordem econômica assegurar a existência digna conforme os ditames da justiça social. E indagava: Mas, o que é uma Constituição diante da primazia do capital? O desrespeito ao Estado de Direito em nome de um campeonato mundial de futebol já estava evidente. As instituições já estavam postas a serviço dos cartolas.

O artigo lembrava que reações vivenciadas em outros lugares do mundo onde governantes se envolveram em práticas similares e exemplificava com ocorrência em março de 2011, na Itália, quando se comemorava 150 anos de sua unificação, e na Ópera de Roma executava-se ‘Nabuco’, de Verdi. Ao findar o ‘Va Pensiero’, canto dos escravos oprimidos, que naquele país evoca o grito de liberdade do povo, o silêncio da platéia substituíra-se por fervor. O maestro Riccardo Muti dissera sentir a reação do público enquanto o coro dos escravos cantava: ‘Ó, pátria minha, tão bela e ultrajada’. A platéia gritava “Bis!” e “Viva a Itália!” O constrangimento do primeiro-ministro Silvio Berlusconi não poderia ter sido maior. O maestro não queria fazer o bis para o ‘Va Pensiero’, pois uma ópera não deve sofrer interrupções. Mas rendeu-se e disse: “Sim, estou de acordo. Viva a Itália! Se é o que querem, cantemos juntos!”. Ao final, público, músicos, atores e maestro choravam de emoção, demonstrando a vitalidade da sociedade italiana diante da truculência e desmandos do Estado.

O artigo citava ‘O Príncipe’, onde Maquiavel, em 1513, escrevera que a virtude se empunharia contra a fúria porque o valor não se apagara dos corações italianos.  E, concluía dizendo que também a brasilidade não se apagara do coração do povo brasileiro que haveria de reagir aos governantes e à truculência de sua polícia a serviço dos cartolas, da Fifa e dos empreiteiros. Havia cheiro de pólvora no ar. As manifestações dos indígenas em todo o país foram apontadas como o começo da reação ao que se fazia com o povo.

No dia 13 de junho eclodiu a primeira grande manifestação no Rio de Janeiro, que inicialmente questionava o aumento das tarifas de transporte público sem planilha de custo que o justificasse. Seguiram-se outras manifestações, dentre as quais, a de 20 de junho onde mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas. A princípio autoridades e instituições estatais ficaram aturdidas. Mas, logo se recompuseram, articularam-se contra o povo, promoveram repressão violenta, prisão em massa e criminalização até de advogados que defendiam a liberdade. A sociedade, que soube se manifestar contra a falta de políticas públicas adequadas, tem o poder de realizar seus desejos sem passos atrás em sua caminhada.



Publicado originariamente no jornal O DIA em 01/06/2014, pag. 16.